"Todos acham que nós vivemos numa democracia e república, mas nós nunca vivemos de modo republicano e democrático".
“Na verdade, o povo não tem poder algum”
Para o jurista Fábio Konder Comparato, imprensa alternativa pode
contribuir para forjar uma mentalidade democrática entre a população,
acostumada com séculos de submissão
Reconhecido pela defesa das causas de movimentos sociais, como o MST,
e crítico ferrenho da última ditadura civil- militar (1964-1984), o
jurista Fábio Konder Comparato acredita que o Brasil ainda está longe de
ser um Estado verdadeiramente democrático. De acordo com ele, os
brasileiros ainda têm a mentalidade e os costumes marcados por séculos
de escravidão e precisam se desvencilhar da submissão e passividade.
Para tanto, segundo o jurista, é preciso ampliar a educação cívica e
política e aproveitar ao máximo a imprensa alternativa para denunciar
essa opressão. Confira a entrevista exclusiva concedida ao jornal Brasil
de Fato.
Brasil de Fato – Professor, no próximo ano a Constituição
Federal completa 25 anos. Na sua avaliação o Brasil conseguiu alcançar
um patamar de país democrático, que respeita os direitos sociais e as
liberdades individuais, ou ainda há muita diferença entre o que está
estabelecido na lei e o que está posto na prática?
Fábio Konder Comparato – Exatamente aquilo que acaba de dizer por
último. Essa diferença entre o que está na lei e o que existe na prática
não é de hoje, é de sempre. E o que caracteriza a vida política
brasileira é a duplicidade, com a existência de dois ordenamentos
jurídicos: a organização oficial e a organização real. E também no
sentido figurado há duplicidade, ou seja, o verdadeiro poder é
dissimulado, é oculto.
Nós encontramos na Constituição a declaração fundamental no artigo
1º, parágrafo único de que todo poder emana do povo que o exerce
diretamente por intermédio de representantes eleitos. Mas na verdade, o
povo não tem poder algum. Ele faz parte de um conjunto teatral, não faz
parte propriamente do elenco, mas está em torno do elenco. Toda a nossa
vida política é decidida nos bastidores e para vencer isso não basta
mudar as instituições políticas, é preciso mudar a mentalidade coletiva e
os costumes sociais. E a nossa mentalidade coletiva não é democrática.
O povo de modo geral não acredita na democracia, não sabe nem o que é
isso. Não sabe que é um regime político em que ele tem o poder em
última instância e que ele deve decidir as questões fundamentais para o
futuro do país. Não sabe que ele deve não somente eleger os seus
representantes, mas também poder de destituí-los. O povo não sabe que
ele deve ter meios de fiscalização contínua dos órgãos do poder, não
apenas do Executivo e Legislativo, mas também do Judiciário, que se
verificou estar corrompido até a medula, com raras e honrosas exceções.
E por que essa mentalidade?
Ora, essa mentalidade coletiva é fruto de quase quatro séculos de
escravidão. Quando Tomé de Souza desembarcou no Brasil em 1549 trouxe o
seu famoso regulamento de governo, no qual tudo estava previsto, mas só
faltava uma coisa, a constituição de um povo. Havia funcionários da
metrópole, havia um contingente de indígenas, havia o começo da
escravidão, mas não havia povo. E nós não chegamos a constituir esse
povo ao longo da nossa história porque o poder sempre foi oligárquico,
ou seja, de uma minoria de grandes proprietários e empresários com apoio
do contingente militar e da Igreja Católica.
Assim nós chegamos ao século 21 numa situação de duplicidade
completa. Todos acham que nós vivemos numa democracia e república, mas
nós nunca vivemos de modo republicano e democrático. O primeiro
historiador do Brasil, Frei Vicente do Salvador, apresentou uma
declaração que até hoje permanece intocável, dizendo que nenhum homem
dessa terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, se não cada um
do bem particular. Não existe a possibilidade de democracia sem que haja
uma comunidade em que o bem público esteja acima dos interesses
particulares.
E o chamado povão, as classes mais populares e humildes já trazem de
séculos essa mentalidade de submissão, de passividade. Procuram resolver
os seus problemas através do auxílio paternal de certos políticos ou
através do desvio da lei. Nós vemos isso cotidianamente, nunca nos
insurgimos contra uma lei que consideramos injusta, mas simplesmente nós
desviamos da proibição legal.
E como mudar essa mentalidade, professor?
É uma boa pergunta, mas a resposta vai ser um tanto desalentadora.
