terça-feira, 9 de novembro de 2010

Juntando os cacos

Deveria existir uma psicanálise do poder, à qual Shakespeare e Machado de Assis dariam excelentes contribuições


Frei Betto

Campanha eleitoral, apurado o resultado das urnas, funciona como abalo sísmico: súbito, o que era findou, a estrutura política se encontra alterada e o que será ainda não se firmou (o que só ocorrerá após 1o de janeiro de 2011).

Deveria existir uma psicanálise do poder, à qual Shakespeare e Machado de Assis dariam excelentes contribuições. Talvez exista. Eu é que, em minha sobeja ignorância, não a conheço.

Não é fato que o processo eleitoral tudo desarruma? É um festival de contradições e contrariedades: amigos se tornam inimigos; inimigos viram correligionários; irmãos discutem com irmãos; princípios ideológicos cedem lugar a interesses eleitoreiros; propostas são encobertas por meras promessas; o discurso ético quase nunca coincide com o modo como se financia a campanha...

E ainda há cidadãos que se recusam a votar, têm raiva de políticos, vociferam contra tudo e contra todos, esquecendo o elementar, meu caro Watson: o ódio destrói quem odeia e não quem é odiado. Este nem sequer fica sabendo das repetidas ofensas proferidas ao seu nome.

Terminado o pleito para as funções legislativas, cada candidato tem o direito de se olhar no espelho. Há eleitos que estufam o peito aliviados, sentem o doce beijo de Narciso “nem tanto como belo, e sim como poderoso” e se esquecem de reparar que, no fundo do espelho, há uma multidão de pessoas, seus eleitores, a quem devem a vitória eleitoral e a quem estão obrigados a não decepcionar.

Os derrotados se dedicam ao triste balanço: tanto esforço, tantas viagens e reuniões; tantos apertos de mãos e cafezinhos; e, sobretudo, tanto dinheiro despendido para... nada! Epa, não é bem assim! Para nada não. E o investimento eleitoral a longo prazo? Afinal, mereci uns tantos votinhos, tornei-me conhecido, criei uma potencial base de sustentação política. Claro, esperava mais, julgava-me mais elegível que outros concorrentes... Mas sei que não sou de se jogar fora. Quem sabe nas próximas eleições...

De fato, gastos eleitorais são pesados. Deus meu, quantas dívidas! Alguns candidatos derrotados sofrem de DPE: Depressão Pós-Eleitoral.

Mas não nos enganemos. Uns tantos derrotados fizeram seu pé de meia. É a tal “sobra de campanha”. Sobra? Na verdade, quinhão retirado do milhão. Nada como um dinheirinho extra caído do céu. Ou melhor, das mãos do eleitores. Com a vantagem de dispensar prestação de contas ou pagamento de tributos.

Após o bate-boca de quem foram os responsáveis pela derrota (a vitória é quase sempre exclusivamente do candidato), o prêmio de consolo de uns tantos é a tradicional boquinha assegurada por quem foi eleito. Não virei deputado ou senador mas, felizmente, o companheiro ali agora é governador; aquele se elegeu senador; o outro, deputado. Quem sabe me consolam com uma nomeação! O dinheiro não sai mesmo do bolso deles. Vem dos cofres públicos. Se for preciso, até topo assinar receber 5, embolsar 3 e deixar 2 para o companheiro que agora me estende a mão...

Muitos vitoriosos não se aguentam de tanto convencimento. Adeus patrão, adeus relógio de ponto, adeus rotina! Agora é não pisar em falso para não cair do palanque. O que mais importa, desde hoje, é tratar de garantir a reeleição daqui a quatro anos.

Quem foi eleito para o executivo trata de montar sua equipe de governo atento às alianças, aos correligionários bem votados porém não eleitos, às promessas mais repetidas.

Os derrotados amargam a boca de fel. Como aconteceu? Tudo indicava que eu seria eleito. Cadê as pesquisas fajutas, os puxa-sacos, o coro do “já ganhou”? Ganhei foi experiência. E perdi meses dando braçadas, engolindo água para, na hora H , morrer na praia.

E nós, eleitores? Votamos por votar ou estamos dispostos a cobrar duro de quem elegemos? Sim, sei que alguns foram às urnas porque a lei obriga. É o time do voto facultativo. Estou fora! Darei meu apoio a tal bandeira no dia em que pagar imposto também for facultativo. Por que devo sustentar economicamente a máquina do Estado e não decidir quem a ocupa?

Não basta delegar e se sentir representado. É preciso participar: fazer todo tipo de pressão sobre os eleitos, nossos servidores. E reforçar os movimentos sociais, a sociedade civil organizada, para que haja permanente controle social do poder público. Sobretudo, exigir transparência e competência.

Ah, a política...

Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da Prisão” (Agir), entre outros livros. www.freibetto.org

 Fonte: Brasil de Fato

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