domingo, 21 de junho de 2015

O ENCONTRO DE FRITJOF CAPRA E KRISHNAMURTI


Senti-me um tanto intimidado quando finalmente vi o mestre cara a cara, mas não quis perder tempo. Eu sabia por que estava ali. “Como posso ser um cientista”, perguntei-lhe, “e ainda assim seguir seu conselho para interromper o pensamento e libertar-me do conhecido?” 




Um dos primeiros contatos diretos que tive com a espiritualidade do Oriente foi meu encontro com J. Krishnamurti no final de 1968. Quando ele proferiu uma série de palestras na UC de Santa Cruz, estava com setenta e três anos e a sua aparência era absolutamente estonteante. Seus traços indianos bem marcados, o contraste entre a pele escura e os cabelos brancos impecavelmente penteados, a elegância dos trajes europeus, a dignidade do semblante, o inglês medido e perfeito, e — acima de tudo — a intensidade da concentração e da presença dele deixaram-me encantado e perplexo. Os ensinamentos de Don Juan, de Carlos Castañeda, acabara de ser publicado, e ao ver Krishnamurti não pude deixar de comparar sua aparência com a da figura mítica do sábio yaqui.

O impacto do carisma e da aparência física de Krishnamurti foi intensificado e aprofundado pelas coisas que disse. Pensador muito original, rejeitava toda autoridade espiritual e todas as tradições espirituais. Seus ensinamentos eram muito semelhantes aos do budismo, mas ele jamais empregava algum termo budista ou de qualquer outro ramo de pensamento tradicional do Oriente. A tarefa a que se propusera (usar a língua e o raciocínio racional para levar seus ouvintes além da linguagem e do uso da razão) era extremamente difícil, mas o modo como ele se desincumbia dela era impressionante.

Krishnamurti escolhia algum problema existencial bem conhecido — medo, desejo, morte, tempo — como tópico de uma palestra, e principiava a falar usando palavras parecidas com estas: “Entremos nisso juntos. Não vou lhes dizer nada; não possuo autoridade alguma; vamos explorar essa questão juntos”. Em seguida, mostrava a futilidade de todos os modos convencionais para se eliminar, por exemplo, o medo, e perguntava, lenta e intensamente, com um senso acurado do impacto dramático de suas palavras: “É possível que vocês, neste exato momento, aqui neste lugar, possam se livrar do medo? Não suprimi-lo, não negá-lo, nem opor resistência a ele, mas sim eliminá-lo de uma vez por todas? Esta será a nossa tarefa hoje à noite: eliminarmos o medo por completo, de uma vez por todas. Se não conseguirmos isso, minha palestra terá sido em vão”.

A cena já estava armada; a platéia, arrebatada, dominada pelo enlevo, e absolutamente atenta. “Examinemos então a questão”, prosseguia Knshnamurti, “sem julgarmos, sem condenarmos, sem justificarmos. O que é o medo? Examinemos isso juntos, vocês e eu. Vejamos se conseguimos realmente nos comunicar, estar no mesmo plano, na mesma intensidade, no mesmo momento. Usando-me como espelho, será que vocês conseguirão encontrar a resposta a esta pergunta extraordinariamente importante: o que é o medo?”

E Krishnamurti passava então a tecer uma teia imaculada de conceitos. Mostrava que, para compreendermos o medo, temos de compreender o desejo; que para compreendermos o desejo, temos de compreender o pensamento; e, consecutivamente com o tempo, o conhecimento, o ser, e assim por diante. Apresentava uma análise brilhante de como tais problemas existenciais básicos estão interrelacionados — não na teoria, mas na prática. Krishnamurti não só confrontava cada membro da platéia com os resultados da sua análise, como também instava e convencia cada um a se envolver no processo de análise. No final, ficava uma sensação nítida e forte de que o único meio para se resolver qualquer um de nossos problemas existenciais é ir além do pensamento, além da linguagem, além do tempo — é “libertar-se do conhecido”, como diz no título de um de seus melhores livros, Freedom from the known.

Lembro-me de que fiquei fascinado, mas também profundamente perturbado, com as palestras de Krishnamurti. Após cada uma delas, Jacqueline e eu permanecíamos acordados durante várias horas, sentados junto à nossa lareira, discutindo o que Krishnamurti dissera. Esse foi meu primeiro encontro direto com um mestre espiritual radical, e logo me vi em face de um grave problema. Eu mal iniciara uma promissora carreira científica, com que estava bastante envolvido emocionalmente, e então vinha Krishnamurti, com todo o seu carisma e persuasão, dizendo para eu parar de pensar, para eu me libertar de todo o conhecimento, para eu deixar o raciocínio lógico para trás. O que isso significava no meu caso? Deveria desistir da carreira científica nesse estágio inicial, ou deveria continuá-la, abandonando toda esperança de alcançar a auto-realização espiritual?

Eu ansiava por me aconselhar com Krishnamurti, porém ele não permitia nenhuma pergunta em suas palestras e recusava-se a receber quem quer que fosse depois delas. Fizemos diversas tentativas para vê-lo, mas foi-nos dito, com firmeza, que Krishnamurti não queria ser perturbado. Foi uma feliz coincidência — ou não? — que finalmente nos propiciou um encontro com ele. Krishnamurti tinha um secretário francês e, após a última palestra, Jacqueline, que nasceu emParis, conseguiu estabelecer um diálogo com esse homem. Eles se entenderam bem e, como resultado, terminamos por nos encontrar com Krishnamurti em seu apartamento na manhã seguinte.

Senti-me um tanto intimidado quando finalmente vi o mestre cara a cara, mas não quis perder tempo. Eu sabia por que estava ali. “Como posso ser um cientista”, perguntei-lhe, “e ainda assim seguir seu conselho para interromper o pensamento e libertar-me do conhecido?”

