Esta reportagem faz parte do projeto de crowdfunding do DCM sobre a Lista de Furnas. Está sendo republicada à luz do depoimento do lobista Fernando Moura, segundo o qual a estatal era controlada pelo hoje senador Aécio Neves no governo Lula: “É um terço São Paulo, um terço nacional e um terço Aécio”.
Era 2005, auge das CPIs dos Correios e do Mensalão, quando o
presidente de Furnas, José Pedro Rodrigues de Oliveira, um quadro
técnico ligado ao ex-presidente Itamar Franco, chamou à sua sala o
coordenador do Programa Luz Para Todos, assessor especial da
presidência, e entregou um pedaço de papel, com um nome e o número de um
telefone. “Acho que isso interessa a vocês. Só que não quero que você
receba esta pessoa aqui dentro”, disse José Pedro a Paulo Tadeu,
ex-prefeito de Poços de Caldas e fundador do PT.
Foi assim que Paulo Tadeu tomou conhecimento da existência de Nílton
Monteiro, o nome escrito no papel. Tadeu telefonou para Nílton e marcou
com ele um encontro no café de uma travessa da Rua Real Grandeza,
Botafogo, Rio de Janeiro, perto da sede de Furnas, acatando a ordem de
não deixar Nílton passar pela recepção da empresa.
Nílton Monteiro é um homem de baixa estatura, um pouco acima do peso,
que usa óculos, tem cabelos lisos e cheios, repartidos ao meio. Depois
das apresentações iniciais, Nílton foi direto ao ponto.
“Ele disse que tinha algo que podia ajudar o governo a se defender
das acusações do mensalão”, recorda Paulo Tadeu, durante uma longa
entrevista que me concedeu. “E me entregou alguns papéis com uma relação
de nomes, acompanhada de valores e a assinatura do ex-diretor de
Furnas, Dimas Toledo”, acrescenta. “Eu achei impressionante e indiquei o
Nílton para conversar com o deputado Rogério Correa, em Minas, que já
tinha experiência na investigação dos governos tucanos, principalmente
de Aécio Neves”, diz.
Aécio é o personagem central da lista, não só porque aparece como um
dos que mais receberam dinheiro do caixa 2 da estatal, mas porque são
antigas as relações de sua família com as empresas públicas na área de
energia. O pai, Aécio Cunha, depois de integrar durante seis anos a
Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados, se tornou
conselheiro de Furnas, ao mesmo tempo em que era conselheiro da Cemig, a
estatal de energia de Minas Gerais.
“Furnas sempre foi território de Minas no governo federal”, conta o ex-coordenador do Programa Luz para Todos.
Furnas nasceu como a primeira grande usina hidrelétrica do Brasil,
com o aproveitamento das águas do rio Grande, em Minas Gerais. Foi
implantada pelo presidente Juscelino Kubistchek em 1957, para fazer
frente a uma crise de energia que ameaçava deixar regiões inteiras do
Brasil na escuridão.
Hoje, Furnas é um colosso com 17 usinas hidrelétricas, duas
termelétricas, três parques eólicos e aproximadamente 24 mil quilômetros
de linhas de transmissão e 62 subestações, que garantem o abastecimento
de energia a mais de 60% das moradias do País, em regiões que respondem
por mais de 80% da produção da riqueza brasileira (PIB).
Foi nessa empresa gigante que Dimas Toledo começou a trabalhar em
1968, quando se formou engenheiro eletricista pela Faculdade de Itajubá,
Em 2002, era presidente interino da empresa, e assinou o documento hoje
conhecido como lista de Furnas.
O documento, com o registro de confidencial, informa no primeiro
parágrafo que se trata da “relação dos recursos levantados e
disponibilizados por intermédio de Furnas-Centrais Elétricas S.A., entre
colaboradores, fornecedores, prestadores de serviços, construtoras,
bancos, fundos de pensão, corretoras de valores, seguradoras, com seus
respectivos repasses direcionados aos coordenadores e responsáveis
financeiros pelas campanhas dos candidatos à Presidência da República,
Governadores de Estado, ao Senado Federal, Deputados Federais e
Estaduais”.
