Marcelo Neves, um dos constitucionalistas brasileiros com maior reconhecimento internacional, faz uma denúncia contra o golpe em curso no Brasil.
Conspiração midiático-parlamentar-judicial trama golpe contra a Presidenta, originalmente sob a liderança de um gângster [1]
Por Marcelo Neves*, no Crítica Constitucional
Uma pergunta: por que o mesmo tribunal não julgou até agora o
presidente da Câmara dos Deputados? Está lá como réu desde janeiro do
ano em curso Daí que, ressalvadas as respeitáveis exceções, seria até o
caso de se afirmar que o STF, que inclui alguns ministros apequenados,
propiciou por "omissão" o golpe de domingo/17.04.2016, levado a cabo na
Câmara, em grande parte, por uma quadrilha de cleptomaníacos. (Raduan Nassar, 20/04/2016)
Nessa época de investigação de escândalos de corrupção e condenação
de corruptos, não cabe insistir que o combate à corrupção é simplesmente
a expressão de um “moralismo lacerdista”. Ao contrário, cabe considerar
que há uma relação tendencial muito forte entre corrupção e exclusão
social ou entre corrupção e desigualdade[2]: quanto maior a exclusão
social – nos setores subintegrados, formados por subcidadãos, aquém da
lei e da constituição –, tanto maiores são as possibilidades de
ampliação da corrupção, especialmente nos setores sobreintegrados, no
qual se estão presentes verdadeiros sobrecidadãos, que vivem acima da
lei e da constituição[3]. Nesse sentido, a luta contra a “corrupção
sistêmica” faz parte de movimento dirigido à inclusão social e à
fortificação da cidadania. Portanto, em princípio, não cabem críticas às
ações judiciais, às atividades do ministério público e às investigações
da polícia federal destinadas ao combate à corrupção em uma perspectiva
de um Estado constitucional e democrático, orientado pelo princípio da
igualdade. De certa maneira, é constrangedor para muitos que lhe deram
apoio político e eleitoral constatar que membros do governo estiveram
envolvidos em corrupção durante os três últimos mandatos.
Entretanto, o combate à corrupção no Estado democrático de direito
não deve ser realizado mediante violação à constituição e à lei, de
maneira arbitrária, como nos regimes autoritários e totalitários, cuja
aparente pretensão de banir a corrupção a todo custo, em vez de
extingui-la e “purificar” o país, redunda usualmente em novas formas de
corrupção. Exige-se de juízes e demais agentes públicos, no Estado
constitucional, que combatam a corrupção nos termos da lei e da
constituição. Nem juízes em geral nem ministros de corte suprema estão
acima da lei e da constituição.
No início da chamada “Operação Lava Jato”, dirigida judicialmente
pelo juiz Sérgio Moro, houve algum sinal de esperança de que as
atividades policiais, ministeriais e judiciais fossem conduzidas
imparcialmente, dentro da lei e da constituição. Fatos posteriores
fizeram esvanecer tal esperança. A atitude arbitrária e de cunho
partidário começou a se delinear claramente com a “condução coercitiva”
do ex-presidente Lula, por aparato policial próprio para operações
contra criminosos internacionais de alta periculosidade. Já naquele
momento, os indícios de parcialidade e partidarização começavam a tomar
corpo. No entretempo, o pedido de prisão preventiva do ex-presidente, em
trapalhada de três promotores estaduais paulistas, não competentes no
âmbito da “Lava Jato”, fortificavam a suspeita de conspiração das elites
paulistas de desmoralizar um político com grande influência no cenário
nacional.
O ponto mais elevado de manifestação da parcialidade e partidarização
do judiciário ocorreu com os vazamentos de “interceptações de
comunicação telefônica” do ex-presidente da república, sem qualquer
decisão ou ato judicial motivador, pelo próprio juiz da causa, Sérgio
Moro. Ele simplesmente enviou todas as interceptações para os órgãos de
imprensa, especialmente para a TV Globo.
O caso aponta claramente para a típica situação de “dois pesos, duas
medidas”. Por muito menos, por ser-lhe imputada a comunicação antecipada
de uma operação policial contra o empresário Daniel Dantas, o então
delegado Protógenes Queiroz foi demitido da polícia federal e condenado
criminalmente, nos termos do art. 325 do código penal[4]. Tentou-se
condenar também o juiz do caso, Fausto de Sanctis, mas esse se livrou ao
ser promovido a Desembargador Federal, pois a pena de censura que se
pretendeu esdruxulamente aplicar-lhe não caberia para magistrados de
segunda instância. Por fim, em um quiproquó de filigranas jurídicas, a
chamada “Operação Satiagraha” foi anulada[5], permanecendo o
controvertido empresário livre até hoje.
Naquela ocasião, os hoje arautos da moralidade sustentavam que se
tratava de um “estado policial”. Nesse contexto, até mesmo a respeito da
atuação policial contra crime de sonegação perpetrada por proprietária
da loja de artigos de alto luxo “Daslu”, indagava o advogado Miguel
Reale Júnior: “Qual a razão de tantos policiais cercando a Daslu?”[6].
Atualmente, os mesmos arautos da moralidade, enfatizam o valor da
atividade arbitrária da polícia, do ministério público e do judiciário
contra as garantias do ex-presidente Lula e as prerrogativas da
Presidenta Dilma Rousseff.
Entretanto, seria principalmente agora que caberia, em nome do Estado
de direito (e não de falso moralismo e de elites corruptas), exigir-se e
promover-se o processo de incriminação do juiz Sérgio Moro. Essa não é
uma questão pessoal ou moral (que atinge a pessoa em sua inteireza), mas
sim uma questão jurídica referente a condutas penalmente ilícitas. Ao
divulgar, sem nenhuma decisão motivada nos termos da lei, atos sigilosos
de “interceptação de comunicação telefônica” do processo criminal
contra o ex-presidente Lula, inclusive levando ao vazamento de conversas
telefônicas da Presidenta (em desrespeito ao fórum privilegiado), o
juiz Sérgio Moro incorreu nos artigos 8º, 9º e 10º da Lei 9.296, de 24
de julho de 1996, que se fundamenta no art. 5º inciso XII e LX, da
Constituição Federal, que estabelecem:
“XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último
caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer
para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
[...]
LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais
quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.
Por sua vez, os referidos dispositivos legais prescrevem:
“Art. 8° A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer
natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito
policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das
diligências, gravações e transcrições respectivas.
Parágrafo único. A apensação somente poderá ser realizada
imediatamente antes do relatório da autoridade, quando se tratar de
inquérito policial (Código de Processo Penal, art.10, § 1°) ou na
conclusão do processo ao juiz para o despacho decorrente do disposto
nos arts. 407, 502 ou 538 do Código de Processo Penal.
Art. 9° A gravação que não interessar à prova será inutilizada por
decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após
esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte
interessada.
Parágrafo único. O incidente de inutilização será assistido pelo
Ministério Público, sendo facultada a presença do acusado ou de seu
representante legal.
Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações
telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da
Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em
lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.”
Além do crime e da pena tipificados no art. 10, relativo à
interceptação de comunicação telefônica da Presidenta Dilma Rousseff,
pois a autoridade judicial competente para autorização é o Supremo
Tribunal Federal, aplica-se ao juiz Moro, por desrespeitar o art. 8º (e
também o 9º) da Lei nº 9.296/1996, o art. 325 do Código Penal, o mesmo
aplicado a Protógenes Queiroz:
“Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave.
§ 1o Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
I – permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e
empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não
autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração
Pública; (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
II – se utiliza, indevidamente, do acesso restrito. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 2o Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)”
Parece-me esdrúxula a alegação de que essas vedações e penas não se
aplicam aos magistrados. É claro que o magistrado pode e deve divulgar a
parte relevante para a caracterização do crime quando isso for
necessário para a motivação e fundamentação de decisão definitiva ou
mesmo interlocutória, após inutilização do que não interessa.
Entretanto, isso não significa o poder de divulgar, sem nenhum crivo
seletivo ou decisão motivada, às pressas e arbitrariamente,
interceptações de comunicação telefônica, muitas delas irrelevantes para
o caso e respeitante apenas à intimidade do investigado. Cumpre
considerar que os referidos vazamentos prejudicaram a própria
investigação que se encontrava em andamento. O fim, porém, não era
judicial, era simplesmente o de criar um estado de comoção política,
patrocinado por meios de comunicação exuberantemente parciais e
partidários no contexto brasileiro. Entre maquiavelismo vulgar em que os
fins justificam os meios e “juizite” histérica, o que ocorreu foi
prática de crime pelo juiz Sérgio Moro.
Um elemento a mais a afastar a inusitada alegação de que a proibição
de vazamento de interceptação de comunicação telefônica e as respectivas
penas não se aplicam aos magistrados encontra-se no art. 17 da
Resolução nº 59 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 9 de setembro
de 2008, in verbis:
Art. 17. Não será permitido ao Magistrado e ao servidor fornecer
quaisquer informações, direta ou indiretamente, a terceiros ou a órgão
de comunicação social, de elementos sigilosos contidos em processos ou
inquéritos regulamentados por esta Resolução, ou que tramitem em segredo
de Justiça, sob pena de responsabilização nos termos da legislação
pertinente. (Redação dada pela Resolução 217, de 16.02.16).
Essa Resolução, na sua forma originária[7], foi aprovada pelo CNJ sob
a presidência do Ministro Gilmar Mendes, que agora, informalmente,
perante a grande imprensa, parece defender posição contrária à sua
aplicação aos magistrados: “Dois pesos, duas medidas”.
Também não se diga que cabe no caso uma ponderação entre proteção da
intimidade e interesse social. Essa ponderação judicial só teria sentido
se já não houvesse regra legal penal tipificando o crime e cominando a
pena. A ponderação, nesse caso, já foi feita politicamente pelo
legislador. Diante de princípios e regras constitucionais contrários,
não cabe ponderação de regra legal penal, mas tão só a declaração de sua
inconstitucionalidade parcial ou total. Regras, especialmente regras
penais completas, que não preveem exceções à luz de princípio, não
comportam ponderação à luz de princípio. Mesmo o teórico chamado
estridentemente por discípulos empolgados de “profeta da ponderação
estruturada”[8], Robert Alexy, reconhece essa impossibilidade. A
propósito, são suas as seguintes palavras:
“Isso traz à tona a questão da hierarquia entre os dois níveis. A
resposta a essa pergunta somente pode sustentar que, do ponto de vista
da vinculação à Constituição, há uma primazia do nível das regras.
[...]. É por isso que as determinações estabelecidas no nível das regras
têm primazia em relação a determinações alternativas com base em
princípios.”[9]
Em relação a regras penais, o recurso a sua ponderação ad hoc com
princípios constitucionais levaria à extrema insegurança jurídica,
contra o Estado, a sociedade e os cidadãos, servindo apenas à
arbitrariedade judicial.
A essas práticas ilegais do magistrado, os ministros do Supremo
Tribunal Federal reagiram de maneiras as mais estapafúrdias. Em decisão
monocrática do ministro Gilmar Mendes suspendeu-se a nomeação do
ex-presidente Lula pela Presidenta Dilma Rousseff para Ministro Chefe da
Casa Civil. Como se sabe, o cargo de Ministro de Estado é de livre
nomeação e exoneração da Presidenta da República. A alegação de desvio
de finalidade baseou-se em um vazamento ilegal de interceptação de
comunicação telefônica entre o ex-presidente Lula e a atual presidenta. O
caso já se encontrava sub judice, a ser decidido pelo ministro Teori
Zavascki. A esse juiz caberia qualificar, liminarmente, a natureza
jurídica da interceptação e da respectiva comunicação. Às pressas e de
forma inusitada, o ministro Gilmar Mendes, após encontros públicos com
membros da oposição, adiantou-se e impediu que a Presidenta praticasse
um ato que lhe parecia fundamental para a melhoria política do seu
governo. A intromissão judicial na política apresenta-se chocante nesse
caso. Atos ilegais passaram a ser fundamento de decisão judicial
claramente partidária.