Essa mentalidade e costumes foram forjados por uma instituição política
colonial, depois imperial e falsamente republicana, mas, sobretudo, pela
vigência do sistema capitalista, que entrou em vigor no Brasil no ano
do descobrimento. E o sistema capitalista tem essa característica
específica, o poder é sempre oculto e dissimulado. Os grandes
empresários dizem que não são eles que fazem a lei, mas na verdade são
eles que fazem o Congresso Nacional. São eles que dobram os presidentes
da República. E os grandes empresários atualmente são os grandes
banqueiros, os personagens do agronegócio, os industriais e os grandes
comerciantes.
Agora, por exemplo, o Partido dos Trabalhadores (PT) acabou admitindo
na esfera federal, porque não havia outro jeito, a aprovação de um novo
Código Florestal que favorece abertamente os grandes proprietários
agrícolas. Então veja, para mudar tudo isso é preciso um trabalho longo e
contínuo de educação cidadã. Isto evidentemente a partir de um trabalho
de contínua denúncia dessa situação oligárquica. Mas a denúncia dessa
situação hoje na sociedade de massas passa necessariamente pelos órgãos
de comunicação de massa que estão nas mãos dos grandes empresários.
Então a situação é muito pior do que a gente poderia imaginar, mas o
importante é não desanimar, não perder o impulso no sentido da denúncia
completa. Nenhum sistema de poder permanece em vigor se é desmoralizado
perante o público. Nós temos poucas possibilidades de desmoralizar o
sistema capitalista, mas uma delas que temos que aproveitar até o fim é a
imprensa corajosa e lúcida como é o caso de Caros Amigos e Brasil de Fato.
Para além da imprensa, o que os movimentos sociais e
sindicais, que cumpriram um papel importante de desmoralização da última
ditadura militar, poderiam fazer?
O grande problema dos sindicatos que se revelou hoje é que eles não
têm espírito público. Eles defendem em geral muito bem os interesses da
classe trabalhadora, mas muitas vezes os meios empregados para essa
defesa vão contra o interesse público.
Quero dar um exemplo que vai provocar um certo escândalo. Eu sou
radicalmente contra a greve no serviço público porque o grande
prejudicado não é o governo, é o povo. A greve foi um instrumento
legítimo de defesa dos trabalhadores nas empresas privadas porque atinge
diretamente os interesses dos empresários. No serviço público é
diferente. Veja o que aconteceu nas Universidades Federais. Todas
entraram em greve. Os alunos declararam greve. Ora, os alunos das
Universidades Públicas têm o privilégio de não pagar mensalidades. E
como é que são sustentadas essas Universidades?
Com o dinheiro do povo, e digo mais, com o dinheiro do povo mais
pobre porque 70% dos impostos desse país são indiretos, ou seja, quem
tem menos paga mais. É por isso que nós precisamos ampliar a educação
cívica e política no sentido amplo da palavra. Eu criei, juntamente com
alguns companheiros, há mais de vinte anos a Escola de Governo. Foi
apenas um início e eu gostaria que fossem multiplicadas as escolas de
formação cívica. Na periferia é preciso multiplicar esse tipo de ensino
para que o povo comece desde já a se revoltar. Se fulano vier pedir
votos para vereador ou prefeito, é preciso saber quem é o fulano, quem o
mandou, quem é o responsável por sua candidatura.
Hoje os trabalhadores menos precarizados do Brasil são
justamente os servidores públicos porque têm condições reais de
questionar a sua situação de trabalho ao enfrentar o seu patrão, que é o
governo. Não seria um pouco radical não legitimar a greve no setor como
instrumento de luta para conquistar e manter direitos?
Em primeiro lugar, a greve no serviço público não é tradicional, é
muito recente. Em segundo lugar, ao invés da greve é preciso estabelecer
instrumentos de proteção especial para os servidores públicos como, por
exemplo, tribunais de arbitragem, estabilidade, garantia de aumento nos
vencimentos pelo menos de acordo com o índice inflacionário e assim por
diante. Tudo aquilo que é para favorecer os servidores públicos e lesa o
patrimônio do povo deve, a meu ver, ser denunciado e banido. É uma
questão que precisa ser mudada.
O senhor disse sobre a existência de oligopólio nas empresas
de comunicação no Brasil. Se o Executivo, Legislativo e Judiciário não
fazem nada contra algo que é proibido pela Constituição, que atitude o
povo pode tomar?
Eu acho que cada um tem uma missão e particularmente acredito que
cumpri a minha. Eu procurei o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) propondo que se fizesse uma ação direta de
inconstitucionalidade por omissão, pela não regulamentação dos
dispositivos constitucionais sobre os meios de comunicação de massa. O
Conselho não aceitou. Então eu procurei o Partido Socialismo e Liberdade
(Psol), que aceitou e a ação foi proposta, que é a ação de
inconstitucionalidade por omissão número 10. Mas essa é uma medida
meramente política.