O documento assinado por ele relaciona os 156 políticos que receberam
dinheiro dessas empresas para a campanha eleitoral de 2002, todos eles
da base de sustentação do governo de Fernando Henrique Cardoso.
Desse total, 47 eram do PSDB, 33 do PFL (atual DEM), 21 do PP, 15 do
PMDB, 13 do PTB, 11 do PL (atual PR) e 16 de siglas menores. O total de
doação é de 39,9 milhões de reais (R$ 95,4 milhões em valores corrigidos
pelo IGP-M).
Geraldo Alckmin, o candidato a governador que venceu as eleições
naquele ano, é o primeiro da lista, como destinatário de R$ 9,3 milhões
(22,2 milhões em valores de hoje). José Serra, que disputou e perdeu as
eleições para Lula, vem a seguir, com R$ 7 milhões (R$ 16,7 milhões).
Aécio é o terceiro da lista, como candidato a governador de Minas
Gerais. Ele recebeu R$ 5,5 milhões (13,1 milhão). Na relação, também
está registrado o nome da irmã de Aécio, Andréa – “valor avulso
repassado para Andréa Neves, irmã de Aécio Neves, para os comitês e
prefeitos do interior do Estado – MG valor: 695.000,00”. Corrigido
pelo IGP-M, R$ 1,6 milhão.
Zezé Perrella, na época candidato a deputado estadual, figura na
lista como tendo recebido R$ 350 mil (R$ 837 mil) – entre parênteses,
está escrito “autorização de Aécio Neves”. Um detalhe: quando a lista
foi feita, Zezé Perrella ainda nem havia comprado o helicóptero que
seria apreendido onze anos depois, com quase meia tonelada de pasta base
de cocaína.
“Esse material pode salvar o mandato do Lula.” É o que Nílton
Monteiro teria dito no café com o executivo de Furnas, nas imediações da
Rua Real Grandeza. A frase que Paulo Tadeu diz ter ouvido é um pouco
diferente. “Ele disse que os tucanos não tinham moral para fazer as
acusações que vinham fazendo nas CPIs”, disse-me Paulo Tadeu.
O fato é que a lista se tornou pública no início de 2006, mas já era
conhecida nos bastidores do Congresso Nacional desde o final de 2005,
quando a CPI já estava perdendo força.
Nílton conta que foi levado ao então ministro da Justiça, Márcio
Thomaz Bastos, um dos que compunham o gabinete anti-crise de Lula. O
ministro teria avaliado o conteúdo da lista e, com seus conhecimentos
jurídicos, respaldado a credibilidade do documento.
Cumprindo uma tarefa acordada com seus interlocutores no PT, Nílton
diz ter ido a Brasília. Enquanto as sessões da CPI ocorriam sob intensos
holofotes da mídia, Nílton, longe deles, ia de gabinete em gabinete,
mostrando uma cópia da lista.
E o que Nílton queria em troca desse trabalho? “Dinheiro”, ele
admite, o que Nílton sempre buscou no subterrâneo que une empresários a
políticos, desde que tinha 17 anos de idade e começou a trabalhar com o
deputado Sérgio Naya, aquele mesmo do Palace II, o edifício do Rio de
Janeiro que desabou em 1998.
A queda do prédio, que matou oito pessoas, colocou fim à carreira de
Sérgio Naya, que se tornou milionário durante o regime militar, quando
levou sua construtora para Brasília e fazia negócios dizendo-se amigo do
general Golbery do Couto e Silva.
A biografia de Sérgio Naya na Wikipédia contém uma frase atribuída a Golbery: “Esse menino tem instinto para ganhar dinheiro”.
O jornalista Geraldo Elísio, um dos mais premiados de Minas Gerais,
onde foi secretário-adjunto de Cultura, conheceu Naya no auge de seu
poder e riqueza, na década de 80.