Nesse contexto, cabe considerar que estão plenamente caracterizados
os requisitos necessários para que se declare a suspeição do ministro
Gilmar Mendes para julgamento de qualquer caso concernente a fatos
atribuídos à Presidenta e ao ex-presidente nas atuais circunstâncias,
seja no que concerne a eventual caracterização de crime comum ou
improbidade, ou a recursos referentes ao processo de impeachment. É
marcante a manifestação do ministro, em seminário no exterior, de que “o
Brasil vive um regime de cleptodemocracia” (sem nenhum comentário
crítico por parte do ministro Celso de Mello)[10], em clara referência a
casos que se encontram sub judice no STF ou poderão chegar a sua alçada
por via de recurso e, então, deverão ser julgados por esse tribunal.
Acrescentem-se a declaração do ministro Gilmar Mendes durante sessão do
STF, na qual, totalmente em descompasso com o caso em julgamento,
manifestou, em pré-julgamento esdrúxulo, juízos moral e juridicamente
negativos sobre o ex-presidente e a sua nomeação para Ministro de
Estado: “A presidente arranja um tutor para seu lugar e arranja outra
coisa para fazer. E um tutor que vem aí com sérios problemas
criminais”.[11] Essa linguagem de desprezo pela Presidenta e de
suposição de prática de crime de um ex-presidente, antes de julgamento
de casos relacionados a ambos, marca a caracterização de clara
suspeição, nos termos do art. 145, inciso IV, do Código de Processo
Civil, que prescreve haver suspeição do magistrado “interessado no
julgamento do processo em favor de qualquer das partes”. Não se descarte
também, em face da linguagem desprezo do ministro à Presidenta e ao
ex-presidente e em vista das suas notórias manifestações de amizade com
membros da oposição, a aplicação do inciso I do citado artigo, que
estabelece haver suspeição do juiz “amigo íntimo ou inimigo de qualquer
das partes ou de seus advogados”. A esse respeito, parecem serem
cabíveis ao caso o sábio preceito previsto no art. 11 do Código
Ibero-Americano de Ética Judicial, referente à imparcialidade do juiz.
“Art. 11 O juiz tem a obrigação de abster-se de intervir nas causas
em que veja comprometida a sua imparcialidade ou naquelas que um
observador razoável possa entender que há motivo para pensar assim.”
Nos termos desse dispositivo, qualquer observador razoável poderia
afirmar que o ministro Gilmar Mendes não deveria participar de nenhuma
causa referente ao processo de impeachment em andamento ou que envolva a
pretensão de responsabilização civil, administrativa ou penal do
ex-presidente Lula e da Presidenta Dilma Rousseff.
Além da questão referente à suspeição, cabe observar que caberia o
enquadramento das mencionadas condutas do ministro Gilmar Mendes, entre
outras, no art. 35, inciso IV, da LOMAN (Lei Complementar nº 35, de 14
de março de 1979), que impõe ao juiz o dever de “tratar com urbanidade
as partes”, e no seu art. 36, inciso III, que veda ao magistrado
“manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo
pendente de julgamento, seu ou de outrem”. No caso tratava-se de casos
pendentes de julgamento, seja de magistrados de instância inferior, seja
do próprio STF, monocrática ou colegiadamente.
Nessa mesma linha de argumento, incumbe observar também determinações
do Código de Ética da Magistratura Nacional. Embora possa se insinuar
que ele não inclui em seu âmbito pessoal de validade os membros do STF,
pois foi aprovado por órgão subordinado ao seu controle, o Conselho
Nacional de Justiça, o Código de Ética da Magistratura funda-se na
Constituição Federal (art. 103-B, § 4º, incisos I), dirigindo-se,
inclusive por uma questão de isonomia, a todo e qualquer magistrado,
restando ao STF declarar-lhe a inconstitucionalidade parcial ou total.
Na presente situação, é relevante o art. 22 do referido Código de Ética:
“Art. 22. O magistrado tem o dever de cortesia para com os colegas,
os membros do Ministério Público, os advogados, os servidores, as
partes, as testemunhas e todos quantos se relacionem com a administração
da Justiça.
Parágrafo único. Impõe-se ao magistrado a utilização de linguagem escorreita, polida, respeitosa e compreensível.”
Somando-se às atitudes do ministro Gilmar Mendes que indiciam
elementos de suspeição no julgamento que envolvam o ex-presidente Lula e
a Presidenta Dilma Rousseff no âmbito dos recentes escândalos de
corrupção e no julgamento de remédios judiciais referentes ao
impeachment em andamento, assim como características de infringência de
normas disciplinares da LOMAN e de dispositivos do Código de Ética da
Magistratura Nacional, surgiram as bravatas do ministro Celso de Mello,
em forma de “supremites” histéricas, que denigrem a imagem do STF. Em um
primeiro episódio, veio a patética resposta ao conteúdo de uma
interceptação de comunicação telefônica, divulgada ilegalmente pelo juiz
Sérgio Moro, na qual o ex-presidente Lula, em conversa particular,
afirmava que o Supremo Tribunal Federal estava “acovardado” diante da
atuação desviante de órgãos políticos e judiciais. Que sentido prático
teria a resposta do ministro a essa opinião, em foro privado, de um
político, senão a de antecipar uma posição justificadora dos malfeitos
do juiz Moro, no âmbito de um caso sub judice no próprio STF. Embora
esse episódio seja grave, uma expressão mais gritante de uma postura
politicamente parcial encontra-se na declaração posterior do ministro
Celso de Mello de que a Presidenta não poderia utilizar o termo “golpe”
em suas manifestações políticas no exterior a respeito do processo de
impeachment em andamento. Dessa maneira, um membro do STF imiscuiu-se no
jogo político, não só tomando a posição de uma das partes envolvidas na
contenda, mas também pretendendo controlar, em termos de censura, as
palavras da Presidenta, em uma antecipação chocante de sua posição sobre
futuros julgamentos relativos à constitucionalidade e legalidade do
processo de impeachment em andamento. Às manifestações do Ministro Celso
de Mello juntaram-se as declarações dos ministros Dias Tofolli e Cármen
Lúcia, ambos a afirmarem publicamente, em meios de comunicação de
massa, que o impeachment em andamento não constitui um “golpe”,
imiscuindo-se no debate político-partidário e antecipando implicitamente
suas posições sobre futuro julgamento a respeito da regularidade
jurídica do impeachment em andamento. Também nessas hipóteses,
infringem-se normas da LOMAN e do Código de Ética da Magistratura
Nacional e do Código Ibero-Americano de Ética Judicial, acima citadas.
