Três horas de julgamento bastaram para que um tribunal temporariamente instalado no Tuca, teatro da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, reunisse cinco décadas de luta pela memória, verdade e justiça no país e condenasse politicamente a interpretação oficial da Lei nº 6.683, conhecida como Lei da Anistia.
Douglas Mansur
Tribunal Tiradentes III resgata júris que ilegalizaram Lei de
Segurança Nacional e Colégio Eleitoral nos anos 1980. Objetivo é
reverter impunidade dos crimes contra a humanidade cometidos na ditadura
Por Tadeu Breda,
Três
horas de julgamento bastaram para que um tribunal temporariamente
instalado no Tuca, teatro da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de
São Paulo, reunisse cinco décadas de luta pela memória, verdade e
justiça no país e condenasse politicamente a interpretação oficial da
Lei nº 6.683, conhecida como Lei da Anistia. Aprovado pelo Congresso
Nacional em 1979, ainda durante a ditadura, o texto restabelece os
direitos políticos de quem se opôs e foi perseguido pelo regime. E, de
acordo com entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) proferido em
2010, também exime de punição agentes do Estado que torturaram, mataram,
estupraram e desapareceram com os corpos de membros da dissidência
durante os anos de chumbo.
Organizada para
contestar a versão do Supremo, a corte simbólica instalada ontem (18) se
fez batizar Tribunal Tiradentes III, em referência aos tribunais
políticos de 1983 e 1984 que julgaram e condenaram, respectivamente, a
Lei de Segurança Nacional e o Colégio Eleitoral, também obras políticas
da ditadura que então terminava. “Naquela época, aprendemos que muitas
vezes um júri simulado proclama sentenças mais verdadeiras que os
tribunais tradicionais”, lembrou o ex-deputado federal Luiz Eduardo
Greenhalgh, advogado de vários presos políticos na época dos generais.
“Desde então, ninguém mais foi condenado com base na Lei de Segurança
Nacional.”
Apesar de ser uma encenação, uma
quimera judicial para as vítimas da ditadura, o Tribunal Tiradentes III
tem a indisfarçável pretensão de incidir sobre a realidade da Justiça
brasileira. “Estamos fazendo um julgamento simulado de um aspecto
específico da Lei de Anistia: o artigo 1º, parágrafo 1º, que estendeu a
anistia também aos agentes do Estado”, continuou Greenhalgh. “A questão
discutida aqui é a seguinte: os integrantes do aparelho da repressão
política podem continuar sendo beneficiários da Lei de Anistia?”
Todos
os presentes responderiam mentalmente: não. E aplaudiriam de pé a
concisa sentença que mais tarde seria lida pelo presidente do tribunal, o
jornalista Juca Kfouri, excluindo do “manto protetor” da anistia “todos
os autores de crimes contra a humanidade, tais como homicídio, tortura,
estupro, sequestro, desaparecimento forçado, ocultação e destruição de
cadáveres de oponentes políticos”.
Esse foi o
cerne do veredicto – punir os lacaios da repressão –, mas não seu único
ditame. “São também responsáveis todos os agentes públicos que
auxiliaram os autores de tais crimes, como médicos e enfermeiros; e
todos os agentes estatais mandantes de tais crimes”, proferiu Kfouri. O
presidente da corte responsabilizou ainda todos os que colaboraram na
montagem do sistema de terrorismo de Estado, e todos os que dentro e
fora do governo trabalharam pela aprovação da Lei de Anistia, entendida
pelos membros do júri como um perdão autodirigido.
Finalmente,
o Tribunal Tiradentes III condenou todos os chefes ou integrantes dos
órgãos públicos da União que persistem em descumprir os pontos
decisórios da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos ao julgar o caso Gomes Lund. Em 2010, o colegiado da Organização
dos Estados Americanos (OEA) condenou o Brasil por não haver
responsabilizado e punido os responsáveis pelo assassinato de mais de 60
pessoas na Guerrilha do Araguaia, e também por se utilizar da Lei de
Anistia para barrar investigações e punições aos crimes perpetrados pela
ditadura.
