Por Bruno Lima Rocha
O Brasil não será como antes, não ao menos em
termos de cultura política. Após dez anos de pasmaceira e vinte e um
anos sem manifestações massivas, o país se reencontra com a luta
política de rua e de massas. Algumas lições foram transmitidas, dentre
as quais elenco três.
Primeiro, a noção de que os direitos fundamentais
não são fruto da ação institucional, mas sim da luta coletiva. Dentro do
rigor fiscal e do contingenciamento de verbas públicas, uma política
distributiva é fruto direto da pressão popular. Do contrário, a rotina
das agendas burocráticas sempre supera a maioria silenciosa. É conta de
chegada. Quando uma parte desta maioria mobiliza-se, os ocupantes de
postos-chave no Estado se vêem contra a parede.
Segundo, a ideia de auto-organização. Este conceito fundamental para o sindicalismo, também chamado de independência de classe, estava esquecido. Não caberia mais colocar gente na rua utilizando como abre alas uma enorme faixa vermelha ou amarela, para fazer um desfile cívico cidadão com parlamentares ou candidatos a cargos eletivos à frente. Ainda estamos longe da consigna da Argentina em dezembro de 2001 (“que se vayan todos!”), mas ao menos está instaurada a desconfiança no processo decisório dos gabinetes e no jogo dos poderes constituídos.
Terceiro, nota-se que finalmente a internet cumpre seu destino manifesto, o de atingir quem se encontrava atomizado, desorganizado. Este papel, o de falar com a maioria que não faz política no dia a dia e informa-se pouco foi possível através da rede mundial de computadores, em especial nas redes de relacionamento. As conversas entre pessoas conhecidas, grupos de afinidade por causas específicas ou temáticas particulares finalmente conseguiu massificar-se no Brasil. Há cinco anos eu participei de uma pesquisa de campo onde se apontava o uso diário da web entre jovens de 14 a 20 anos. Este era banal, para fins privados e sem temas de fundo. Aumentou o tempo de navegação e o uso da internet móvel. Proporcionalmente, dez por cento de milhões de usuários fizeram a diferença nestas jornadas.
O saldo é positivo. A democracia representativa é exercida por pessoas em cargo eletivo, de confiança, comissão e grupos organizados em prol dos agentes econômicos. A democracia que emerge das ruas brasileiras é outra. Não tem “paciência histórica” e aprendeu o traquejo vendo o andar de cima deitar e rolar; primeiro se pressiona para depois negociar margens de conquistas. Definitivamente, esta é uma nova etapa política.
Fonte: Estratégia e Análise
A OAB/MT, em conjunto com a Comissão de
Direito Eleitoral (CDE) da Ordem dos advogados e o Movimento de Combate à
Corrupção Eleitoral de Mato Grosso (MCCE-MT) realizarão audiência
pública com a finalidade de debater assuntos relacionados à necessidade
de reforma política, em especial, a campanha em prol do voto limpo e o
financiamento público de campanha. Leia aqui: Audiência Pública Sobre Reforma Política
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“A vida extrapola o conceito”, já dizia meu confrade Santo Tomás de Aquino, no século 13. Agora, aqui no Brasil, todas as lideranças políticas encaram confusas e despeitadas as recentes manifestações de rua. Com a mesma interrogação invejosa que a esquerda histórica do Brasil mirou o surgimento do PT em 1980: que história é essa de, agora, os proletários quererem ser a vanguarda do proletariado?
Frei Betto
As manifestações de rua no Brasil fundem a cuca de analistas e cientistas políticos. Dirigentes partidários e lideranças políticas se perguntam perplexos: quem lidera, se não estamos lá?
Recordo quando deixei a prisão, em fins de 1973. Ao entrar, quatro anos antes, predominava o movimento estudantil na contestação à ditadura. Ao sair, encontrei um movimento social – Comunidades Eclesiais de Base, oposição sindical, grupos de mães, luta contra a carestia – que me surpreendeu. Do alto de meu vanguardismo elitista fiz a pergunta: como é possível se nós, os líderes, estávamos na cadeia?
Como essa mesma perplexidade Marx encarou a Comuna de Paris, em 1871; a esquerda francesa, o Maio de 1968; e a esquerda mundial, a queda do Muro de Berlim e o esfacelamento da União Soviética, em 1989.
“A vida extrapola o conceito”, já dizia meu confrade Santo Tomás de Aquino, no século 13. Agora, aqui no Brasil, todas as lideranças políticas encaram confusas e despeitadas as recentes manifestações de rua. Com a mesma interrogação invejosa que a esquerda histórica do Brasil mirou o surgimento do PT em 1980: que história é essa de, agora, os proletários quererem ser a vanguarda do proletariado?
