segunda-feira, 6 de junho de 2011

Algumas considerações sobre o real funcionamento do sistema criminal brasileiro


Como a Justiça trata ricos e pobres em relação à punição de crimes semelhantes? 


Por Marcelo Cunha

Várias vezes tenho que "explicar" minhas ideias ao receber a "pecha" (uma das mais graves, atualmente) de não ser "garantista". Considero-me um garantista ferrenho. Entendo, entretanto, que o respeito às garantias dos réus não significa necessariamente uma escolha entre o funcionamento minimamente eficaz do sistema criminal e a impunidade absoluta.

Deve haver um meio termo (utilizado nos países que nos exportaram a teoria garantista - como a Itália, França, Alemanha e os EUA - berço dos direitos individuais de 1a geração) em que podemos preservar o cidadão e, ao mesmo tempo, responsabilizar eficazmente os criminosos por seus atos.

Além disso, devemos problematizar, sempre, a existência de dois direitos penais: um que contribui à proteção de que os recursos públicos sejam corretamente tributados, arrecadados e empregados em obras públicas (os crimes do colarinho branco - como os tributários, contra a administração pública, contra as licitações, etc.) e o dos crimes violentos. Importante ter em vista que, escudado na retórica hipergarantista, os criminosos mais perniciosos à sociedade brasileira ficam impunes. Tentei trabalhar esses pontos em minha obra "Só é preso quem quer" (Clique aqui para adquirir a obra) . Colaciono, abaixo, algumas entrevistas que dei sobre o assunto:

O promotor de Justiça Marcelo Cunha de Araújo, do Ministério Público de Minas Gerais, é autor do livro “Só é preso quem quer! - Impunidade e Ineficiência do Sistema Criminal Brasileiro” (Editora Basport), 2009, 2ª edição 2010 pela Brasport. Professor de Direito Penal e Psicologia Jurídica da PUC-MG, com experiência nas áreas de Direito Penal e Direito Processual Penal.

O autor do livro, confirma as afirmações que fizemos no início deste texto. Vejam as respostas que ele deu à algumas perguntas feitas na época do lançamento do livro :


Entenda como a impunidade é "fabricada" no Brasil e "direcionada" aos ricos:


Como o sr. explica o título da obra?

Marcelo Cunha de Araújo - O título da obra se iniciou em uma brincadeira em sala de aula em que afirmava aos meus alunos (e, posteriormente, demonstrava minha assertiva) que, caso um criminoso cumprisse 3 requisitos, nunca ficaria preso um dia sequer no Brasil, independentemente do crime que praticasse ou de o ter confessado. Seriam os requisitos: 1) Fugir do flagrante (mesmo assim, em muitos casos, o segundo requisito pode suplantá-lo); 2) Ter emprego e (ou) residência fixa; 3) Não deixar seu caso cair na mídia nacional. Apesar da brincadeira, nessas hipóteses, havendo defesa interessada, o cidadão poderá cometer todo e qualquer crime, desde o homicídio, passando pelo estupro e chegando ao grau máximo da impunidade: os crimes do colarinho branco. Em meu livro procuro explicitar pormenorizadamente como isso ocorre.

Como a Justiça trata ricos e pobres em relação à punição de crimes semelhantes?

Marcelo Cunha de Araújo - Uma vez que as leis de conteúdo explicitamente discriminatório são poucas (como a possibilidade de elidir um crime tributário pelo pagamento - ou mero parcelamento - do tributo enquanto o crime contra o patrimônio individual não tem essa benesse), a diferença de punição entre pobres e ricos é alcançada pela interpretação equivocada dos dispositivos legais associada à falta de aparato legislativo que vise ao combate efetivo dos crimes praticados por ricos. Assim, o cidadão preconceituosamente intitulado “marginal” que rouba uma pequena quantia em dinheiro permanecerá preso por vários anos, enquanto o empresário que sonega bilhões nunca tem qualquer repercussão penal. Aclarar como isso ocorre, de fato, foi um dos objetivos do livro.

Dessa forma, simplificando o problema, temos que vários fatores contribuem à sua configuração. Seriam eles, entre outros: 1) a interpretação de que a garantia de presunção de inocência seja absoluta; 2) O abarrotamento do STF e do STJ; 3) A interpretação extremamente garantista na produção de provas (como, por exemplo, a interpretação de que o direito à intimidade acaba por impedir o acesso a contas bancárias); 4) A falta de aparelhamento material, pessoal e técnico dos setores investigativos; 4) A inexistência de crimes do colarinho branco entre os crimes hediondos; 5) A impossibilidade de configuração das prisões provisórias para os crimes do colarinho branco; 6) A falta de apoio dos juízes de primeira instância que vêem suas decisões serem diariamente reformadas ou anuladas e 7) A falta de compromisso da reprimenda às necessidades do caso concreto (na execução penal).

