EUA e seus aliados vassalos ocidentais – tenta saquear o resto do mundo
para adiar sua queda. O objetivo é apoderar-se e esgotar os recursos
naturais da periferia, marginalizar completamente seus habitantes ou
super-explorá-los, conforme o caso (...) O que se instala é o caos porque o que emerge não é uma nova divisão
internacional do trabalho mas, sim, a decadência global. A crise do
Império enfatizou sua loucura belicista que, por sua vez, agrava a
crise.
Potências ocidentais destroem nações e
estabelecem apenas o caos. Parasitismo financeiro e desigualdade inédita
sufocam economia global. Vem aí um grande retrocesso civilizatório?
Jorge Beinstein,
entrevistado por Arnaldo Perez Guerra
Tradução: Marisa Choguill
Renomado
economista marxista, especialista em previsão da economia global, Jorge
Beinstein é doutor em Ciências Econômicas pela Universidade de Franche
Comté-Besançon, França, e, atualmente, Professor Emérito da Universidad
Nacional de La Plata, Argentina, de onde dirige o Centro Internacional
de Informações Estratégicas e Estudos Prospectivos (CIIEP). Tem
lecionado em importantes universidades na Europa e na América Latina,
onde também dirigiu relevantes projetos de pesquisa. Seus livros mais recentes incluem: Comunismo
o Nada, La Ilusión del Metacontrol Imperial del Caos: La Mutación del
Sistema Militar de los EUA, Capitalismo del Siglo XXI, e Crónica de la Decadencia: Economía Global 1999-2009. Seus trabalhos podem ser lidos no site beinstein.lahaine.org.
O que acontece na Argentina, após a chegada de Macri no governo, e como você caracteriza suas decisões?
Significou uma virada violenta para a extrema-direita do arco
político argentino. Em poucos dias, fizeram-se transferências de renda
para as elites econômicas que por sua magnitude e velocidade são sem
precedentes na história econômica da Argentina.
Isso está causado uma forte contração do mercado interno e, portanto, a
chegada da recessão. O FMI previu no início do ano uma queda real do
Produto Interno Bruto em 2016 na ordem de 1%, apesar de, vendo o que já
acontecia no primeiro trimestre, pode-se
falar de queda superior a 3%, muito além do que o governo anuncia para o
futuro a partir de cifras manipuladas. Desde a chegada de Macri, houve
um apagão estatístico. Cifras oficiais de desemprego, inflação e outros
indicadores não mais existem. Não excluo a possibilidade de um tipo de
hiper-recessão se o governo não conseguir controlar a dinâmica
depressiva que gerou.
Entre os especialistas, discutiu-se nos primeiros meses o que era
realmente o modelo econômico macrista. As decisões econômicas têm sido
tão selvagens, as contradições tão evidentes, o desastre tão grande que
não podemos pensar que temos um plano estratégico coerente, apontando
para uma reestruturação capitalista de longo prazo, embora oligárquica,
mas sim que enfrentamos um saque onde cada grupo dominante leva sua
fatia sem se importar com o que vai acontecer no futuro. Nós marchamos
para uma crise de governança, impulsionada por forças entrópicas que se
desencadearam com o colapso do kirchnerismo. As classes dominantes
argentinas operam como uma espécie de lumpenburguesia, de burguesia
predatória altamente destrutiva. O fenômeno é parte de um processo
global do mesmo tipo.
Vamos falar da “lumpenburguesia global dominante”…
Teríamos que voltar à década de 70 quando, a partir da estagflação, a
recuperação ocorreu com taxas de crescimento econômico global
declinantes. Essa tendência de longo prazo foi acompanhada por uma
expansão dos negócios financeiros que acabou financeirizar o sistema
mundial de tal forma que, desde 2008, a massa financeira mundo
representa cerca de vinte vezes o Produto Bruto Global (PBG). Somente
os derivados financeiros ascenderam a cerca de 11 vezes o PBG. O
fenômeno é parte de um processo mais amplo de ascensão do parasitismo
como componente hegemônico do sistema capitalista mundial que, claro,
também inclui a hipertrofia militar, a narco-economia, o consumo
conspícuo das elites globais, sua plataforma produtivo-comunicacional,
etc. É um fenômeno originado quase meio século atrás mas que, no século 21,
se manifesta como uma mutação integral do sistema, como a transformação
de seu núcleo central dominante em uma casta parasita. Neste sentido, é
possível estabelecer paralelos com outros declínios civilizatórios como
por exemplo o do Império Romano, a fase superior e final da chamada
civilização greco-romana.