Convidado, esteve no apartamento dele na avenida Vieira Souto, Rio de
Janeiro, quando Naya o levou para uma sala e abriu um armário com
muitas barras de ouro.
“Isso tudo aqui é trambique, é meu e do Golbery”, disse-lhe Naya, que
retirou duas pequenas barras, de 250 gramas cada uma, e entregou a
Geraldo Elísio, que polidamente recusou. “Mas um presente você vai
levar”, insistiu Naya ao homem que, na época, fazia parte do governo de
Minas Gerais. E retirou de outro armário uma camisa de linho de algodão.
“Este presente eu aceito, porque eu posso dar uma camisa igual para
você. Mas o ouro eu não posso.”
Eu soube dessa história um dia depois de Geraldo me conceder
entrevista gravada. Geraldo é um personagem importante para entender o
caso da lista de Furnas e o silêncio da mídia em torno dela. O
jornalista era editor do site Novo Jornal, o único veículo que dava
notícias críticas ao governo de Aécio em Minas, inclusive a lista de
Furnas.
No início de 2014, quando Aécio estava com sua pré-campanha a
presidente na rua, o site foi retirado do ar por uma decisão da Justiça,
duas pessoas foram presas e a casa do jornalista foi revirada por
policiais que tinham um mandado de busca e apreensão.
Geraldo Elísio me acompanhou no primeiro encontro com Nílton
Monteiro. A conversa começou por volta das 4 da tarde e se estendeu até
às duas da manhã. Jantávamos. Nílton ainda estava hesitante quanto a
gravar a entrevista, e falávamos de Naya. Nílton virou-se para Geraldo, e
perguntou, em voz baixa: “Por que você não aceitou as barrinhas?”. E
Geraldo então relatou o encontro com Naya e suas barrinhas de ouro.
Enquanto Geraldo falava, Nílton balançava negativamente a cabeça.
Depois, meio brincando, meio sério, lembrou o que Naya disse sobre
Geraldo. “Como é que o Geraldo come mulher se não gosta de dinheiro?”
Foi nesse ambiente que Nílton cresceu e, à sombra do chefe, desfrutou
de algum prestígio. A revista IstoÉ, quando ainda fazia algum
reportagem crítica ao grupo de Aécio Neves em Minas Gerais, publicou uma
foto em que Nílton Monteiro está numa lancha, na companhia de Cláudio
Mourão, ex- tesoureiro dos tucanos em Minas, e duas mulheres. A foto
ilustra a reportagem em que Nílton Monteiro denunciou o mensalão
mineiro.
Sim, foi do mesmo baú de onde saiu a lista de Furnas que vieram à
tona os documentos bancários e a contabilidade que comprovam que o
publicitário Marcos Valério, antes de servir em Brasília, abastecia os
políticos em Minas Gerais, durante o governo de Eduardo Azeredo.
“Foi a veracidade das denúncias do Nílton Monteiro no mensalão tucano
que me fez levar adiante o caso da lista de Furnas”, conta o deputado
petista Rogério Correa. “As informações tinham consistência”, afirma.
A primeira reação dos políticos relacionados tanto na lista de Furnas
quanto no mensalão mineiro foi desqualificar Nílton Monteiro. Diziam
que era um estelionatário, estava tentando extorquir dinheiro e que os
documentos eram falsos.
No caso do mensalão mineiro, não resta mais nenhuma dúvida quanto à
autenticidade das provas. O processo só não foi julgado ainda porque o
Supremo Tribunal Federal, depois de condenar os petistas no mensalão de
Brasília, remeteu o processo que envolve a antiga cúpula tucana para
Minas Gerais, e o processo está parado no Tribunal de Justiça.
Quanto à lista de Furnas, foi levantada uma densa cortina de fumaça.
Falsa, a lista não é. Peritos da Polícia Federal analisaram o documento e
concluíram que a assinatura é mesmo de Dimas Toledo, apesar da negativa
que fez na CPI nos Correios e na Polícia Federal.
