sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Dois Revolucionários

   


Dois Revolucionários


Por Ricardo Flores Magón*

"O revolucionário velho e o revolucionário moderno se encontraram, numa tarde, marchando em direções opostas. O sol mostrava a metade de sua brasa por cima da longínqua serra; afundava-se o rei do dia, afundava-se irreversivelmente, e como tivesse consciência de sua derrota para a noite, avermelhava-se de cólera e cuspia sobre a terra e o céu as suas mais belas luzes.

Os dois revolucionários se olharam cara a cara: o velho, pálido, descomposto, o rosto enrugado como um papel barato arremessado ao lixo, cortado aqui e ali por feias cicatrizes, os ossos denunciando as suas angulosidades por debaixo do traje roto. O moderno, ereto, cheio de vida, o rosto iluminado pelo pressentimento da glória, também com o traje roto, mas levando-o com orgulho, como se fosse a bandeira dos deserdados, o símbolo de um pensamento comum, a senha dos humildes feitos soberbos ao calor de uma grande ideia.

- Aonde vais?, perguntou o velho.

- Vou lutar por meus ideais, disse o moderno; e tu, aonde vais?, perguntou por sua vez.

O velho tossiu, cuspiu colérico no chão, deu uma olhada para o sol, cuja mesma cólera ele sentia, e disse:

- Eu não vou; eu já estou de regresso.

- E o que trazes?

- Desenganos, disse o velho. Não vá à revolução: eu também fui à guerra e já vês como regresso: triste, velho, com o corpo e o espírito maltratados.

O revolucionário moderno lançou um olhar que abarcou o espaço, seu rosto resplandecia; arrancava uma grande esperança do fundo do seu ser, que se assomava ao seu rosto. Disse ao velho:

- Soubeste pelo que lutaste?

Sim: um malvado tinha dominado o país; nós, os pobres, sofríamos a tirania do Governo e a tirania dos homens ricos. Nossos melhores filhos eram encerrados no quartel; as famílias, desamparadas, prostituiam-se ou pediam esmola para poder viver. Ninguém podia olhar de frente para o mais baixo policial; a menor queixa era considerada ato de rebeldia. Um dia, um bom senhor disse aos pobres: “Concidadãos, para acabar com o presente estado de coisas, é necessário que haja um câmbio de governo; os homens que estão no Poder são ladrões, assassinos e opressores. Tiremo-los do Poder, elejam-me Presidente e tudo mudará”. Assim falou o bom senhor; em seguida, deu-nos armas e nos precipitamos para a luta. Triunfamos. Os malvados opressores foram mortos e elegemos ao homem que nos deu as armas para que fosse Presidente, e nós fomos trabalhar. Depois de nosso triunfo, seguimos trabalhando exatamente como antes, como mulas e não como homens; nossas famílias seguiram sofrendo com a escassez; nossos melhores filhos continuaram sendo levados para o quartel; as contribuições continuaram sendo cobradas com exatidão pelo novo Governo e, em vez de diminuírem, aumentavam; tínhamos que deixar nas mãos de nossos amos o produto do nosso trabalho. Da vez que tentamos declarar greve, mataram-nos covardemente. Já vês como eu soube pelo que lutava: os governantes eram maus e era preciso trocá-los por bons. E já vês como os que disseram que iriam ser bons, tornaram-se tão maus como os que destronamos. Não vá à guerra. Vais arriscar a sua vida para alçar um novo amo.