A esse respeito, especialmente no que tange as referidas condutas do
juiz Sérgio Moro e do ministro Gilmar Mendes, em uma conversa privada
recente com um magistrado de uma pequena comarca do interior da Paraíba,
ele desabafava em tom fortemente crítico, nos seguintes termos: “Se,
muito menos do que esses magistrados graúdos estão fazendo, eu ou um
colega por aqui falássemos publicamente sobre um prefeito ou ex-prefeito
no âmbito de nossas respectivas comarcas, ou manifestássemos
publicamente sobre um processo de impeachment em andamento na
correspondente Câmara Municipal, já estaríamos sendo processados
disciplinarmente pelo Tribunal de Justiça ou pelo CNJ e, em certas
hipóteses, respondendo criminalmente perante o TJ.” É insofismável que,
por condutas muito menos graves de parcialidade, o CNJ e os Tribunais de
Justiças já condenaram disciplinarmente, inclusive aposentando
compulsoriamente, juízes de comarcas menos influentes no cenário
nacional.
Nesse quiproquó de um judiciário e um STF altamente politizados, o
presidente do Supremos Tribunal Federal, ministro Lewandowski, passou a
negociar com a Câmara dos Deputados aumento elevado e diferenciado dos
já privilegiados vencimentos do pessoal do Judiciário e de ministros do
STF, em um momento de crise que tende a exigir sacrifícios de amplas
parcelas da população, especialmente da classe trabalhadora. Tudo isso
aponta para um reino de fantasias, mas que, paradoxalmente, é realidade
bruta e chocante, abaixo de qualquer mínimo exigido em uma Estado digno
de funcionamento.
Todas essas observações sobre os desvios do judiciário em geral e do
STF em particular associam-se diretamente com as condições de surgimento
e o andamento do atual processo de impeachment. Os denunciantes
pretenderam envolver a presidenta nos escândalos recentes de corrupção,
apontando-os como uma das causas justificadoras do impeachment, o que
obviamente era uma ilação sem qualquer base jurídica. Nesse particular,
salientei em parecer de dezembro de 2015 que, ao contrário das ilações
dos denunciantes, que pretendem imputar à Presidente da República crime
de omissão por corrupção estrutural que tem chocado a esfera pública,
especialmente no âmbito da Petrobrás[12], há elementos claros de que a
Presidenta tem apoiado todo o trabalho da PF e do MPF na investigação e
persecução dos responsáveis, assim como qualquer apuração necessária
para o esclarecimento dos casos. A esse respeito, acrescentei que, ao
contrário de governos anteriores, o governo da Presidenta Dilma Rousseff
tem apoiado tanto a polícia federal como o ministério público federal
na atividade de investigação e persecução penal relativa aos recentes
casos escandalosos de corrupção, mesmo contrariando os seus
correligionários. Essa atitude é bem diferente do governo de que
participou um dos denunciantes, a saber, em que o ministério público
federal e a polícia federal ficaram nas mãos e sob controle de pessoas
ligadas politicamente ao presidente e de sua inteira confiança, tendo
sido típico os arquivamentos de inquéritos, de tal maneira que o
procurador-geral da república passou a ser chamado popularmente de
“engavetador geral da república”. Em certa medida, a atual Presidenta da
República é uma vítima da corrupção sistêmica que caracteriza o Estado
brasileiro historicamente. A propósito, um renomado membro do Partido da
Social Democracia Brasileira, o empresário Ricardo Semler, em um artigo
sugestivamente intitulado “Nunca se roubou tão pouco”, apontou até
mesmo para a redução da corrupção no âmbito das investigações que vinham
sendo protagonizadas no período do mandato anterior da Presidenta e que
permanecem até o presente:
“Nossa empresa deixou de vender equipamentos para a Petrobras nos
anos 70. Era impossível vender diretamente sem propina. Tentamos de novo
nos anos 80, 90 e até recentemente. Em 40 anos de persistentes
tentativas, nada feito.
Não há no mundo dos negócios quem não saiba disso. Nem qualquer um
dos 86 mil honrados funcionários que nada ganham com a bandalheira da
cúpula.
Os porcentuais caíram, foi só isso que mudou. Até em Paris sabia-se
dos ‘cochons des dix pour cent’, os porquinhos que cobravam 10% por fora
sobre a totalidade de importação de barris de petróleo em décadas
passadas.
[...]
É ingênuo quem acha que poderia ter acontecido com qualquer
presidente. Com bandalheiras vastamente maiores, nunca a Polícia Federal
teria tido autonomia para prender corruptos cujos tentáculos levam ao
próprio governo.” [13]
Uma tal declaração põe-nos diante do perigo que o país venha ou viria
a incorrer após um provável impeachment da presidenta Dilma Rousseff,
passando o Executivo para as mãos de pessoas intimamente relacionadas à
corrupção sistêmica: passagem da presidência para Michel Temer, já
“ficha suja” e suspeito de corrupção (e soa estranho que o
Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, tenha pedido ao STF
autorização para investigar a Presidenta em virtude da delação do
senador Delcídio Amaral, mas não tenha feito o mesmo com relação ao
vice-presidente Michel Temer, amplamente acusado na referida delação);
e, até pouco, a passagem da vice-presidência, na prática, para Eduardo
Cunha, réu em processo criminal em andamento no STF (e também soa
estranho que só anteontem, 05/05/2016, em decisão tomada por
unanimidade, às pressas, o STF tenha afastado esse deputado do exercício
do seu mandato, após ele ter cumprido a sua principal função na
conspiração, a de viabilizar a abertura do processo de impeachment): as
expectativas confiáveis são que ele(s) atue(m), com seus parceiros, para
obstruir investigações, “apaziguando” a polícia federal, o ministério
público e o judiciário, fazendo tudo voltar ao status quo ante: a
“corrupção sistêmica” garantida pela falta de investigações e punições
adequadas.
