Na atual fase os golpistas se articulam para recolocar o Brasil à sua condição de colônia do capitalismo rentista. Portanto, destruir os direitos sociais, econômicos e trabalhistas conquistados na Constituição Federal de 1988. Para tanto, há uma orquestração de ações nos campos político (executivo e legislativo) e jurídico-constitucional (Supremo).
Por Robson Sávio Reis Souza
Doutor em Ciências Sociais, professor universitário
e membro da Comissão da Verdade de MG
Nesse 31 de março recordamos, mais uma vez, o malfadado golpe civil-militar de 1964. E somos obrigados a falar do golpe de 2016.
Escrevo também na condição de coordenador da Comissão da Verdade em
Minas Gerais, que tem, entre outros, o compromisso com a verdade, a
memória e a justiça.
Nas democracias, a mudança do poder político só é legítima pela via
eleitoral. Portanto, golpe é a mudança do poder político, de forma
repentina, sem a deliberação ou o respaldo do povo.
Em 1964, o movimento golpista se deu com a violência das armas e o
protagonismo foi dos militares. Em 2016, com violência simbólica, o
protagonismo do parlamento no golpe só foi possível pelo evidente
respaldo do judiciário. Em ambos os casos, a mídia, o setor financeiro e
segmentos retrógrados da classe média foram os avalistas das rupturas
democráticas.
Como se sabe, os golpes sempre produzem gravíssimas rupturas de
ordens institucional, jurídica, econômica, social e até moral. Não é por
acaso que percebemos a falta de compostura generalizada, inclusive de
juízes de tribunais superiores.
E o golpe atual tem um agravante: diferentemente do golpe de 1964,
quando os militares assumiram o controle e enquadram à força as demais
instituições, o que vemos agora é uma disputa ensandecida entre líderes
dos três poderes pelo controle do poder.
Como já registramos em outros textos, o que nos chama a atenção na
ruptura democrática atual é o papel estratégico desempenhado por
promotores e juízes na consolidação da ruptura democrática. Esse
processo de centralidade do judiciário iniciou-se com a judicialização
da política (no mensalão), derivando na politização da justiça (nas
posturas e decisões de Sérgio Moro, Rodrigo Janot e Gilmar Mendes, na
lavajato) e culmina com a partidarização da justiça (com a nomeação de
Moraes para o STF). Fala-se, inclusive, que a presidente do Supremo,
Gilmar Mendes ou Moro estariam sendo preparados para chefiar o
executivo, num novo golpe dentro do golpe. Não me surpreendeu o fato de
juízes e promotores começarem a se despontar em pesquisas de intenção de
voto à presidência da república divulgadas nos últimos dias. Só falta o
(detalhe do) respaldo popular para a consolidação da juristocracia
tupiniquim no poder.
A centralidade do judiciário acontece simultaneamente à ampla
campanha de criminalização da política, pela mídia, notadamente dos
partidos e seus quadros. Ou seja, à medida que todos os políticos e
partidos são lançados na fogueira, o poder judiciário vai aumentando sua
musculatura.
Sintomático, também, o fato de, justamente quando o voto popular
passou a eleger políticos e partidos de esquerda no nível central, os
grupos de direita se articularam para surrupiar do povo o direito de
escolher seus governantes e recolocaram as tradicionais elites, os
velhacos, como dizia Ulisses Guimaraes, no centro da vida política
nacional.
O fato é que as consequências das rupturas democráticas aparecem de
variadas formas: disputa entre poderes, instabilidade das instituições,
experimentos de golpes dentro do golpe, medidas antipopulares e
antinacionais, etc.
No caso do golpe atual há que se registrar, também, algumas
psicopatologias dos principais líderes golpistas nos três poderes:
desejo incontido de poder, prestígio e bajulação e uma imensa fraqueza
moral e ética, própria de personalidades pueris: pessoas que não têm
limites; vivem num mundo paralelo; postam-se como cidadãos acima do bem e
do mal e são obcecados pelo poder a qualquer custo.
Na atual fase os golpistas se articulam para recolocar o Brasil à sua
condição de colônia do capitalismo rentista. Portanto, destruir os
direitos sociais, econômicos e trabalhistas conquistados na Constituição
Federal de 1988. Para tanto, há uma orquestração de ações nos campos
político (executivo e legislativo) e jurídico-constitucional (Supremo).
É verdade que já aparecem fraturas entre os golpistas. Afinal, cobras
num mesmo caixote acabam mordendo os rabos umas das outras. E vale a
pena continuar torcendo para a sabotagem recíproca entre os membros dos
grupos golpistas. Talvez, um racha seja a única forma de se esfacelar
essa coalizão que destrói o país para a alegria do Tio Sam, o mentor do
golpe, como ocorrera também em 1964.
Porém, enganam-se aqueles que pensam num futuro promissor com um país
entregue à uma camarilha despudorada, antipopular e antinacional. O
problema é maior é que não podemos contar com uma justiça isonômica e
comprometida com a Constituição. Ademais, as instituições referenciais
da sociedade também são objeto de desconfiança pública.
É preciso coragem: eleições diretas pelo voto popular são necessárias
para o retorno à democracia. Mas, não são suficientes: somente com uma
constituinte exclusiva para reformar os sistemas político, jurídico,
econômico, de comunicação, entre outros, poderemos sair desse fosso
colossal.
1964, que estava no retrovisor, voltou. É preciso reagir. Ou cairemos numa situação de barbárie.
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