A lumpenburguesia – hoje dominante globalmente e tendo como centro o império estadunidense
–, ou seja, uma burguesia degenerada, parasitária, marca um salto
qualitativo na trajetória universal do capitalismo, bem como a
aristocracia militar-consumista durante a decadência imperial foi
resultado da mutação terminal de Roma.
Você aponta
para uma crise da financeirização da economia mundial e para o fato de
que o imperialismo apresenta como último recurso a ” Guerra de Quarta
Geração”: destruir as sociedades periféricas para convertê-las em áreas
de saque. Você pode explicar isso e expandir a sua visão?
A crise de 2008 marcou o fim da expansão acelerada da trama global
financeira – era um tipo de droga que permitiu o endividamento de
Estados, empresas e consumidores do capitalismo central; mas, esse ciclo
de endividamento impune atingiu o limite, o estouro da mega-bolha
imobiliária foi o ponto de virada do sistema. Então, os Estados
imperialistas fizeram enormes transferências de fundos para os grupos
financeiros evitando, com sucesso, seu colapso. Mas, isso não foi mais
do que um remendo, não a superação da crise.
Em 2001, por exemplo, os negócios com produtos financeiros derivados,
a espinha dorsal da rede global especulativa, acumularam uns 95
trilhões de dólares, equivalente a 2,8 vezes o PBG. Em 2005, chegaram a
aproximadamente 280 trilhões (cerca de 6 vezes o PBG). E, em meados de
2008, pouco antes da crise, atingiram aproximadamente 680 trilhões (11
vezes o PBG). Foi um crescimento exponencial; mas, a partir desse
momento, essa massa especulativa deixou de se expandir, tornou-se
instável, e desde 2014 começou a desinflar rapidamente. Entre o final de
dezembro de 2013 e o final de dezembro de 2015, a contração foi da
ordem de 30%. Em 24 meses, desvaneceram-se cerca de 220 trilhões de
dolares, equivalente a quase três vezes o PBG!
Até a crise de 2008, a expansão financeira operou como uma espécie de
impulsor inflacionário da economia mundial. Mas, a partir de 2014, a
contração financeira funciona como um motor deflacionário que empurra
para baixo a economia. Dito de outra forma: numa primeira fase,
desenrolou-se um círculo aparentemente virtuoso (na verdade, perverso),
onde o aumento das dívidas e os ganhos especulativos inflaram o consumo
dos países ricos, seus gastos estatais (especialmente os gastos
militares), suas inovações tecnológicas, suas atividades produtivas, o
que por sua vez alimentou a especulação financeira. Mas, o funcionamento
de tal mecanismo produziu finalmente um círculo vicioso depressivo onde
a sobrecarga financeira comprime a economia que, por sua vez, prejudica
e desinfla a especulação. Estamos perante o declínio turbulento de um
ciclo parasita, a mais grave crise da história do capitalismo.
Se olharmos para o que aconteceu com outras civilizações, volto ao
caso romano, verificaremos que, quando a perda da dinâmica atinge um
determinado ponto, a elite governante tenta aproveitar ao máximo seu
último recurso: a força militar. Em nossa civilização burguesa, o
Império – EUA e seus aliados vassalos ocidentais – tenta saquear o resto
do mundo para adiar sua queda. O objetivo é apoderar-se e esgotar os
recursos naturais da periferia, marginalizar completamente seus
habitantes ou super-explorá-los, conforme o caso. Trata-se de um
megaprojeto estratégico tendente a reduzir drasticamente seus custos
periféricos (mão de obra, insumos agrícolas e de mineração, etc.).
Líbia, Iraque, Ucrânia, Afeganistão e Síria… nos mostrem o Império
destruindo sociedades mas sem ser capaz de substituir o que foi
destruído por uma nova ordem colonial,. O que se instala é o caos porque
o que emerge não é uma nova divisão internacional do trabalho mas, sim,
a decadência global. A crise do Império enfatizou sua loucura belicista
que, por sua vez, agrava a crise.
Os
“progressismos” da América Latina parecem desgastados. Qual a sua
opinião sobre o que está acontecendo em Honduras, Paraguai, Bolívia,
Equador e Venezuela, a queda do kirchnerismo, as negociações para a paz
na Colômbia, e “normalização” das relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos?
Os progressismos latino-americanos – desde suas versões mais
conservadoras como a Frente Ampla do Uruguai até a mais radical como a
da Venezuela – tentaram reformar o sistema capitalista existente, em
alguns casos para humanizá-lo, melhorá-lo socialmente, e em outros para
superá-lo gradualmente –, não deram origem a revoluções senão a reformas
mais ou menos audazes. Essas experiências puderam se aproveitar da
melhora efêmera do comércio internacional de matérias-primas,
combinando-as quase sempre com a expansão dos mercados internos,
especialmente a expansão do consumo popular. Eles também aproveitaram o
retrocesso geopolítico do Império para construir políticas relativamente
autônomas.