Entretanto, as ilações sobre o envolvimento da presidenta não foram
admitidas no ato de recepção da denúncia pelo então presidente da Câmara
dos Deputados, que sequer recebeu a denúncia com a imputação à
Presidenta da República de supostos desvios que decorreriam da
reprovação das contas do Poder Executivo referentes ao ano de 2014 pelo
Tribunal de Contas da União. Inúmeros juristas já haviam manifestado que
fatos de mandatos anteriores não poderiam ser objeto de processo de
impeachment. Não obstante, por força de uma apressada ampliação da
denúncia, em uma segunda versão, restaram recebidas pelo presidente da
Câmara a parte da denúncia concernentes a falhas atribuídas à Presidenta
da República no exercício de 2015: seis decretos de abertura de crédito
suplementares sem autorização do Congresso e um caso da chamada
“pedalada fiscal”.
Antes de tudo, cabe observar que as contas do Poder Executivo em 2015
ainda não foram sequer objeto de parecer do TCU nem de decisão do
Congresso Nacional, sendo possível ainda a sua aprovação pelas
instâncias competentes. Além disso, decretos da mesma natureza jurídica
foram expedidos por presidentes anteriores, chegando a mais de uma
centena durante o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2001,
mas as contas sempre foram aprovadas pelo TCU, que apenas apontava para
a necessidade de saneamento e dava recomendações. Por exemplo, no
Relatório e Parecer Prévio referente ao exercício de 2002, o TCU
enfatizava:
“Há que se destacar, no que se refere ao Poder Executivo, a
inviabilidade de se fazer uma análise mais efetiva no que tange à
eficácia de todas as ações relacionadas, devido à verificação de
inúmeras inconsistências, como por exemplo, informações errôneas ou
incompletas sobre metas previstas e realizadas.”[14]
A esse respeito, apontava-se para problemas persistentes de gastos sem autorização pela Lei Orçamentária:
“Sobre a realização de despesas acima do valor autorizado pela Lei
Orçamentária, cabe observar que, de acordo com a Lei 8.443, de 16 de
julho de 1992, as contas das unidades gestoras serão julgadas
irregulares quando demonstrarem ‘prática de ato de gestão ilegal,
ilegítimo, antieconômico, ou infração à norma legal ou regulamentar de
natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou
patrimonial’.”[15]
Em geral, o Relatório advertia para a “falta de transparência na
visualização da programação orçamentária” e apontava que o “momento” era
de “alerta”[16].
Além disso, a conclusão sublinha a “alteração para mais, mediante o
Decreto nº 4.120/2002, dos Programas Estratégicos definidos pela Lei
Orçamentária de 2002”[17]. Essa falha é esclarecida como repetida e
persistente no corpo do Relatório de 2003:
“Cabe apontar que o aludido decreto foi sucessivamente alterado, no
decorrer do exercício, por outros decretos e portarias, que incluíram e
excluíram diversas ações, bem como alteraram sucessivamente os limites
orçamentários e financeiros, com acréscimos e reduções nos tetos
autorizados no período.
Tal como em 2001, pode-se constatar que nem todos os programas e
ações eleitos como estratégicos no Decreto 4.120/2002 e suas alterações
estavam contidos na programação prevista na LDO/2002, que definiu as
metas e prioridades da administração pública federal para o exercício,
conforme orientou a Magna Carta.
Não há perfeita congruência entre os programas e ações estratégicos, a
serem tratados com precedência na execução, e os programas e ações
prioritários, a serem tratados com precedência na alocação de recursos,
conforme fixou a LDO, de forma que constam programas e/ou ações na
referida Lei não contemplados no Decreto e vice-versa.
Reforçando os termos anteriores, recorde-se que a Carta
Constitucional define que a LDO estabelecerá as prioridades e metas da
administração pública federal para o exercício financeiro subsequente.
Os Decretos do Executivo, quando estabelecem precedência na execução de
outros programas, elegem nova categoria de prioridade, não prevista na
lei.”[18]
Observa-se do exposto que, não só no exercício de 2002, mas também de
2001, Decretos do Presidente da República, além de autorizar aumento de
despesas em contrariedade à lei orçamentária, estabeleceram ações e
programas prioritários contrariamente às respectivas leis orçamentárias.
Apesar dessas e de outras “falhas”, persistentes e abundantes, o
Parecer prévio do TCU referente ao exercício de 2002, opinava nos
seguintes termos:
“Considerando que as falhas verificadas, embora não constituam motivo
maior que impeça a aprovação das Contas do Poder Executivo relativas ao
exercício de 2002, requerem a adoção das medidas recomendadas,
observadas as ressalvas constantes da concussão do Relatório”.[19]
Esse modelo de parecer prévio com ressalvas concernentes às falhas,
reaparece, conforme os precedentes, nos pareceres prévios do TCU
referentes aos exercícios de 2003, 2004, 2005, 2008, 2009, 2012 e 2013,
como esclarecem os juristas Jefferson Garús Guedes e Thiago Aguiar de
Pádua:
“Mas o que ora importa observar é o que se deixou fixado nos
Pareceres Prévios: em caso de irregularidades constatadas, isto é, que
todas ‘as contas são aprovadas com ressalvas’.”[20]
A mudança casuística da jurisprudência do TCU em relação a essa
matéria não poderia justificar a responsabilização da Presidenta por
crime de responsabilidade, pois a hipótese fora tratada, no máximo, como
falhas suscetíveis de saneamento. Qual o elemento doloso nesse
contexto? Nenhum. Antes caberia recuperar a exigência da anterioridade
penal, como uma garantia do Estado de direito também em face de mutações
jurisprudenciais, especialmente quando tal alteração não tenha nenhuma
justificação exigível para o overruling, ou seja, para a superação de
precedentes por novos argumentos surgidos com a transformação de
circunstâncias institucionais.
No que concerne à imputação de caso de chamada “pedalada fiscal” no
ano de 2015, concernente ao Plano Safra, a situação é mais esdrúxula,
pois o ato não está no âmbito de competência da Presidenta da República.
