Tal fato não só envergonha o Brasil como afronta os valores democráticos.
Ditadores sabiam das torturas no Doi-Codi e Cenimar
Por Mário Augusto Jakobskind
O jornal O Dia prestou um serviço de utilidade pública ao antecipar informação da Comissão Estadual da Verdade
segundo a qual o ditador Emílio Médici guardava em seus arquivos
pessoais um dossiê sobre pelo menos três presas políticas que foram
submetidas a torturas.
Trocando em miúdos, o material encontrado prova que Médici e outros
generais que governaram o país à força sabiam que se torturava nos
quartéis de forma covarde, inclusive contra mulheres que se opunham ao
regime hediondo implantado depois da derrubada do Presidente
constitucional João Goulart.
Não era uma ação de psicopatas, como tentou num primeiro momento convencer a opinião pública, mas uma política de Estado.
A informação, pelo menos até o momento que estava sendo elaborada
esta reflexão, não teve a repercussão que se imagina deveria ter.
Pelas informações oficiais já conhecidas, está na hora das Forças Armadas pedirem desculpas pelo que o grupo de meliantes que tomou conta do país fez nos 21 anos de ditadura civil militar.
Está na hora também de uma vez por todas mudar os nomes de ruas,
avenidas, colégios etc que homenageiam ditadores, como o próprio Médici,
Castelo Branco, Costa e Silva, Geisel e João Figueiredo, bem como
outras figuras do gênero vinculadas ao período ditatorial.
Tal fato não só envergonha o Brasil como afronta os valores democráticos.
É também importante sempre lembrar que crimes de lesa humanidade como
os cometidos durante o período de exceção pós 64 são imprescritíveis,
como é consenso no mundo.
Só assim o Brasil virará definitivamente a página hedionda de sua história.
Quase ao mesmo tempo em que a Comissão Nacional da Verdade
divulgava o relatório elaborado em mais de dois anos de trabalho, um
parlamentar do gênero delinquente, discursava no plenário da Câmara de
forma a agredir em forma de baixo nível a deputada Maria do Rosário,
defensora histórica dos direitos humanos.
Bolsonaro, apoiador veemente do regime ditatorial no Brasil é useiro e
vezeiro em desrespeitar quem defende os direitos humanos. Quando ele
ocupa o plenário da Câmara acha que está em um quartel dos anos 70,
especialmente numa dependência onde se cometiam inúmeros crimes de lesa
humanidade.
O deputado do PP anda até circulando pela Academia Militar das
Agulhas Negras pregando o ódio e defendendo o regime ditatorial,
conforme pode ser visto em vídeo que circula na internet.
Está na hora da Comissão de Ética da Câmara dos Deputados tomar
alguma providência contra Bolsonaro, uma figura perniciosa, que
representa o que há de mais retrógrado na sociedade brasileira. Ou será
que há dúvidas a esse respeito?
A democracia foi conquistada com muito sacrifício e não se pode
admitir que golpistas de ontem e hoje tentem fazer com que o Brasil se
veja ameaçado por figuras que agora saem às ruas para defender o regime
hediondo imperante no Brasil depois da queda de Jango ou pregue o
impeachment da atual presidenta por não se conformarem até agora com o
resultado do segundo turno presidencial.
Aliás, em matéria de manifestações do gênero golpista, a última
realizada em São Paulo, sempre na Avenida Paulista, foi convocada pelo
derrotado Aécio Neves, que nem apareceu por lá.
José Serra, o senador eleito por São Paulo esteve lá discursando e
desancou contra a política externa atual. Ele e seus pares tucanos não
se conformam com os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul)
e com a integração latino-americana. Têm a mesma posição que o
Departamento de Estado norte-americano. Ou será apenas coincidência?
Mário Augusto Jakobskind, jornalista e escritor,
correspondente do jornal uruguaio Brecha; membro do Conselho Curador da
Empresa Brasil de Comunicação (TvBrasil). Seus livros mais recentes:
Líbia – Barrados na Fronteira; Cuba, Apesar do Bloqueio e Parla , será
lançado dia 17, no Rio de Janeiro.
Direto da Redação é um fórum de debates, do qual participam
jornalistas colunistas de opiniões diferentes, dentro do espírito de
democracia plural, editado, sem censura, pelo jornalista Rui Martins.
Fonte Correio do Brasil
Saiba mais
A PRINCIPAL RECOMENDAÇÃO DA CNV FICARÁ SÓ NO LERO LERO?
Náufrago da Utopia
"Não guardo mágoa,
não blasfemo, não pondero
Não tolero lero lero,
devo nada pra ninguém"
(Cacaso)
Tem
gente demais escrevendo sobre o relatório final da Comissão Nacional da
Verdade, que será tema obrigatório ao longo desta semana e,
provavelmente, notinha de rodapé na próxima.
Então, evitando entediar os leitores, vou separar o joio do trigo, o que
realmente importa do supérfluo, do rancoroso e do oba oba palaciano.
Em 1979, as altas autoridades da ditadura negociaram com a oposição
consentida uma anistia recíproca, que não passou da imposição da vontade
dos vencedores sobre os vencidos: o preço da libertação de presos
políticos e da permissão para que exilados voltassem a salvo de
represálias foi o perdão eterno dos agentes crapulosos do Estado e seus
mandantes.
A barganha espúria teve a conseqüência de manter o passado insepulto; há
três décadas e meia seus fantasmas teimam em assombrar a Nação
brasileira.
A ONU, a OEA e o Direito internacional acertadamente consideram
aberrantes e ilegais esses simulacros de anistias emanados de ditaduras,
pois a desigualdade de forças determina invariavelmente o resultado .