Mas, isso se foi esgotando com o aprofundamento da crise global de 2008
e especialmente desde 2014, quando os preços das matérias primas
caíram, à
qual foi adicionada uma ofensiva muito forte dos EUA, retomando seu
quintal latino-americano. Isso começou desde a chegada de Obama à Casa
Branca com a implantação de uma complexa e flexível gama de
intervenções, de ‘choques suaves’ como no Brasil, Honduras, Paraguai e
Argentina, até ações desestabilizadoras como ocorre na Venezuela,
passando pelo ‘abraço de urso’ em Cuba e seguindo o plano de
desarmamento da guerrilha colombiana. Neste último caso, os EUA tentam
alcançar a rendição negociada da insurgência através de uma sofisticada
trama envolvente de pressões diretas e indiretas, armadilhas sedutoras e
golpes baixos. É um jogo típico da chamada Guerra de Quarta Geração
destinada a submeter a insurgência a dinâmica aparentemente de
assimilação ao sistema, mas, na verdade, de destruição, começando pelos
seus fundamentos ideológicos revolucionários até sua extinção
estrutural.
Em sua ofensiva contra o progressismo, os EUA contam com a
colaboração das burguesias latino americanas plenamente
transnacionalizadas. Lumpenburguesias periféricas arrastando segmentos
importantes das camadas médias.
As classes médias latino-americanas
estão se tornando de direita? Neo-fascismo? Contra-revolução? O que tem
contribuído para que esse fenômeno ocorra?
O que países como Brasil, Argentina, Bolívia e Venezuela mostram, em
sua primeira fase próspera, é que a prosperidade e a governança do
sistema não só ressuscitou a voracidade das elites locais, mas também
‘aburguesou’ as camadas médias ascendentes, ajudou sua integração
ideológica com a camada logo acima, predatória, lumpenburguesa do
capitalismo, buscando ao mesmo tempo diferenciar-se das classes mais
baixas, também ascendentes. A mídia [meios de comunicação] concentrada
desempenhou um papel decisivo nesse processo injetando ódio social em um
espaço fértil para isso, associando a justiça social com consumo,
democratização do poder político com corrupção, etc. Este
surto de irracionalidade pequeno-burguesa é parte de um fenômeno mais
amplo, global de fascistização, que abrange a Europa e inclui fenômenos
tais como do chamado
“Estado Islâmico” no Oriente Médio. Os neofascismos centrais e
periféricos aparecem como respostas reacionárias à crise, às vezes
produzindo contrarrevoluções – não porque tenha havido tentativas
revolucionárias reais; mas, precisamente, por causa da ausência de
revoluções antissistema capazes de superar a degradação capitalista.
Enfim, a instalação de regimes reacionários não significa o início de
uma nova governança de tipo colonial e elitista, mas a instalação de
mecanismos de saque que aprofundam a crise. É o que vemos em casos como os da Argentina, Brasil e Paraguai e no que poderia vir a ser uma vitória neofascista na Venezuela.
Os EUA irão atacar os BRICS?
Evidentemente que sim, e acabam de obter seu primeiro sucesso no
Brasil. Mas, sua mega-estratégia global aponta contra a China e a
Rússia. Ambas as potências formaram uma parceria estratégica de longo
alcance que está deslocando os EUA da Ásia, estabelecendo pontes
importantes com a África e a América Latina. A intervenção da OTAN na
Líbia e no resto da África, bem como a ofensiva imperialista na América
Latina pretendem, entre outras coisas, frear a crescente influência da
China e da Rússia. O problema do Império é que ele não tem o que
oferecer em troca do mercado chinês para países como Brasil ou
Argentina; oferece apenas promessas de “investimentos” enquanto realiza
ou procura realizar saques.
Os EUA estão
tentando apoderar-se das reservas mundiais de petróleo e de gás do
Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia, Ucrânia, Iêmen… e Venezuela?
Um dos temas-chave da disputa geopolítica da Eurásia é o da guerra
energética onde as reservas de petróleo e gás ocupam uma posição
central; o controle dessas reservas mas também de seu transporte:
gasodutos e oleodutos, canais, estreitos e outras posições estratégicas.
Por exemplo, na Ásia e especialmente na área do Golfo Pérsico e da
bacia do mar Cáspio, localizam-se mais de 65% das reservas de petróleo
globais. Essa luta estende-se desde a África, na Nigéria e em Angola,
até a América Latina, onde a Venezuela ocupa um lugar crucial com 20%
das reservas mundiais de petróleo.