Historicamente eram os líderes da esquerda brasileira homens oriundos da classe média (Astrogildo Pereira, Mário Alves e João Amazonas), dos círculos militares (Prestes, Gregório Bezerra, Apolônio de Carvalho) e da intelectualidade (Gorender e Caio Prado Júnior). Marighella foi das raras lideranças provenientes das classes populares.
O recado das ruas é simples: nossos governos se descolaram da base social. Para usar uma categoria marxista, a sociedade política se divorciou da sociedade civil, risco que previ e analisei no livro “A mosca azul – reflexão sobre o poder” (Rocco, 2005).
A sociedade política – executivo, legislativo e judiciário – se convenceu de que representava de fato o povo brasileiro, e mantinha sob seu controle os movimentos de representação da sociedade civil, como ocorre, hoje, com a UNE e a CUT.
Nem só de pão vive o homem, alertou Jesus. Embora 10 anos de governo petista tenham melhorado as condições sociais e econômicas do Brasil, o povo não viu saciada sua fome de beleza – educação, cultura e participação política.
O governo petista optou por uma governabilidade assegurada pelo Congresso Nacional – onde ainda perduram os “300 picaretas” denunciados por Lula. Desprezou a governabilidade apoiada nos movimentos sociais, como fez Evo Morales, com êxito, na Bolívia.
Assim, nosso governo aos poucos perdeu os anéis para conservar os dedos. Acreditou que tudo permaneceria como dantes no quartel de Abrantes. Seja porque a oposição anda enfraquecida por suas próprias disputas internas, seja porque considera Eduardo Campos e Marina Silva meros balões de ensaio.
O que nem a Abin (olhos e ouvidos secretos do governo) previu foi o súbito tsunami popular invadindo as ruas do Brasil em pleno período da Copa das Confederações – quando se esperava que todos estivessem com a atenção concentrada nos jogos.
Agora o governo inventa o discurso de que sem partidos não há política nem democracia. Ora, basta uma aula de história de ensino médio para aprender que a democracia nasceu na Grécia muitos séculos antes da era cristã, e mais ainda do aparecimento de partidos políticos.
Hoje, a maioria dos partidos nega a democracia ao impedir um governo do povo com o povo. Não basta pretender governar para o povo e, assim, considerar-se democrata. O povo nas ruas exige novos mecanismos de participação democrática, enquanto manifesta sua descrença nos partidos. Estes são intimados a renovar seus métodos políticos ou serão atropelados pela sociedade civil.
Eis o recado das ruas: democracia participativa, não apenas delegativa, ou seja, governo do povo, com o povo e para o povo. Isso não é utopia, desde que não se considere modelo perpétuo o pluripartidarismo e se admita que o regime democrático pode e deve ganhar novos desenhos de participação popular nas esferas de poder.
Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
http://www.freibetto.org/> twitter:@freibetto.
Fonte Brasil da Fato
Quem apoiou a Ficha Limpa, assina as Eleições Limpas! Os mesmos criadores do Ficha Limpa estão coletando assinaturas para a Reforma Política por iniciativa popular. Vamos construir uma NOVA forma de fazer política!
https://www.facebook.com/antoniocavalcantefilho.cavalcante
As multidões nas ruas: como interpretar?
Por Leonardo Boff
Esse fato das multidões nas ruas me faz lembrar a peça teatral de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes escrita em 1975: A Gota d’água. Atingiu-se agora a gota d’água que fez transbordar o copo. Os autores de alguma forma intuíram o atual fenômeno ao dizerem no prefácio da peça emforma de livro: "O fundamental é que a vida brasileira possa, novamente, ser devolvida, nos palcos, ao público brasileiro…Nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira”. Ora, esta tragédia é denunciada pelas massas que gritam nas ruas. Esse Brasil que temos não é para nós; ele não nos inclui no pacto social que sempre garante a parte de leão para as elites. Querem um Brasil brasileiro, onde o povo conta e quer contribuir para uma refundação do país, sobre outras bases mais democrático-participativas, mais éticas e com formas menos malvadas de relação social.
Esse grito não pode deixar de ser escutado, interpretado e seguido. A política poderá ser outra daqui para a frente.