Canso de indagar: se Adolf Hitler houvesse montado farsa semelhante
quando os aliados desembarcaram na Normandia, os altos dirigentes
nazistas seriam poupados do julgamento de Nuremberg?
Então, cabia ao Estado brasileiro, como uma das primeiras medidas da
redemocratização, revogar a Lei de Anistia imposta --um mero habeas
corpus preventivo de que os torturadores e seus mandantes se muniram-- e
substitui-la por outra, compatível com um Estado de direito.
O governo de José Sarney (logo quem!) não fez a lição de casa, assim como não a fizeram todos os presidentes da República depois dele.
Em 2008, o lançamento do livro Direito à Memória e à Verdade
e a insubmissão de alguns comandantes militares que peitaram o governo,
acendeu a polêmica no seio do Ministério de Luiz Inácio Lula da Silva.
Os ministros Tarso Genro e Paulo Vannuchi defendiam a revisão da anistia
de 1979, mas perderam a parada para a corrente do imobilismo, da
omissão e da covardia, liderada pelo ministro da Defesa Nelson Jobim.
Lula instruiu os ministros enaltecerem os resistentes, mas não tomarem
nenhuma iniciativa concreta, em nome do seu governo, contra a Lei da
Anistia.
Evidentemente, com o Executivo fora da jogada, não se poderia esperar grande coisa do Legislativo e do Judiciário.
Que o primeiro fingiria nada ter a ver com a encrenca era a chamada caçapa cantada.
Pior ainda fez o Supremo Tribunal Federal em 2010, ao considerar
plenamente válida uma armação que fez lembrar os sequestros de pessoas:
os indiscutíveis representantes dos algozes mantiveram centenas de
vítimas como reféns até que os presumidos representantes das ditas cujas
concordassem em pagar o resgate exigido. Os que chamam isso
de pacto, devem ter em mente a acepção goethiana do termo; os Faustos
foram infaustos, enquanto Mefistófeles estava mefistofélico como nunca.
Genro e Vannuchi, para salvarem a própria imagem depois que Lula os
desautorizou a cumprirem com seu dever, apontaram o caminho dos
tribunais para os inconformados com a impunidade dos ogros. Várias
tentativas têm sido feitas desde a ação pioneira da família Telles
contra o torturador-mor Carlos Alberto Brilhante Ustra, algumas até indo
além das primeiras instâncias, sem que, contudo, fosse ultrapassado o
derradeiro obstáculo: o STF.
Agora Dilma Rousseff terá outra oportunidade de fazer o que é certo,
tomando a única atitude capaz de destravar esses processos: a de colocar
todo o peso do governo federal a favor da revisão da Lei da Anistia.
Caso contrário, a principal recomendação da CNV --acabar com a
impunidade dos verdugos-- ficará no lero lero.
Talvez seja sua última chance de honrar o passado de resistente e
torturada, depois de haver olimpicamente ignorado a decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos sobre os mortos do Araguaia.
Há quem acredite que, pelo menos no caso do atentado ao Riocentro, o STF
deixará de se comportar como guardião da impunidade dos hediondos;
afinal, cronologicamente, tal ação terrorista, datada de abril de 1981,
não estava mais sob o guarda-chuva protetor da Lei da Anistia. Mas,
ainda que isto ocorra, nada indica que abrirá um precedente para a
condenação de réus de cometeram suas bestialidades no período permitido (até 15 de agosto de 1979). Não nos iludamos.
E é também sem ilusões que devemos encarar a possibilidade de que,
façamos o que fizermos, talvez nenhum dos 196 acusados pela CNV acabe
preso. Nossa Justiça é morosa ao extremo e permite uma infinitude de
manobras protelatórias para os que podem pagar bons advogados. Mais da
metade já morreu e, dada a idade avançada, poucos alcançarão a próxima
década. Será melhor colocarmos nossas esperanças na justiça divina...
Ainda assim, não podemos fechar esta página vergonhosa da nossa História com um veredito tão dúbio.
Por um lado, o Estado brasileiro estaria admitindo que seus agentes
podem ser anistiados após executarem prisioneiros indefesos, estuprarem,
torturarem, maltratarem crianças para coagirem pais, ocultarem
cadáveres, etc.
Por outro, instituiu as comissões de Mortos e Desaparecidos Políticos, de Anistia e da Verdade para apurarem as atrocidades do período e, as duas primeiras, concederem reparações às vítimas ou seus herdeiros.
O que isto sinaliza para os pósteros? Que, em determinadas
circunstâncias, eles poderão cometer os crimes mais atrozes sem serem
punidos, correndo apenas o risco de ficarem com péssima imagem. Os
cínicos concluirão que as generosas recompensas para quem serve aos
déspotas compensam o mico de depois figurarem na História como vilões e
serem alvos de escrachos...
É por isto que se impõe a substituição do simulacro de anistia por uma anistia de verdade!
Os tentados a atentarem contra as instituições (e eles têm mostrado a
cara por aí!) saberão que, da próxima vez, tendem a não escapar tão
facilmente do merecido castigo.
Para os governantes que têm paúra de quarteladas, uma sugestão: se querem conceder algo aos velhos gorilas
para apaziguá-los, que seja a garantia de não encarceramento dos
condenados. Que, lá no fim da linha, os poucos que tiverem sobrevivido à
maratona jurídica sejam indultados por velhice e/ou doença grave, ou
mantidos em prisão domiciliar. Certamente não mostraram idêntica
consideração para com nossos velhos, mas temos a obrigação de ser
melhores do que eles.
No entanto, é como oficialmente culpados que eles têm de passar à História. Se quisemos respeitarmo-nos como povo e como nação. Se tivermos vergonha na cara.
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