Livraria da Folha - Qualquer pessoa pode se safar de qualquer tipo de crime, se souber usar as brechas das leis?

Marcelo - Sim. Desde que não tenha sido preso em flagrante, seu caso não caia na imprensa e tenha advogados atuantes, estatisticamente existe uma possibilidade imensa dessa pessoa ficar impune. É bom que se diga que, em certos casos, mesmo com a prisão em flagrante e com o caso na imprensa, tal crime pode acabar caindo na impunidade, como explicito em vários exemplos reais em meu livro. Ainda é interessante se falar que não se trata de uma questão de prova ou de certeza de autoria, uma vez que o criminoso pode até confessar. Trata-se de uma questão de inoperosidade do sistema.

Livraria da Folha - O pobre deve ficar realmente mais apreensivo do que o rico quando é preso?

Marcelo - Com toda certeza! O pobre é o escolhido por esse sistema perverso como bode expiatório para gerar a ilusão, na população em geral, de que o sistema funciona. Assim, apesar do título da obra (que foi pensado apenas como provocativo), não é para todos que vale a máxima de que "só é preso quem quer". Na obra, na verdade, tento explicar, de forma pormenorizada, como se constrói algo que percebemos no cotidiano: o fato de "uns serem mais iguais que os outros", apesar de as leis e os juízes não dizerem isso explicitamente.

Livraria da Folha - O fato de o acusado ter dinheiro interfere diretamente na decisão final do juíz?

Marcelo - Sim, mas não de uma forma direta e explícita. Essa interferência se dá de uma maneira latente e não manifesta, escondida nos recônditos das microdecisões tomadas pelos legisladores e pelos operadores do sistema (policiais, promotores de justiça, juízes etc.).

Por que o sistema criminal não funciona no Brasil?

Ninguém mais tem dúvida disso. Nós partimos da premissa de que a lei criminal, assim como todas as leis, deve ser analisada de forma abstrata, por si só. Nós idolatramos a lei e esquecemos que ela precisa resolver os problemas do dia-a-dia. O sistema criminal não funciona porque as pessoas que elaboram a estrutura desse sistema têm interesse em que ele não funcione. Como nenhuma autoridade pública, legislador, promotor ou juiz vai falar de forma aberta sobre isso, a forma mais fácil de fazer com que o sistema não funcione é diluir em milhares de micro decisões, do policiamento à prisão, para que seja assim.... É uma coisa que vai se estruturando aos poucos, não há uma teoria maniqueísta nisso, o que acontece é que as pessoas vão tomando posições na vida que fortalecem a situação. Um deputado, por exemplo, tem dificuldade em aprovar uma lei que favoreça a investigação de parlamentares. Assim, as coisas vão se direcionando pra não funcionar mesmo.

Como se dá a ineficiência do sistema?

Ela se dá, por exemplo, no processo penal. Por exemplo, a lei fala em prisão em flagrante, preventiva e temporária. O flagrante pode ser aplicado em 3 casos: quando a pessoa acaba de cometer um crime, quando está cometendo ou quando é pega logo após, com objetos e provas que fazem com que ela seja apontada como autora do crime. O flagrante ofende o princípio da igualdade? Não, todos são iguais perante a lei, mas, com mais de 10 anos de experiência, eu nunca vi um flagrante de crime de colarinho branco, por exemplo. A estatística é insignificante. Por que isso acontece? Porque o flagrante é feito para crimes de pobre – os violentos, os de furtos de pequenas quantias patrimoniais... No caso de homicídios, é baixa a incidência do flagrante entre ricos. E o flagrante nunca vai ser usado, por exemplo, para crimes tributários, contra licitações, contra a administração pública, contra o sistema financeiro. Aí, sobram a prisão preventiva e a temporária. Mas a preventiva também não dá. Porque, basicamente, em termos não jurídicos, o cidadão costuma ter emprego fixo e raízes consolidadas, como endereço, família constituída, ele não tem risco iminente de fuga, aí o juiz não decreta a preventiva. Sobra a temporária, mas ela também não dá, porque normalmente a temporária é pra quem ameaça outro no curso da investigação, manifesta intenção de destruir provas etc. Some-se tudo isso ao entendimento do STF, de fevereiro passado, de que todas as pessoas do Brasil devem aguardar o julgamento até a última instância em liberdade, e há então uma mensagem clara para os advogados: adie o julgamento definitivo o máximo possível com qualquer tipo de expediente, porque ou o crime vai prescrever ou a liberdade só será suprimida quando vier o julgamento em última instância, o que costuma levar no Brasil no mínimo 10 anos. Só o Brasil adota esse sistema, porque nos EUA, por exemplo, que é um bom paradigma, depois da acusação formal do promotor, a regra se inverte, a pessoa só permanece em liberdade se o juiz considerar que o caso não é grave e que a pessoa deve pagar uma fiança proporcional ao patrimônio – dependendo do caso, chega a milhões de dólares. O casal de pastores da Igreja Renascer, Sônia e Estevam Hernandes, por exemplo - detido nos EUA por entrada no país de recursos não declarados -, aguardou o julgamento em prisão domiciliar com tornozeleiras; depois de condenado passou a um regime de restrição domiciliar, podendo sair de casa apenas para serviços comunitários. A pastora Sônia pediu à Justiça americana que retirasse as tornozeleiras porque isso a constrangia e a incomodava. Ela ouviu do juiz que, com certeza ela poderia retirar a tornozeleira, desde que concordasse em ir pra cadeia.