Assim falou o revolucionário velho; o sol se afundava sem remédio, como se uma mão gigantesca houvera ficando garras nele por detrás da montanha. O revolucionário moderno sorriu, e replicou:

Companheiro: vou à guerra, mas não como tu foste e foram os de tua época. Vou à guerra, não para elevar nenhum homem ao Poder, senão para emancipar a minha classe. Com o auxílio deste fuzil, obrigarei nossos amos a afrouxarem a garra, para que soltem o que há milhares de anos têm tirado dos pobres. Tu encomendaste a outro homem a tua felicidade; eu e meus companheiros vamos fazer a felicidade de todos por nossa própria conta. Tu encomendaste a notáveis advogados e homens da ciência o trabalho de fazer leis, e era natural que as fizessem de tal modo que ficasses enredado nelas, e no lugar de ser instrumento de liberdade, foram instrumentos de tirania e de infâmia. Todo o teu erro e o dos que, como tu, têm lutado, é esse: dar poderes a um indivíduo ou a um grupo de indivíduos para que se entreguem à tarefa de fazer a felicidade dos demais. Não, amigo meu; nós, os revolucionários modernos, não buscamos amparos, nem tutores, nem fabricantes de ventura. Nós vamos conquistar a liberdade e o bem-estar por nós mesmo, e começamos por atacar a raiz da tirania política, e essa raiz é o chamado “direito de propriedade”. Vamos arrebatar das mãos de nossos amos a terra, para entregá-la ao povo. A opressão é uma árvore: a raiz desta árvore é o chamado “direito de propriedade”; os troncos, os ramos e as folhas são os policiais, os soldados, os funcionários de todas as classes, grandes e pequenos. Pois bem: os revolucionários velhos hão se entregado à tarefa, em todos os tempos, de derrubar essa árvore; derrubam-na, e ela retorna, e cresce e se robustece; voltam-se-lhe a derrubar, e ela volta a retornar, e a crescer e a robustecer. Isso tem sido assim porque não se há atacado a raiz da árvore maldita; a todos lhes há dado medo de sacá-la das entranhas da terra e trazê-la à luz. Vê, pois, velho amigo meu, que hás dado o teu sangue sem proveito algum. Eu estou disposto a dar o meu, porque será em benefício de todos os meus irmãos de classe. Eu queimarei a árvore em sua raiz.

Por detrás da montanha azul, ardia algo: era o sol, que já se havia afundado, ferido, talvez, pela mão gigantesca que o atraía para o abismo, pois o céu estava vermelho como se houvesse sido tingido pelo sangue do astro.

O revolucionário velho suspirou e disse:

- Como o sol, eu também vou para o meu ocaso. E desapareceu nas sombras.

O revolucionário moderno continuou sua marcha até onde lutavam, por ideais novos, os seus irmãos.




*Ricardo Flores Magón, in: Regeneración, 4ª época, nº 18; 31 de dezembro de 1910; p. 3". - Cipriano Ricardo Flores Magón, foi um dos mais notáveis anarquistas nascidos no México. Possuiu vasto conhecimento acerca das reflexões propostas pelos grandes teóricos do século XIX, entre os quais Mikhail Bakunin, Pierre-Joseph Proudhon, Max Stirner e Elisée Reclus, bem como da obra dos socialistas Karl Marx e Henrik Ibsen, inspirando-se, sobretudo, nas idéias de Piotr Kropotkin na construção de sua própria concepção de luta revolucionária. Dialogou com Charles Malato, Errico Malatesta, Anselmo Lorenzo, Emma Goldman e Fernando Tarrida del Mármol, dos quais era contemporâneo. Junto com seus irmãos, Jesús e Enrique Flores Magón, foi fundador e redator do periódico libertário Regeneración, bem como do movimento revolucionário conhecido como Partido Liberal Mexicano. Suas idéias tiveram profundo impacto no contexto em que viveu sendo também profundamente influenciadas por ele. Sempre atribuiu grande valor ao senso de comunidade e de autonomia existente entre os povos indígenas, sempre militando em seu favor. Suas reflexões e atos contra a tirania latifundiária defendida ferrenhamente pela ditadura de Porfirio Díaz levaram à emergência da Revolução Mexicana.



“Até bem pouco tempo atrás, poderíamos mudar o mundo. Quem roubou nossa coragem?” ( Renato Russo )