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Recado das ruas
“A vida extrapola o conceito”, já dizia meu confrade Santo Tomás de Aquino, no século 13. Agora, aqui no Brasil, todas as lideranças políticas encaram confusas e despeitadas as recentes manifestações de rua. Com a mesma interrogação invejosa que a esquerda histórica do Brasil mirou o surgimento do PT em 1980: que história é essa de, agora, os proletários quererem ser a vanguarda do proletariado?
Frei Betto
As manifestações de rua no Brasil fundem a cuca de analistas e cientistas políticos. Dirigentes partidários e lideranças políticas se perguntam perplexos: quem lidera, se não estamos lá?
Recordo quando deixei a prisão, em fins de 1973. Ao entrar, quatro anos antes, predominava o movimento estudantil na contestação à ditadura. Ao sair, encontrei um movimento social – Comunidades Eclesiais de Base, oposição sindical, grupos de mães, luta contra a carestia – que me surpreendeu. Do alto de meu vanguardismo elitista fiz a pergunta: como é possível se nós, os líderes, estávamos na cadeia?
Como essa mesma perplexidade Marx encarou a Comuna de Paris, em 1871; a esquerda francesa, o Maio de 1968; e a esquerda mundial, a queda do Muro de Berlim e o esfacelamento da União Soviética, em 1989.
“A vida extrapola o conceito”, já dizia meu confrade Santo Tomás de Aquino, no século 13. Agora, aqui no Brasil, todas as lideranças políticas encaram confusas e despeitadas as recentes manifestações de rua. Com a mesma interrogação invejosa que a esquerda histórica do Brasil mirou o surgimento do PT em 1980: que história é essa de, agora, os proletários quererem ser a vanguarda do proletariado?
Historicamente eram os líderes da esquerda brasileira homens oriundos da classe média (Astrogildo Pereira, Mário Alves e João Amazonas), dos círculos militares (Prestes, Gregório Bezerra, Apolônio de Carvalho) e da intelectualidade (Gorender e Caio Prado Júnior). Marighella foi das raras lideranças provenientes das classes populares.
O recado das ruas é simples: nossos governos se descolaram da base social. Para usar uma categoria marxista, a sociedade política se divorciou da sociedade civil, risco que previ e analisei no livro “A mosca azul – reflexão sobre o poder” (Rocco, 2005).
A sociedade política – executivo, legislativo e judiciário – se convenceu de que representava de fato o povo brasileiro, e mantinha sob seu controle os movimentos de representação da sociedade civil, como ocorre, hoje, com a UNE e a CUT.
Nem só de pão vive o homem, alertou Jesus. Embora 10 anos de governo petista tenham melhorado as condições sociais e econômicas do Brasil, o povo não viu saciada sua fome de beleza – educação, cultura e participação política.
O governo petista optou por uma governabilidade assegurada pelo Congresso Nacional – onde ainda perduram os “300 picaretas” denunciados por Lula. Desprezou a governabilidade apoiada nos movimentos sociais, como fez Evo Morales, com êxito, na Bolívia.
Assim, nosso governo aos poucos perdeu os anéis para conservar os dedos. Acreditou que tudo permaneceria como dantes no quartel de Abrantes. Seja porque a oposição anda enfraquecida por suas próprias disputas internas, seja porque considera Eduardo Campos e Marina Silva meros balões de ensaio.
O que nem a Abin (olhos e ouvidos secretos do governo) previu foi o súbito tsunami popular invadindo as ruas do Brasil em pleno período da Copa das Confederações – quando se esperava que todos estivessem com a atenção concentrada nos jogos.
Agora o governo inventa o discurso de que sem partidos não há política nem democracia. Ora, basta uma aula de história de ensino médio para aprender que a democracia nasceu na Grécia muitos séculos antes da era cristã, e mais ainda do aparecimento de partidos políticos.
Hoje, a maioria dos partidos nega a democracia ao impedir um governo do povo com o povo. Não basta pretender governar para o povo e, assim, considerar-se democrata. O povo nas ruas exige novos mecanismos de participação democrática, enquanto manifesta sua descrença nos partidos. Estes são intimados a renovar seus métodos políticos ou serão atropelados pela sociedade civil.
Eis o recado das ruas: democracia participativa, não apenas delegativa, ou seja, governo do povo, com o povo e para o povo. Isso não é utopia, desde que não se considere modelo perpétuo o pluripartidarismo e se admita que o regime democrático pode e deve ganhar novos desenhos de participação popular nas esferas de poder.
Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
http://www.freibetto.org/> twitter:@freibetto.
Fonte Brasil da Fato
Quem apoiou a Ficha Limpa, assina as Eleições Limpas! Os mesmos criadores do Ficha Limpa estão coletando assinaturas para a Reforma Política por iniciativa popular. Vamos construir uma NOVA forma de fazer política!