A esse respeito, são esclarecedoras as palavras do jurista Ricardo Lodi
Ribeiro, renomado especialista em matéria jurídico-financeira:
“Em relação às pedaladas fiscais, que, como já demonstramos nos
referidos artigos desta coluna, não se confundem com operações
financeiras vedadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, cumpre
considerar que, no caso do único contrato imputado em 2015, relativo ao
Projeto Safra, a sua regulação compete ao Conselho Monetário Nacional,
ficando a execução a cargo do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do
Banco do Brasil. Aqui, a presidente da república, de acordo com as
normas do legais do Projeto, não possui qualquer atribuição. Nesse caso,
se a norma que prevê o crime de responsabilidade atribuído pelos
autores da denúncia ao caso em questão tipifica, no art. 10. 6 da Lei nº
1.079/50, a conduta de ordenar ou autorizar a abertura de crédito em
desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem
fundamento na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com
inobservância de prescrição legal, é de se perquirir: que atos
praticados pela presidente da república são imputados como criminosos?
Ou que atuação desta configura a conduta descrita no art. 11.3, de
contrair empréstimo sem autorização legal, que foi utilizada no parecer
do relator da Comissão Especial da Câmara para considerar esta atuação
como crime de responsabilidade? Nenhuma é a única resposta legalmente
admitida pelo regramento do Projeto Safra. No caso em questão, a gestão
dos contratos não está na competência presidencial, o que a impede de
promover ou determinar a abertura de operação de crédito. Até em razão
disso, os denunciantes ou o relator não foram capazes de apontar
qualquer ato de abertura de crédito à presidente, já que a prática deste
não é a ela legalmente atribuída, sendo conduta estranha ao exercício
das suas funções, o que, por si só, inviabiliza a responsabilização da
Chefe de Estado, nos termos do art. 86, §4º da Constituição
Federal.”[21]
Inclusive se admitidas ilegalidades e inconstitucionalidade nas
práticas da Presidenta, isso não poderia, por si só, justificar a sua
destituição por meio de processo de impeachment. Não é qualquer
ilegalidade ou inconstitucionalidade que justifica a denúncia da
Presidenta da República por crime de responsabilidade. Caso a cada vez
que a Presidenta editasse um decreto ilegal ou inconstitucional,
contrário à Lei orçamentária, à Lei de Reponsabilidade Fiscal ou
qualquer outra lei, ela já merecesse ser denunciada por crime de
responsabilidade, toda e qualquer Chefa de Estado estaria submetida a
cada exercício ao processo de impeachment. Na maioria dos casos, é
suficiente a invalidação do ato ou a determinação do seu saneamento por
órgão de controle, seja jurisdicional, de contas ou administrativo. Só
em sendo algo patentemente atentatório à Constituição, cabe discutir
sobre a possibilidade de impeachment. Isso significa que os crimes
previstos nos incisos do art. 85 da Constituição e tipificados na Lei nº
1.079/1950 devem ser compreendidos à luz do caput do art. 85 da CF,
pertencendo a todas as hipóteses normativas a exigência de que “atentem
contra a Constituição Federal”.
Todo o casuísmo e artificialismo para condenar a presidenta da
República foi conduzido por um congresso em que grande parte está
envolvida em casos graves de corrupção. O então presidente da Câmara dos
Deputados, Eduardo Cunha (tardiamente afastado pelo STF), que dirigiu o
processo na câmara baixa, além de envolvido em gravíssimos atos
criminosos de corrupção, sempre atuou de uma forma parcial e
fraudulenta, tanto para levar a um rápido desfecho do ato de
admissibilidade da acusação contra a Presidenta na Câmara quanto para se
livrar do Conselho de Ética que deve decidir sua cassação por falta de
decoro parlamentar. Corrupto graúdo, mancomunado com a oposição, liderou
uma cleptocracia hegemônica na câmara baixa para viabilizar a abertura
do processo de impeachment no Senado. Isso levou a uma matéria do New
York Times, que veio a enfatizar a posição de jornalista brasileiro de
que “[a Presidenta] não roubou, mas está sendo julgada por uma gang de
ladrões”.[22] Essa é uma afirmação baseada em amplas evidências que
apontam para uma conspiração a por em xeque a democracia brasileira.
A essas práticas conspiratórias dos poderes legislativo e judiciário
junta-se a parcialidade corrupta das grandes organizações empresariais
midiáticas. Descaradamente, elas têm assumido um papel
discriminatoriamente seletivo em suas matérias referentes ao atual
processo de impeachment. Destaca-se a TV Globo de televisão, cujos
jornais tornaram-se instrumentos fundamentais da campanha da oposição
pelo impeachment. O “Jornal das 10” da Globo News tornou-se o
equivalente a um comitê eleitoral de um partido ou coalizão derrotada.
Essa postura discriminatória de desinformação foi percebida por dois
renomados jornalistas norte-americanos, Glenn Greenwald, Andrew Fishman,
e um brasileiro, David Miranda, em artigo no qual se destacam os
seguintes trechos:
“Ao contrário da descrição romantizada e mal informada (para dizer o
mínimo) do Chuck Todd e Ian Bremmer de protestos sendo levantados ‘pelo
Povo’, esses são, na verdade, incitados pela mídia corporativa
intensamente concentrada, homogeneizada e poderosa, e compostos por (não
exclusivamente, mas majoritariamente) pela parte mais rica e branca dos
cidadãos, que por muito tempo guardaram rancor contra o PT e contra
qualquer programa social que combate a pobreza.
A mídia corporativa brasileira age como os verdadeiros organizadores
dos protestos e como relações-públicas dos partidos de oposição. Os
perfis no Twitter de alguns dos repórteres mais influentes (e ricos) da
Rede Globo contém incessantes agitações anti-PT. Quando uma gravação de
escuta telefônica de uma conversa entre Dilma e Lula vazou essa semana, o
programa jornalístico mais influente da Globo, Jornal Nacional, fez
seus âncoras relerem teatralmente o diálogo, de forma tão melodramática e
em tom de fofoca, que se parecia literalmente com uma novela distante
de um jornal, causando ridicularização generalizada nas redes. Durante
meses, as quatro principais revistas jornalísticas do Brasil dedicaram
capa após capa a ataques inflamados contra Dilma e Lula, geralmente
mostrando fotos dramáticas de um ou de outro, sempre com uma narrativa
impactantemente unificada.