Quanto à existência de caixa 2 beneficiando políticos a partir dos
serviços prestados em Furnas, também não restou dúvida depois que uma
procuradora da república no Rio de Janeiro denunciou Dimas Toledo,
Nílton Monteiro e alguns empresários pelo desvio de recursos da estatal
de energia elétrica.
Um dos denunciados é o ex-deputado Roberto Jefferson. Na época em que
a procuradora fez a denúncia, Roberto, como ex-deputado, já não tinha
foro privilegiado e pôde ser interrogado na primeira instância. Ele
confirmou ter recebido R$ 75 mil para sua campanha a deputado federal em
2002, exatamente o mesmo valor que aparece na lista de Furnas (R$ 180
mil em valores atuais).
“Quando Roberto Jefferson denunciou o mensalão de Brasília, o mundo
veio abaixo e a mídia caiu de pau. Quando Jefferson confessa o caixa 2
no esquema tucano, ninguém dá um pio. Até quando viveremos com uma
democracia de dois pesos e duas medidas?”, pergunta Rogério.
Outro ex-deputado, Antônio Júlio, hoje prefeito de Pará de Minas,
apareceu na lista como destinatário de R$ 150 mil (R$ 356 mil em valor
atualizado) e, assim como Jefferson, teve coragem de admitir a
veracidade da informação.
Muito recentemente, o caixa 2 de Furnas apareceu na operação
Lava-Jato, por intermédio de um dos depoimentos do doleiro Alberto
Youssef. Ele disse que ouviu de um dos seus mais próximos clientes, o
ex-deputado do PP José Janene, já falecido, que Aécio Neves recebia por
intermédio da empresa Bauruense, prestadora de serviço em Furnas, um
quinhão dos desvios da estatal. Chega a citar uma irmã de Aécio como a
pessoa que recebia a propina. Quem será a irmã?
O depoimento de Youssef até agora não teve desdobramento, assim como a
denúncia da procuradora da república no Rio que investigou a corrupção
em Furnas. Depois de fazer a denúncia, em que afirma não ter poderes
para processar políticos com foro privilegiado, Andrea Bayrão descobriu
que seu poder era ainda mais limitado.
Um juiz federal entendeu que o caso era da alçada estadual e mandou
todo inquérito e a denúncia da procuradora para o Ministério Público do
Estado do Rio, onde a investigação está parada. Procurei Andréa Bayrão, a
procuradora, e ela disse que não tem mais nada para falar a respeito de
Furnas.
Enquanto isso, Dimas Toledo, autor da lista e cérebro do caixa 2 de
Furnas, segue sem ser incomodado num hotel de sua propriedade em Minas.
Ele está para Furnas assim como Paulo Roberto Costa está para Petrobrás.
A este, foi oferecido o benefício da delação premiada e o que se
seguiu, sob a jurisdição do juiz Sérgio Moro, é do conhecimento de
todos.
Dimas tem um filho deputado federal e só saiu de Furnas no final do
primeiro governo Lula. A pergunta que não quer calar é: com que objetivo
ele fez uma lista em que se auto incrimina? Nílton tem a resposta:
Dimas queria permanecer na direção de Furnas e fez a lista para
chantagear os tucanos, particularmente Aécio Neves, forçando-o a
negociar com Lula sua permanência na estatal. Nílton foi o mensageiro
que levou a lista a um grupo restrito de políticos do PSDB.
A data da lista é 30 de novembro de 2002, pouco mais de um mês após a
eleição de Lula. Em janeiro, a recém-nomeada ministra das Minas e
Energia, Dilma Rousseff, dá posse à diretoria de Furnas. Na revista da
empresa, Dimas Toledo aparece na foto e a legenda informa: ele foi
mantido na direção da empresa, agora como diretor de Planejamento,
Engenharia e Construção. A mesma reportagem registra a permanência de
Aécio Cunha, o pai de Aécio, no Conselho de Administração. O governo
federal tinha trocado de mãos, mas Furnas ainda era um ninho de Aécio
Neves.
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