Julgamento
Os
trabalhos da corte imaginária tiveram início às 19h45 e se estenderam
até às 22h50. As 672 poltronas do Tuca foram ocupadas, sobretudo por
jovens. Muita gente acompanhou a performance em pé, ao fundo da plateia,
e também por um telão instalado do lado de fora do teatro. O júri que
endossou a condenação da Lei de Anistia estava composto por seis
membros, representando setores organizados da sociedade brasileira que
sofreram com a repressão ou lutaram contra as arbitrariedades da
ditadura: CUT, União Nacional dos Estudantes (UNE), Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e a classe
artística, representada pelo ator Sérgio Mamberti.
O
julgamento contou ainda com a participação de testemunhas que deram fé
da inaplicabilidade da Lei de Anistia. Uma das mais ovacionadas,
Amelinha Teles, uma das vítimas da repressão, lembrou que a punição aos
agentes da ditadura é uma bandeira antiga dos perseguidos políticos e
seus familiares. “Nunca tivemos dúvida em defender a punição aos
torturadores e agentes que sequestraram e mataram. Essa tem sido nossa
constante”, afirmou. “Os familiares ainda em plena ditadura buscaram
incansavelmente os vestígios dos crimes do Estado terrorista. Coube e
ainda cabe a eles, os familiares, todo o ônus das buscas e das provas.”
Amelinha
invocou um trecho da Lei 6.683/1979 que exclui da anistia os
responsáveis pelos crimes de sangue, como “terrorismo, assalto,
sequestro e atentado pessoal”. “Os militares não permitiram que fossem
anistiados os militantes que participaram da luta armada, mas
beneficiaram os torturadores”, lembra. “Os torturadores têm as mãos
sujas de sangue de nossos companheiros assassinados nos quartéis,
centros clandestinos e unidades do DOI-Codi.”
Para
o procurador da República Marlon Weichert, outra testemunha arrolada
pelo Tribunal Tirandentes III, a Lei de Anistia foi um entrave à
promoção da justiça e da verdade desde sua edição. “Isso significa que
estamos interpretando os direitos humanos com os óculos dos ditadores e
da Constituição de 1969, que foi outorgada. Uma lei como essa não pode
ser válida”, defendeu. “Tão escandalosamente injusta, não pode ser fonte
de direito, pois privilegia o torturador em benefício da vítima.”
Weichert
ponderou, porém, que nem seria necessário revogar a legislação vigente.
“Falta-nos apenas a coragem e a disposição político-institucional de
assumir a inconstitucionalidade da interpretação oficial e de admitir
que ela também é incompatível com o direito internacional dos direitos
humanos”, anotou. “Falta hombridade política.”
O
testemunho do deputado estadual Adriano Diogo (PT) foi o mais celebrado
pela plateia. O parlamentar, que preside a Comissão da Verdade do Estado
de São Paulo “Rubens Paiva”, conectou a Lei da Anistia à necessidade de
punir crimes do passado e abusos de autoridade que continuam ocorrendo
no país. “Concordar com a atual interpretação da lei é concordar que as
ocorrências da PM continuem a ser preenchidas como resistência seguida
de morte. É concordar com todas as chacinas e grupos de extermínio das
polícias militares do Brasil, inclusive arrastando cidadãos pelas ruas
em viaturas”, enumerou, em referência ao caso da carioca Cláudia da
Silva Ferreira, morta no último domingo (16).
“Concordar
com a Lei de Anistia é sepultar definitivamente cerca de 500
companheiros que foram mortos sem que seus corpos tenham sido devolvidos
às famílias. É concordar que 80 mil brasileiros torturados não tenham
direito a ter suas vidas revisadas. É concordar com o genocídio dos
indígenas e camponeses. É concordar com a mídia concentrada nas mãos de
cinco ou seis famílias que dirigem o país”, complementou, pedindo em
seguida a abertura dos arquivos militares.