Embora o preço do petróleo esteja hoje muito baixo, também é verdade
que a produção global de petróleo convencional está estagnada há quase
uma década. O surgimento do petróleo de xisto betuminoso nos EUA
expandiu o volume extraído; mas, trata-se de recursos limitados que em
poucos anos – no início da próxima década – vão atingir seu pico e
começar a declinar. Obviamente, o domínio das principais fontes de
energia permitiriam aos EUA colocar um pé no pescoço da China e outro na
Europa e fazer o jogo do gato e do rato com o concorrente russo,
levantando e baixando os preços segundo a sua vontade. Mas os EUA não
estão ganhando essa guerra: não puderam subjugar a Irã, grande
exportador de energia, não puderam desestabilizar a Rússia, outro grande
produtor, dando origem à convergência russo-chinesa, e até agora não
conseguiram subjugar a Venezuela.
O que você acha que acontecerá com a China e a Rússia nas próximas décadas?
Tanto a China quanto a Rússia poderiam emergir como grandes
potências, aproveitando-se do último grande boom da economia capitalista
global. A Rússia como potência militar-energética e a China como
potência industrial. Em ambos os casos, as exportações para os países
ricos foram os motores da prosperidade. Mas, esta fase global está
acabada. Os mercados desenvolvidos estão se comprimindo e os EUA –
liderando a OTAN – perseguem essas nações emergentes. Tentam
capturar grandes reservas de matérias-primas e quebrar o poder militar,
no caso russo, e no caso chinês tentando escravizar a maior classe
trabalhadora industrial do planeta – 250 milhões de trabalhadores – e
subordinar tão temível concorrente financeiro e industrial, mas, também,
tecnológico, e com cada vez maior capacidade militar. Liquidar a
parceria estratégica russo-chinesa é o grande objetivo do Ocidente.
Mas, por outro lado, os capitalismos russo e chinês não estão fora da
crise mundial; eles fazem parte da mesma, são afetados pela sua
turbulência, suas contrações comerciais. Eles estão procurando se
desapegar parcialmente do declínio global entrincheirando-se no espaço
euroasiático. O projeto da Nova Rota da Seda, uma gigantesca rede de
transporte marítimo e terrestre unindo os países da região, constitui-se
em uma de suas maiores esperanças. O que mostra a realidade é que eles
não podem escapar da desordem global. Apesar de essas duas nações terem
encenado, no século 20,
as duas maiores tentativas de superar o capitalismo. A inviabilidade
histórica do nacionalismo burguês na era do capitalismo globalizado,
ainda que se trate de grandes países, abre a possibilidade de se tentar
novamente tomar o céu de assalto [ao analisar a Comuna de Paris (1871), Marx escreveu que os insurgentes, pela ousadia e determinação de seus objetivos e ações, teriam “tomado o céu de assalto” – NT]
Qual a sua
opinião sobre o Chile? Vivemos a doutrina do choque imposta pela
ditadura, pelo neoliberalismo selvagem, pelo extrativismo e
endividamento, pela despolitização…
Acho que o Chile nunca foi capaz de superar a tragédia de 11 de setembro [de 1973, quando um golpe de Estado sangrento derrubou Salvador Allende].
A ditadura remodelou a sociedade chilena. Não é o único caso; também na
Argentina, a ditadura militar instalada em 1976 produziu degradações
culturais e estruturais que sobreviveram até hoje.
Depois de Pinochet, vocês se tornaram uma espécie de democracia
limitada, comprimida pelo modelo neoliberal que pode ser instalado e
jogado como parte de uma divisão (colonial) internacional do trabalho,
de uma economia global hegemonizada pelos Estados Unidos, mas que agora
está se deteriorando rapidamente. Caem os preços das matérias-primas sem
perspectivas de recuperação significativa e duradoura, afetando
decisivamente o modelo neoliberal chileno.
A burguesia chilena acreditava que aquele massacre pinochetista e
suas extensões econômicas e culturais “democráticas” extirpariam
completamente a memória histórica popular, bloqueariam para sempre o
surgimento de alternativas antissistema. Essa é a a eterna ilusão dos
contrarrevolucionários, sempre desmentida pela realidade. A América
Latina está atualmente vivendo uma época de trevas, de investidas da
direita; mas, também da decadência capitalista. O que então parecia
impossível – as aspirações revolucionárias –, pode reaparecer. As
latências [‘reações’ que estão latentes, veladas, reprimidas – NT], as
memórias subterrâneas que se reproduzem invisivelmente podem convergir
com novas formas de crítica teórica e luta prática até formar uma
avalanche social. Tal possibilidade não deve ser descartada, mas
bastante encorajada. A evolução da crise global e regional abre esta
perspectiva”.
Fonte Outras Palavras
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