Krishnamurti não hesitou sequer um instante. Ele respondeu a minha pergunta em dez segundos, e de um modo que resolveu completamente o meu problema. “Primeiro você é um ser humano”, disse ele, “e depois um cientista. Antes você tem de setornar livre, e essa liberdade não pode ser atingida por meio do pensamento. Ela é atingida pela meditação — a compreensão da totalidade da vida, em que cessam todas as formas de fragmentação.” Uma vez que eu alcançar tal compreensão da vida como um todo, explicou, poderia me especializar e trabalhar como cientista sem problema algum. E evidentemente nem se cogitava na abolição da ciência. Passando para o francês, Krishnamurti acrescentou: “J'adore la science. C'est merveilleux!”

Após esse rápido mas decisivo encontro, só vi Krishnamurti de novo seis anos depois, ao ser convidado, juntamente com vários outros cientistas, a participar de uma semana de discussões com ele em seu centro educacional no Brockwood Park, ao sul de Londres. Sua aparência ainda era extremamente marcante, embora houvesse perdido um pouco da intensidade. No decorrer daquela semana fiquei conhecendo Krishnamurti muito melhor, inclusive alguns de seus defeitos. Quando falava, ele ainda era muito poderoso e carismático, mas fiquei desapontado pelo fato de jamais podermos realmente incluí-lo numa discussão. Ele falaria, mas não se disporia a ouvir. Por outro ladq, mantive muitas discussões excitantes com meus colegas cientistas — David Böhm, Karl Pribram e George Sudarshan, entre outros.

Depois disso praticamente perdi contato com Krishnamurti. Nunca deixei de reconhecer sua influência decisiva sobre mim, e com freqüência ouvia falar dele por meio de várias pessoas; porém, não compareci a nenhuma outra palestra sua, nem li qualquer um de seus outros livros. Então, em janeiro de 1983, me vi em Madrasta, no sul da Índia, participando de uma conferência da Sociedade Teosófica Mundial, que ficava em frente à propriedade de Krishnamurti. Como ele estava lá e ia dar uma palestra naquela noite, resolvi aparecer para apresentar-lhe meus cumprimentos. O belíssimo parque, com suas gigantescas árvores seculares, estava repleto de gente, quase todos indianos, sentados em silêncio no chão, aguardando o início de um ritual de que a maioria já participara muitas vezes antes. Às oito horas Krishnamurti apareceu, vestido com trajes indianos, e caminhou lentamente mas com enorme segurança até uma plataforma que fora erguida. Foi maravilhoso vê-lo, aos oitenta e oito anos de idade, fazendo sua entrada como durante mais de meio século, subindo as escadas da plataforma sem ajuda de ninguém, sentando-se numa almofada, e unindo as mãos no tradicional cumprimento indiano para iniciar sua palestra.

Krishnamurti falou durante setenta e cinco minutos sem nenhuma hesitação, e quase com a mesma intensidade que eu presenciara quinze anos antes. O tópico dessa noite era o desejo, e ele teceu sua teia com a clareza e habilidade de sempre. Foi uma oportunidade única para eu avaliar a evolução de meu próprio entendimento desde a época em que o conhecera, e senti pela primeira vez que eu realmente compreendia seu método e sua personalidade. A sua análise do desejo foi bela e cristalina. A percepção causa uma reação sensorial, disse ele; o pensamento então intervém — “Eu quero...“, “Eu não quero...“, “Eu desejo...“ —, e assim é gerado o desejo. O desejo não é causado pelo objeto de desejo, mas persistirá com diversos objetos enquanto intervier o pensamento. Portanto, não nos libertaremos do desejo suprimindo ou evitando a experiênciasensorial (o modo do asceta). O único meio para nos libertarmos do desejo é libertando-nos do pensar.

O que Krishnamurti não disse é como podemos nos libertar do pensamento. Como Buda, ele ofereceu uma análise brilhante do problema, mas, à diferença dele, não mostrou um caminho claro para a libertação. Talvez, pensei, o próprio Krishnamurti não houvesse avançado o suficiente por esse caminho... Talvez não houvesse se libertado o suficiente de todo o condicionamento para poder levar seus discípulos à plena auto-realização...

Depois da palestra, fui convidado para jantar com Krishnamurti e várias outras pessoas. Compreensivelmente ele estava bastante exausto devido a seu esforço e sem ânimo para qualquer discussão. Nem eu pretendia algo assim. Fora ali apenas para mostrar-lhe a minha gratidão, sendo ricamente recompensado. Contei a Krishnamurti a história de nosso primeiro encontro, e agradeci-lhe mais uma vez por sua influência e ajuda decisivas, estando consciente de que esse talvez fosse o nosso último encontro, como de fato acabou sendo.

O problema que Krishnamurti resolvera para mim, à maneira zen, de um só golpe, é o problema com que a maioria dos físicos se deparam quando confrontados com as idéias das tradições místicas — como é possível transcender o pensamento sem abandonar um compromisso com a ciência? Esse é, acredito, o motivo pelo qual tantos de meus colegas sentiram-se ameaçados por minhas comparações entre a física e o misticismo. Talvez lhes seja proveitoso saber que eu também já senti a mesma ameaça. E a senti com todo o meu ser. No entanto, isso foi no início de minha carreira, e tive uma enorme felicidade: a mesma pessoa que me fez perceber a ameaça foi também a que me ajudou a transcendê-la.

Extraído do livro “ Sabedoria Incomum” de Fritjof Capra- Cultrix- São Paulo- 1995

Fonte Alsibar





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