A
intervenção do secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania de
São Paulo, Rogério Sottili, seguiu na mesma linha. Segundo ele, alterar a
interpretação oficial é um passo imprescindível para avançar na
consolidação da democracia. “A impunidade arraigada reforça os
estereótipos das forças de segurança. Convivemos com estatísticas
inaceitáveis de mortes de pessoas pelas mãos do Estado. A mortalidade de
jovens negros e da periferia é crescente, especialmente por homicídios
cometidos pela polícia”, sintetizou.
Sottili
argumentou ainda que as “atrocidades” cometidas pelos agentes do Estado
brasileiro durante a ditadura jamais poderiam ter sido consideradas
crimes políticos ou conexos, como referenda a Lei de Anistia. “Tortura,
desaparecimento forçado e estupro são crimes comuns. Não há a menor
possibilidade de considerar essas condutas como conexas a qualquer
eventual crime político, que não poderiam de todo modo ser cometidos por
agentes estatais: como representantes do poder, eles não podiam lançar
mão de crimes para fazer a disputa política.”
Também
convocada como testemunha, a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP)
contestou a ideia de que a Lei 6.683 foi fruto de consenso social, como
defenderam os ministros do STF. “Ao contrário, a sociedade queria
impedir a aprovação de uma lei manca, uma lei que é um absurdo
jurídico”, afirmou. Como em 2010 os magistrados se valeram do argumento
de que a Lei da Anistia respeitava a Constituição e que, por isso, o
Supremo não tinha competência para derrubá-la, Erundina resolveu agir
dentro do Congresso.
“Se foi o Legislativo, um dos
Poderes da República, que aprovou essa lei, esse mesmo Poder também tem
a prerrogativa de rever essa decisão”, raciocinou a ex-prefeita de São
Paulo, autora do projeto de Lei 573, de 2011, que tem esse objetivo, mas
está parado na Comissão de Justiça e Cidadania da Câmara sem previsão
de que seja votado. “Por isso minha esperança de que o impacto desse
tribunal e sua repercussão na sociedade criem condições políticas para
pressionar o Congresso.”
Debate
Após
a intervenção das testemunhas, a Lei de Anistia teve a chance de ser
defendida pelo desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo,
Antônio Carlos Malheiros. Não foi uma defesa convincente, uma vez que
nem mesmo seu advogado parecia acreditar na legitimidade da legislação
ou de sua interpretação oficial. Com afirmações carregadas de ironia,
Malheiros aferrou-se à ideia de que o julgamento realizado pelo STF em
2010 era definitivo. Portanto, disse, não há mais nada a fazer em
relação à Lei 6.683, a não ser aceitá-la.
De
acordo com a defesa, os detratores da ditadura fariam melhor
dedicando-se a desnudar as arbitrariedades do regime, revelando a
identidade dos torturadores e dos responsáveis pelas mortes e
desaparecimentos, e colocando seus rostos diariamente na imprensa, para
uma espécie de linchamento público de suas reputações. “De posse da
verdade, renovaremos as forças para construir um país mais democrático,
repudiando as torturas que ocorreram e que ocorrem”, sublinhou, citando
um trecho da música de Almir Sater: “Penso que seguir a vida seja
simplesmente conhecer a marcha e ir tocando em frente.” A plateia riu.
Malheiros
também sugeriu aos presentes que, se querem ver agentes da ditadura na
cadeia, que se dediquem a instaurar ações penais sobre o Riocentro.
Ocorrido em 1981, próximo a um show comemorativo de 1º de Maio, a
tentativa de atentado a bomba empreendida por militares no Rio de
Janeiro para incriminar opositores do regime está excluída do guarda
chuva temporal da Lei de Anistia, que compreende apenas crimes políticos
cometidos entre 1961 e 1979.
No mais, o advogado
de defesa limitou-se a ler as palavras do ministro Eros Grau, relator da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 153 movida pela
OAB no Supremo contra a Lei de Anistia em 2010. E o fez a contragosto.