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SAIBA MAIS
As multidões nas ruas: como interpretar?
As multidões nas ruas me fizeram lembrar a peça teatral de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes escrita em 1975: A Gota d’água. Atingiu-se agora a gota d’água que fez transbordar o copo. Os autores de alguma forma intuíram o atual fenômeno ao dizerem no prefácio: 'Nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira'.
Por Leonardo Boff
Um espírito de insurreição de massas humanas está
varrendo o mundo todo, ocupando o único espaço que lhes restou: as ruas e
as praças. O movimento está apenas começando: primeiro no norte da
África, depois na Espanha com os “indignados”, na Inglaterra e nos EUA
com os “occupies” e no Brasil com a juventude e outros movimentos
sociais. Ninguém se reporta às clássicas bandeiras do socialismo, das
esquerdas, de algum partido libertador ou da revolução. Todas estas
propostas ou se esgotaram ou não oferecem o fascínio suficiente para
mover as massas. Agora são temas ligados à vida concreta do cidadão:
democracia participativa, trabalho para todos, direitos humanos pessoais
e sociais, presença ativa das mulheres, transparência na coisa pública,
clara rejeição a todo tipo de corrupção, um novo mundo possível e
necessário. Ninguém se sente representado pelos poderes instituídos que
geraram um mundo politico palaciano, de costas para o povo ou
manipulando diretamente os cidadãos.
Representa um desafio para qualquer analista interpretar tal fenômeno. Não basta a razão pura; tem que ser uma razão holística que incorpora outras formas de inteligência, dados racionais, emocionais e arquetípicos e emergências, próprias do processo histórico e mesmo da cosmogênese. Só assim teremos um quadro mais ou menos abrangente que faça justiça à singularidade do fenômeno.
Antes de mais nada, importa reconhecer que é o primeiro grande evento, fruto de uma nova fase da comunicação humana, esta totalmente aberta, de uma democracia em grau zero que se expressa pelas redes sociais. Cada cidadão pode sair do anonimato, dizer sua palavra, encontrar seus interlocutores, organizar grupos e encontros, formular uma bandeira e sair à rua. De repente, formam-se redes de redes que movimentam milhares de pessoas para além dos limites do espaço e do tempo. Esse fenômeno precisa ser analisado de forma acurada porque pode representar um salto civilizatório que definirá um rumo novo à história, não só de um país mas de toda a humanidade. As manifestações do Brasil provocaram manifestações de solidariedade em dezenas e dezenas de outras cidades no mundo, especialmente na Europa. De repente o Brasil não é mais só dos brasileiros. É uma porção da humanidade que se indentifica como espécie, numa mesma Casa Comum, ao redor de causas coletivas e universais.
Por que tais movimentos massivos irromperam no Brasil agora? Muita são as razões. Atenho-me apenas a uma. E voltarei a outras em outra ocasião.
Meu sentimento do mundo me diz que, em primeiro lugar, se trata de um efeito de saturação: o povo se saturou com o tipo de política que está sendo praticada no Brasil, inclusive pelas cúpulas do PT (resguardo as políticas municipais do PT que ainda guardam o antigo fervor popular). O povo se beneficiou dos programas da Bolsa Família, da Luz para Todos, da Minha Casa Minha Vida, do crédito consignado; ingressou na sociedade de consumo. E agora o quê? Bem dizia o poeta cubano Ricardo Retamar: “O ser humano possui duas fomes: uma de pão, que é saciável; e outra de beleza, que é insaciável”. Sob beleza se entende educação, cultura, reconhecimento da dignidade humana e dos direitos pessoais e sociais como saúde com qualidade mínima e transporte menos desumano.
Essa segunda fome não foi atendida adequadamente pelo poder publico, seja do PT ou de outros partidos. Os que mataram sua fome querem ver atendidas outras fomes, não em ultimo lugar, a fome de cultura e de participação. Avulta a consciência das profundas desigualdades sociais, que é o grande estigma da sociedade brasileira. Esse fenômeno se torna mais e mais intolerável na medida em que cresce a consciência de cidadania e de democracia real. Uma democracia em sociedades profundamente desiguais, como a nossa, é meramente formal, praticada apenas no ato de votar (que no fundo é o poder escolher o seu “ditador” a cada quatro anos, porque o candidato, uma vez eleito, dá as costas ao povo e pratica a política palaciana dos partidos). Ela se mostra como uma farsa coletiva. Essa farsa está sendo desmascarada. As massas querem estar presentes nas decisões dos grandes projetos que as afetam e sobre os quais não são consultadas para nada. Nem falemos dos indígenas cujas terras são sequestradas para o agronegócio ou para a indústria das hidrelétricas.