Do ponto de vista jurídico, o eventual ganho de causa não vai
significar muita coisa porque dará uma recomendação ao Congresso
Nacional para regulamentar a Constituição. Mas é preciso utilizar-se
dessa ação para denunciar o controle que a mídia exerce sobre o
Congresso Nacional. E exerce também sobre o Executivo porque o Advogado
Geral da União que, de acordo com a lei, está sob a imediata supervisão
do Presidente da República, deu parecer contrário à ação.
Até hoje ainda existem instituições criadas pela última
ditadura civil-militar como é o caso da Polícia Militar. E apesar das
denúncias dos movimentos sociais e de estudantes sobre a violência
sistemática cometida pela Corporação, parece que o Estado finge que não
acontece nada. Diante disso, o que se fazer?
Bom, em primeiro lugar, não são todos os movimentos sociais que
protestaram contra o morticínio [na chácara] de Várzea Paulista [no
interior de São Paulo, onde policiais da Rota – Rondas Ostensivas Tobias
de Aguiar – mataram nove pessoas no dia 11 de setembro]. E eu fiquei
surpreso com o fato da Arquidiocese de São Paulo ter protestado contra
as declarações religiosas de um candidato a prefeito da cidade de São
Paulo, mas não ter dito nada sobre esse morticínio planejado e executado
friamente. Foram abatidas nove pessoas com 61 tiros.
Não houve arranhão em nenhum policial militar. Pois bem, quero
lembrar que a Organização das Nações Unidas acaba de se pronunciar
insistindo na supressão da Polícia Militar. Esta é uma proposta que eu
venho defendendo há vários anos pois não faz nenhum sentido a
organização de uma polícia no estilo de forças armadas, porque isso é
uma trágica herança do regime empresarial militar.
Brasil de Fato
Leia mais:
As caricaturas de dirigentes históricos
O estudante José Dirceu durante manifestação na região central de São Paulo em 1968.
Bruno Lima Rocha
Quando o ex-ministro da Casa Civil de Dilma Rousseff, o médico sanitarista Antônio Palocci consumou sua queda do cargo, escrevi nesta publicação um artigo onde caracterizava o próprio, assim como outros dirigentes históricos do mesmo partido, de grotescas caricaturas de si mesmos.
O mês de outubro retoma drama semelhante em cenário diferente. José Dirceu de Oliveira e Silva e José Genoino Guimarães Neto são militantes históricos da esquerda brasileira.
Ambos são réus no Supremo em função de um suposto esquema de compra de votos para formar maioria parlamentar e assim dar base de sustentação a um governo de centro-esquerda, cujo presidente é um líder carismático com ampla aprovação popular.
Ou seja, embora fosse mais difícil, seria perfeitamente possível governar por outra via, não se aliando com as oligarquias de sempre. Dirceu, Genoino e Lula tinham trajetórias respeitáveis, e transformaram suas reputações em capital político a favor da coalizão.
Minha tese é relativamente simples e a crítica está mais à esquerda do que o senso comum. Entendo que a política, realizada em defesa dos interesses das maiorias, é executada sobre uma delicada equação. Esta tende a equilibrar realizações viáveis e um projeto de acumulação de forças, onde o poder se constrói sobre identidade ideológica, pontos de doutrina, objetivos programáticos e movimentos táticos.
Quando um partido começa a abrir mão deste equilíbrio, caímos no vale tudo típico das carreiras políticas tupiniquins. Quando no ano passado caracterizei estes dirigentes históricos como caricaturas do que teriam sido, tomei-os como espelho de toda uma geração militante.
Podemos até conjecturar que o suposto Mensalão nunca existiu (o que duvido), mas não se pode negar o modus operandi da tal da governabilidade. Este foi (e é feito) ao estilo do impagável Severino Cavalcanti (PP-PE).
Como analista, não é possível retirar as responsabilidades de José Genoíno, José Dirceu, Delúbio Soares, Sílvio Pereira e demais correligionários como líderes políticos e dirigentes partidários. Tampouco é correto demonizar apenas estes operadores. Eles não agiam sozinhos e eram (e são) legítimos dirigentes do maior partido de “esquerda” da América Latina.
É triste admitir, mas o preço do pragmatismo político foi tornarem-se caricaturas de seu passado heróico. Ex-guerrilheiros hoje assemelham seu comportamento com o pior da política brasileira: são réus em casos de corrupção, sendo parecidos com os arenistas de sempre. E para quê?
Este artigo foi originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat.
Fonte: Estratégia e Análise
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