Para se ter uma noção do quão central é o papel da grande mídia na
incitação dos protestos: considere o papel da Fox News na promoção dos
protestos do Tea Party. Agora, imagine o que esses protestos seriam se
não fosse apenas a Fox, mas também a ABC, NBC, CBS, a revista Time, o
New York Times e o Huffington Post, todos apoiando o movimento do Tea
Party. Isso é o que está acontecendo no Brasil: as maiores redes são
controladas por um pequeno número de famílias, virtualmente todas
veementemente opostas ao PT e cujos veículos de comunicação se uniram
para alimentar esses protestos.
Resumindo, os interesses mercadológicos representados por esses
veículos midiáticos são quase que totalmente pró-impeachment e estão
ligados à história da ditadura militar. Segundo afirma Stephanie Nolen,
correspondente no Rio para o canadense Globe and Mail: ‘Está claro que a
maior parte das instituições do país estão alinhadas contra a
presidente’.
De forma simples, essa é uma campanha para subverter as conquistas
democráticas brasileiras por grupos que por muito tempo odiaram os
resultados de eleições democráticas, marchando de forma enganadora sob
uma bandeira anti-corrupção: bastante similar ao golpe de 1964. De fato,
muitos na direita do Brasil anseiam por uma restauração da ditadura, e
grupos nesses protestos “anti-corrupção” pediram abertamente pelo fim da
democracia.”[23]
Essas considerações enfáticas nos põem diante do problema da falta de
qualquer agência efetivamente encarregada da observação das
organizações empresariais de comunicação de massa. Contra a criação de
uma agência composta por membros da sociedade civil e do Estado,
levantam-se equivocadamente (quando não oportunisticamente) vozes em
nome das liberdades de expressão e de imprensa. Mas a liberdades de
expressão e de imprensa são primariamente direitos dos cidadãos e não
das empresas que exploram economicamente o jornalismo e a radiodifusão.
Tais empresas precisam ser observadas para que possam ser caracterizados
os casos em que tolhem a liberdade de expressão do cidadão. Não há nada
de antidemocrático (nem de “bolivarianismo” no sentido usado
pejorativamente pelo status quo). O país que mais preza a liberdade de
expressão, os Estados Unidos da América, conta com a Federal
Communication Commission, que, entre outras atribuições, tem competência
para impedir que alguém inicie transmissão de “conduzir investigações e
analisar reclamações”[24], tendo praticado multa a emissoras de
televisão que recusaram a sua inspeção[25]. Além disso, o papel da FCC é
fundamental para evitar a concentração de poder em uma ou algumas
organizações empresariais midiáticas, não apenas por determinação do
direito econômico de concorrência, mas também em nome da pluralidade e
diversidade na formação da opinião pública, do direito à informação e
também da liberdade de expressão dos cidadãos. Isso tudo falta no Brasil
em relação aos gigantes da informação, que são antes instrumentos de
lucro, do grande capital e de políticos oligárquicos do que das
liberdades de imprensa e de expressão, assim como do direito à
informação.
Nessas circunstâncias, o processo de impeachment atua como um
equivalente funcional a um golpe de Estado. O objetivo é, na verdade,
destituir a Chefa de Estado com base na distorção de um instituto
constitucional legítimo. Ao falar de equivalente funcional a um golpe de
Estado no sentido clássico da expressão, não descarto ser também
adequado afirmar-se que se trata de um golpe parlamentar, judicial e
midiático. Retomando e relendo aqui uma velha distinção de Louis
Althusser e entre aparelhos repressivos e aparelhos ideológico de
Estado[26], um tanto fora de moda, pode-se dizer que, enquanto na versão
clássica do golpe, a dimensão repressiva do aparato estatal sobressai,
na versão atual, “moderna” ou (se quiserem) “pós-moderna”, prevalece a
dimensão ideológica de agentes estatais e atores da sociedade civil. Em
certos aspectos, esta talvez seja mais grave do que aquela, pois envolve
uma escamoteação ideológica que, pretensamente em nome da constituição,
distorce, corrói, erode a própria Constituição. O impacto de políticos
corruptos conduzindo o processo e um judiciário partidarizado poderá
levar a uma implosão da constituição e a um profundo descrédito das
instituições jurídicas, caso o impeachment seja aprovado.
Tudo isso é a expressão de uma conspiração protagonizada por
organizações empresariais midiáticas corruptamente parciais, por um
parlamento dominado por uma cleptocracia, um Ministério Público ao mesmo
tempo parcial e anfíbio, e um judiciário, especialmente o Supremo
Tribunal Federal, não apenas acovardado, mas sobretudo politicamente
capturado por um projeto golpista liderado em sua origem por um
gângster, ainda solto e, portanto, capaz de liderar os seus cúmplices e
manipular o processo.
[1] Nota do editor: a publicação do presente artigo foi rejeitada
pelo portal JOTA (jota.uol.com.br), com base no seguinte argumento do
seu editor, jornalista Felipe Recondo: “Caríssimo, agradecemos o texto,
mas não temos como publicá-lo. O texto, em verdade, é um manifesto
(legítimo, evidentemente). Mas já tivemos de deixar de publicar textos
neste formato recentemente. Não podemos abri o precedente, mas para
figura tão respeitada, como o professor Marcelo Neves (...). Espero que
compreenda. Obrigado mais uma vez e desculpe a demora.” Como nós, do
Crítica Constitucional, além de tudo, discordamos de que se trate de um
manifesto, pois entendemos ser um artigo de opinião com base
técnico-jurídica, resolvemos publicá-lo para estimular o debate sobre o
problema.
[2] Cf. Rose-Ackerman, Susan. Corruption and Government: Causes,
Consequences, and Reforms. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
[3] Sobre subintegração e subcidadania versus sobreintegração e
subrecidadania como formas de exclusão “por baixo” e “por cima”,
respectivamente, na modernidade periférica, ver Neves, Marcelo.