O que causa perplexidade na criminalidade brasileira?

Uma pessoa que furta 5 reais e é pega, responde ao processo presa, não vai ter ninguém pra olhar pelos direitos dela e, se for condenada, vai pra prisão. É bem provável. Ainda que ela resolva devolver o dinheiro, vai continuar presa. Agora, se um empresário sonegar 5 milhões de reais e estiver comprovado que ele realmente sonegou ou que se apropriou do dinheiro do empregado que deve ser repassado ao INSS, e ele resolver devolver o dinheiro ou fazer um acordo com o Estado, estará extinta a punibilidade dele, ainda que o acordo aconteça durante o processo. Isso para os advogados é ótimo, porque gera honorários milionários e fica barato pra empresa. Imagine essa sonegação de 5 milhões e honorários de 200 mil reais. O que é melhor pra empresa?... Quem domina a formação acadêmica criminal no Brasil são os advogados, não são os juízes nem promotores, e isso gera um mal-estar. O advogado usa todos os recursos porque o sistema o envolve, oferece a ele essa oportunidade. O papel dos nossos legisladores é não permitir que isso aconteça, mas acontece.

É o que o sr. chama de impunidade diretiva? Fale mais sobre isso?

Sim. O sistema penal escolhe sobre quem ele vai atuar. E isso vale pra qualquer crime. A Lei Seca, por exemplo. Ela diz que ninguém pode dirigir embriagado. Isso significa que todos vão ser presos? Não, porque o sistema define quem vai ser preso ou não. Por exemplo, eu, se for pego, vou dizer “eu não sopro o bafômetro, porque tenho o direito de não produzir provas contra mim”. Então, já há uma diferenciação entre quem tem essa informação e quem não tem. Ainda que uma pessoa rica e esclarecida decida soprar o bafômetro, o boletim de ocorrência é registrado e gera-se o processo penal. Mas ela irá aguardar em liberdade porque institui-se o valor da fiança e o flagrante não será mantido pela aplicação da liberdade provisória, já que não se configuram os requisitos da prisão preventiva, porque o código do processo penal diz que quem tem residência fixa, emprego etc não deve ficar preso. O pior é que isso não vale só para a Lei Seca, se uma pessoa morrer num acidente provocado por um motorista bêbado, o caminho é o mesmo. Eu costumo dizer aos meus alunos que, se alguém cometer um crime e fugir do flagrante e o caso não for divulgado pela mídia, a impunidade vai ocorrer com certeza, independentemente do crime.

O País tem saída?

Tem, as pessoas não podem mais ficar de olhos vendados, sem entender o funcionamento do sistema criminal, elas precisam se indignar. O STF, por exemplo, nunca condenou ninguém que tem foro privilegiado (deputados federais, senadores, ministros, presidentes da República). Fala-se muito, por exemplo, em diminuir a idade da maioridade penal. Os adversários dessa proposta dizem que, antes de reduzir a maioridade, o País tem de investir na Educação. O argumento é válido, pressupondo que a infração cometida pelo adolescente é resultado da questão social. Agora, só dá pra esperar o investimento na Educação se o país passar a punir os crimes de colarinho branco, porque senão nunca teremos os recursos para fazer a coisa acontecer. O conhecimento é a única forma de sair dessa situação, hoje só os advogados dominam o Direito, as pessoas comuns não entendem a lógica do sistema, que é feito pra não funcionar. O caminho é sociedade civil organizada e conscientização eleitoral.

Livraria da Folha - Quanto tempo seria necessário para que o sistema se tornasse justo?

Marcelo Cunha de Araújo - Apesar de a impunidade ser a resultante de um conjunto de microdecisões, para resolver os problemas do sistema não são necessárias muitas mudanças substanciais. O que falta é a vontade política, uma vez que os que mais se beneficiam com a ineficiência do sistema são justamente aqueles que detêm o poder de mudança.

Fonte: O Radar da Impunidade Brasileira / Blog do Marcelo Cunha

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