“Vou pular uma montanha de coisa do Eros Grau, senhor presidente”,
disse. “Já não aguento mais.”
O ponto alto do
julgamento se deu com a acusação proferida pelo jurista Fábio Konder
Comparato, que tomou a palavra subvertendo seu próprio papel na corte.
“Ao contrário do que falaram, não estou aqui como acusador, mas como
defensor daquele que nunca esteve presente nos momentos decisivos da
nossa história: o povo brasileiro.”
A exposição de
Comparato se estendeu por 50 minutos, nos quais o professor de Direito
da Universidade de São Paulo (USP) sintetizou as origens e razões do
golpe de 1964, que classificou como fruto de uma aliança entre as elites
econômicas, a classe política tradicional, os militares e o
imperialismo norte-americano contra o protagonismo popular que então se
intensificava no país – e que contava com a chancela do presidente João
Goulart.
O jurista lembrou que, para manter-se no
poder, essa coalizão inaugurou um período de “terrorismo de Estado”
inédito na história do Brasil, e que àquela altura da história já havia
sido condenado pelo Tribunal de Nuremberg, constituído para julgar os
crimes do nazismo. “Não é possível, nos casos de terrorismo de Estado,
que se possa reconhecer a impunidade, porque a principal vítima – desde
1945 isso é reconhecido internacionalmente – é a humanidade. E nenhum
Estado representa a humanidade.”
Comparato
recordou símbolos da articulação política e econômica da repressão, como
a Operação Bandeirantes (Oban), a Casa da Morte de Petrópolis, o
desmantelamento da Guerrilha do Araguaia e a Operação Condor, que
aproximou as ditaduras do Cone Sul. “As principais responsáveis pelo
terrorismo de Estado foram as Forças Armadas”, lembrou o jurista, sem
esquecer de seus colaboradores: banqueiros, empresários reunidos na
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e donos dos
grandes meios de comunicação.
“Para controlar a
propaganda do regime, era preciso fazer parcerias com veículos de massa.
E resolveram convocar a Rede Globo. Em 1969, a Globo tinha três
emissoras de TV, em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Quatro
anos depois, teria 11.”
Comparato dedicaria ainda
argumentos para sustentar as determinações da Corte Interamericana de
Direitos Humanos sobre a injustiça da Lei de Anistia. E foi mais uma voz
– a mais eloquente da noite – a questionar o Estado brasileiro por
descumpri-la, desrespeitando um tratado internacional do qual é
signatário. “A principal vítima do mais longo regime de exceção da
história do Brasil, 21 anos, foi o povo”, concluiu, lançando a pergunta:
“Como evitar a repetição de crimes coletivos dessa natureza?”
Providências
Ao
final do julgamento, o presidente do Tribunal Tiradentes III entregou
cópias da sentença ao padre Julio Lancelotti, com a incumbência de
fazê-la chegar ao papa Francisco, e à psicanalista e escritora Maria
Rita Kelh, membro da Comissão Nacional da Verdade (CNV), com o
compromisso de incluir a decisão da corte política no relatório que o
grupo deverá apresentar ao país no final do ano.
“Não
sei bem o que é insegurança jurídica”, admitiu Maria Rita Kehl,
referindo-se ao argumento apresentado pela defesa, de que um novo
julgamento da Lei de Anistia pelo STF poderia trazer desconfiança sobre a
estabilidade das instituições brasileiras. “Mas eu sei o que é
insegurança. E não falo do medo da classe média em ser assaltada. Falo
da insegurança de uma sociedade inteira que sente que não pode confiar
nos agentes do Estado destinados a protegê-la.”
“Tenho
a esperança de que, se essa sentença for cumprida, mesmo no clima de
evidente conflito que desencadeará, porque os torturadores jamais
aceitarão ser condenados, o país inteiro vai se sentir mais seguro”,
prevê. “Então, estará claro e declarado que ninguém está acima da lei.”
Fonte Rede Brasil Atual
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