Verfassung und Positivität des Rechts in der peripheren Moderne: Eine
theoretische Betrachtung und eine Interpretation des Falls Brasilien.
Berlim: Duncker & Humblot, 1992, pp. 78 s. e 94 s.; Entre
Subintegração e Sobreintegração: A Cidadania Inexistente. In: DADOS –
Revista de Ciências Sociais, vol. 37, nº 2. Rio de Janeiro: Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, pp. 253-76.
[4] STF, 2ª Turma, Ação Penal nº 563/SP, rel. min. Teori Zavaschi,
julg. 21/10/2014:
http://s.conjur.com.br/dl/ap-563-protogenes-acordao.pdf.
[5] Cf. sítio do CONJUR: http://www.conjur.com.br/2015-ago-19/anulacao-satiagraha-condenacao-protogenes-sao-definitivas.
[6] Cf. sítio de Exame.com: http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/848/noticias/um-pais-imprevisivel-m0056922.
[7] “Art. 17. Não será permitido ao magistrado e ao servidor fornecer
quaisquer informações, direta ou indiretamente, a terceiros ou a órgão
de comunicação social, de elementos contidos em processos ou inquéritos
sigilosos, sob pena de responsabilização nos termos da legislação
pertinente.”
[8] Zucca, Lorenzo. “Conflicts of Fundamental Rights as
Constitutional Dilemmas”. In: E. Brems (org.). Conflicts between
Fundamental Rights. Antuérpia: Intersentia, 2008, pp. 19-37, p. 28;
Klatt, Mathias; Meister, Moritz. The Constitutional Structure of
Proportionality. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 4.
[9] Alexy, Robert. Theorie der Grundrechte. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1986, pp. 121-2 [trad. bras.: Teoria dos direitos
fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 140].
[10] Cf. sítio da BBC: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/03/160329_frases_portugal_mf_np.
[11] Cf. sítio de Brasil 247: http://www.brasil247.com/pt/247/poder/221407/Contra-Lula-ministro-Gilmar-põe-STF-sob-suspeita.htm.
[12] Bicudo, Hélio Pereira; Reale Júnior, Miguel; Paschoal, Janaína Conceição. Denúncia (DCR 1/2015), pp. 47 ss.
[13] Semler, Ricardo. “Nunca se roubou tão pouco”. In: Folha de São
Paulo, 21 de novembro de 2014:
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/11/1551226-ricardo-semler-nunca-se-roubou-tao-pouco.shtml.
[14] Tribunal de Consta União. “Relatório e Pareceres Prévios sobre
as Contas do Governo da República – Exercício de 2002”. Diário do Senado
Federal, ano LVIII, Suplemento ao nº 083, 17 de junho de 2013, Brasília
– DF, p. 501.
[15] Ibidem, p. 497.
[16] Ibidem.
[17] Ibidem.
[18] Ibidem, pp. 60-61.
[19] Ibidem, p. 512.
[20] Guedes, Jefferson Garús; Pádua, Thiago Aguiar de. “Pedaladas
jurisprudenciais do TCU ou prospective overruling?” In: Consultor
Jurídico, 16 de agosto de 2015, p. 1
(http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/pedaladas-jurisprudenciais-tcu-ou-prospective-overruling#sdendnote9sym).
[21] Ribeiro, Ricardo Lodi. “Da farsa do impeachment ao golpe
parlamentar”. In: Direito do Estado, 27 de abril de 2016:
http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/Ricardo-Lodi-Ribeiro/da-farsa-do-impeachment-ao-golpe-parlamentar.
[22] “She didn’t steal, but a gang of thieves is judging her”
(Romero, Simone; Sreeharsha, Vinod. “Dilma Rousseff Targeted in Brazil
by Lawmakers Facing Scandals of Their Own”. In: New York Times,
14/04/2016:
http://www.nytimes.com/2016/04/15/world/americas/dilma-rousseff-targeted-in-brazil-by-lawmakers-facing-graft-cases-of-their-own.html?_r=0).
Original: “Não roubou, e será julgada por muitos ladrões” (Conti, Mario
Sergio. “O que quer uma mulher”. In: Folha de São Paulo, 29/03/2016:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/mariosergioconti/2016/03/1755014-o-que-quer-uma-mulher.shtml).
[23] Greenwald, Glenn; Fishman, Andrew; Miranda, David. “Brazil is
Engulfed by Ruling Class Corruption – and a Dangerous Subversion of
Democracy” [“O Brasil está sendo engolido pela corrupção – e por uma
perigosa subversão da democracia”]. In: Intercept, 18 de março de 2016:
https://theintercept.com/2016/03/18/brazil-is-engulfed-by-ruling-class-corruption-and-a-dangerous-subversion-of-democracy/.
[24] Cf. sítio eletrônico da FCC: https://www.fcc.gov/about-fcc/what-we-do (acesso em 4 de maio de 2016)
[25] Idem: https://www.fcc.gov/enforcement (acesso em 4 de maio de 2016).
[26] Althusser, Louis. “Idéologie et appareils idéologiques d’État
(Notes pour une recherche)”. In: Louis Althusser. Positions (1964-1975).
Paris: Éditions Sociales, 1976, pp. 67-
125, pp. 81 ss.; Poulantzas, Nicos. L’Etat, le Pouvoir, le Socialisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1978, pp. 31-8 [trad. bras.: O Estado, o poder, o socialismo. 2.a ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985, pp. 33-40].
*Marcelo Neves é Professor Titular de Direito Público da Universidade
de Brasília - UnB. Doutor em Direito pela Universidade de Bremen, com
bolsa do DAAD (1991). Obteve livre-docência pela Faculdade de Direito da
Universidade de Fribourg na Suíça (2000). Foi bolsista-pesquisador da
Fundação Alexander von Humboldt no Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Frankfurt am Main, Alemanha (2000). Foi Jean Monnet Fellow
no Departamento de Direito do Instituto Universitário Europeu, em
Florença, Itália (2000-2001).
Fonte O Cafezinho
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