Martina Spohr, coordenadora do CPDOC/FGV, dá detalhes sobre a atuação do alto empresariado na deposição de Jango: “trabalho com a existência de uma elite orgânica transnacional e anticomunista”
Opera Mundi
Além de atuar no movimento civil-militar que conspirou e depôs o presidente João Goulart em 1964, a elite empresarial brasileira
também manteve, ao longo de todos os anos sessenta, estreito vínculo
com o capital estrangeiro, numa “relação íntima” com os interesses dos
executivos norte-americanos. A afirmação é da historiadora Martina
Spohr, coordenadora da área de Documentação do CPDOC da FGV (Fundação
Getúlio Vargas) e estudiosa do regime ditatorial que vigorou no Brasil
até 1985.
Como muitos pesquisadores que se debruçam sobre o período, Martina
concebe o 31 de março como um golpe classista e empresarial-militar. No mestrado,
"Páginas golpistas: anticomunismo e democracia no projeto editorial do
IPES (1961-1964)", concluído em 2010 pela UFF (Universidade Federal
Fluminense), Martina esmiuçou o projeto editorial do Instituto de
Pesquisas e Estudos Sociais, organização fundada com o objetivo público
de defender a "livre iniciativa" e a "economia de mercado", mas que
funcionou, na prática, como um ponto de encontro de acadêmicos
conservadores, empresários e militares empenhados em desestabilizar o
governo de João Goulart (1961-1964).
No doutorado, em andamento na UFRJ (com uma bolsa-sanduíche na Brown
University, nos EUA), Martina aprofundou a pesquisa sobre os civis que
fizeram o regime militar. Por conta de seu trabalho na chefia do setor
de Documentação do CPDOC/FGV, começou a colecionar indícios de que
muitos dos empresários brasileiros que atuaram com destaque na
conspiração pré-64 também buscavam criar uma espécie de rede empresarial
anticomunista com fortes laços em todo o continente.
Um desses homens de negócios era o paulista Paulo Ayres Filho,
empresário da indústria farmacêutica. Seu acervo particular — que reúne
cartas, recortes de jornal, papéis importantes e cópias de grande parte
da documentação do extinto Ipês-SP — foi doado, pelos herdeiros, ao
CPDOC/FGV, que tradicionalmente trabalha com a organização e a
preservação de arquivos particulares da elite brasileira. Esse material,
tratado por Martina, faz parte do rol de fontes primárias que compõem a
pesquisa provisoriamente intitulada “Elite orgânica transnacional: a
rede de relações político-empresarial anticomunista entre Brasil e
Estados Unidos (1961-1968)”.
“Trabalho com a existência de uma elite orgânica transnacional, que
não estava só no Brasil e tinha seus braços internacionais. Personagens
importantes do empresariado latino-americano estavam de alguma maneira
envolvidos com norte-americanos”, afirma Martina, explicando que foi a
partir de Paulo Ayres Filho, anticomunista ferrenho e um dos fundadores
do Ipês, que pôde começar a mapear essa rede.
[A pesquisadora Martina Spohr é coordenadora do setor de Documentação do CPDOC/FGV e doutoranda em História Social pela UFRJ]
Prendeu em particular a atenção da pesquisadora uma série de
correspondências “de cunho bastante pessoal, chegando mesmo a ser
íntimo”, entre Ayres Filho e David Rockefeller, multimilionário e
magnata do petróleo. David e seu irmão Nelson (vice-presidente dos EUA
de 1974 a 1977) eram dois dos maiores entusiastas da Aliança para o
Progresso, projeto político que sintetizava os interesses dessa “elite
orgânica transnacional”: um programa anticomunista de integração
regional levado a cabo pelos EUA no auge da Guerra Fria para lutar
contra o que seus defensores chamavam de “cubanização” do continente.
Paulo Ayres Filho teve atuação destacada em um importante episódio que
evidenciava o elo entre os altos capitalistas do continente. Em 1963,
evento sediado em Nova York proporcionou um encontro informal de
empresários das Américas congregando 67 homens de negócios de 11 países
do continente. Na ocasião, cinco executivos brasileiros — quase todos
importantes lideranças do Ipês — puderam estabelecer contato com os
altos escalões da política e da economia dos Estados Unidos. Paulo Ayres
Filho foi um deles. E o principal, diga-se: foi escolhido porta-voz do
grupo de latino-americanos para encontrar pessoalmente o presidente John
F. Kennedy.
Não por acaso, um dos temas preferidos pelos norte-americanos no
encontro foi justamente a discussão da Aliança para o Progresso. Na
documentação analisada, Martina Spohr pôde constatar que os empresários
dos EUA tinham grande interesse em tornar o projeto conhecido (de
maneira positiva, obviamente) no Brasil. Por outro lado, os brasileiros
aproveitaram o ensejo para criticar certos aspectos da política externa
econômica dos Estados Unidos que prejudicavam seus interesses
comerciais.
"Companheiros da aliança": selo brasileiro emitido em 14 de março de 1966 fazendo referência à Aliança para o Progresso
Além disso, em entrevistas concedidas a jornais após a volta para o
Brasil, também é possível perceber “uma certa militância política dos
empresários brasileiros”. Uma tentativa, conforme explica Martina, de
“conscientizar” a elite econômica brasileira, que se sentia “ameaçada”
pelo contexto político do país. “Eles estavam chamando o empresariado a
participar do processo. E os norte-americanos incentivavam esse tipo de
discurso”, afirma a historiadora.
A pesquisa desenvolvida por Martina, entretanto, não fica restrita à
atuação dos empresários brasileiros na conspiração que culminou com a
derrubada de João Goulart. Até 1968 — ano que marca a radicalização da
ditadura brasileira com a edição do AI-5,
a chegada da linha dura ao poder e o consequente afastamento de muitos
dos setores liberais que haviam apoiado o golpe —, Paulo Ayres Filho
recorrentemente viajaria aos EUA para palestrar nas principais
universidades do país, “com o objetivo de trazer algum tipo de
legitimidade para o novo governo do Brasil”.
Apesar do apoio norte-americano,
parcelas do establishment internacional estavam questionando o regime
brasileiro pelo rompimento institucional e inconstitucional que
representou o golpe de 64 e a tomada do poder pela força. “Havia uma
busca desse empresariado para tentar justificar a ‘revolução’. E não só
nos EUA; eles também foram para países como Alemanha e França”, assinala
Martina Spohr.
Fonte Opera Mundi
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