Representa um desafio para qualquer analista interpretar tal fenômeno. Não basta a razão pura; tem que ser uma razão holística que incorpora outras formas de inteligência, dados racionais, emocionais e arquetípicos e emergências, próprias do processo histórico e mesmo da cosmogênese. Só assim teremos um quadro mais ou menos abrangente que faça justiça à singularidade do fenômeno.
Antes de mais nada, importa reconhecer que é o primeiro grande evento, fruto de uma nova fase da comunicação humana, esta totalmente aberta, de uma democracia em grau zero que se expressa pelas redes sociais. Cada cidadão pode sair do anonimato, dizer sua palavra, encontrar seus interlocutores, organizar grupos e encontros, formular uma bandeira e sair à rua. De repente, formam-se redes de redes que movimentam milhares de pessoas para além dos limites do espaço e do tempo. Esse fenômeno precisa ser analisado de forma acurada porque pode representar um salto civilizatório que definirá um rumo novo à história, não só de um país mas de toda a humanidade. As manifestações do Brasil provocaram manifestações de solidariedade em dezenas e dezenas de outras cidades no mundo, especialmente na Europa. De repente o Brasil não é mais só dos brasileiros. É uma porção da humanidade que se indentifica como espécie, numa mesma Casa Comum, ao redor de causas coletivas e universais.
Por que tais movimentos massivos irromperam no Brasil agora? Muita são as razões. Atenho-me apenas a uma. E voltarei a outras em outra ocasião.
Meu sentimento do mundo me diz que, em primeiro lugar, se trata de um efeito de saturação: o povo se saturou com o tipo de política que está sendo praticada no Brasil, inclusive pelas cúpulas do PT (resguardo as políticas municipais do PT que ainda guardam o antigo fervor popular). O povo se beneficiou dos programas da Bolsa Família, da Luz para Todos, da Minha Casa Minha Vida, do crédito consignado; ingressou na sociedade de consumo. E agora o quê? Bem dizia o poeta cubano Ricardo Retamar: “O ser humano possui duas fomes: uma de pão, que é saciável; e outra de beleza, que é insaciável”. Sob beleza se entende educação, cultura, reconhecimento da dignidade humana e dos direitos pessoais e sociais como saúde com qualidade mínima e transporte menos desumano.
Essa segunda fome não foi atendida adequadamente pelo poder publico, seja do PT ou de outros partidos. Os que mataram sua fome querem ver atendidas outras fomes, não em ultimo lugar, a fome de cultura e de participação. Avulta a consciência das profundas desigualdades sociais, que é o grande estigma da sociedade brasileira. Esse fenômeno se torna mais e mais intolerável na medida em que cresce a consciência de cidadania e de democracia real. Uma democracia em sociedades profundamente desiguais, como a nossa, é meramente formal, praticada apenas no ato de votar (que no fundo é o poder escolher o seu “ditador” a cada quatro anos, porque o candidato, uma vez eleito, dá as costas ao povo e pratica a política palaciana dos partidos). Ela se mostra como uma farsa coletiva. Essa farsa está sendo desmascarada. As massas querem estar presentes nas decisões dos grandes projetos que as afetam e sobre os quais não são consultadas para nada. Nem falemos dos indígenas cujas terras são sequestradas para o agronegócio ou para a indústria das hidrelétricas.
Esse fato das multidões nas ruas me faz lembrar a peça teatral de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes escrita em 1975: A Gota d’água. Atingiu-se agora a gota d’água que fez transbordar o copo. Os autores de alguma forma intuíram o atual fenômeno ao dizerem no prefácio da peça emforma de livro: "O fundamental é que a vida brasileira possa, novamente, ser devolvida, nos palcos, ao público brasileiro…Nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira”. Ora, esta tragédia é denunciada pelas massas que gritam nas ruas. Esse Brasil que temos não é para nós; ele não nos inclui no pacto social que sempre garante a parte de leão para as elites. Querem um Brasil brasileiro, onde o povo conta e quer contribuir para uma refundação do país, sobre outras bases mais democrático-participativas, mais éticas e com formas menos malvadas de relação social.
Esse grito não pode deixar de ser escutado, interpretado e seguido. A política poderá ser outra daqui para a frente.
Leonardo Boff é teólogo e escritor.
Fonte Carta Maior
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