Ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Jessé Souza vai lançar novo livro em que aprofunda sua crítica à tese do patrimonialismo como origem de nossas mazelas; a mídia, a Justiça e a intelectualidade, de maneira quase unânime, afirma Souza, estão a serviço dos donos do poder e se irmanam no objetivo de manter o povo em um estado permanente de letargia. A classe média, acrescenta, não percebe como é usada. “É feita de imbecil” pela elite, avalia
Os extratos médios, diz o sociólogo, defendem de forma acrítica os
interesses dos donos do poder e perpetuam uma sociedade cruel forjada na
escravidão
Carta Maior
Em agosto, o sociólogo Jessé Souza lança novo livro, A Elite do Atraso – da Escravidão à Lava Jato. De certa forma, a obra compõe uma trilogia, ao lado de A Tolice da Inteligência Brasileira, de 2015, e de A Ralé Brasileira, de 2009, um esforço de repensar a formação do País.
Neste novo estudo, o ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada aprofunda sua crítica à tese do patrimonialismo como origem de nossas mazelas e localiza na escravidão
os genes de uma sociedade “sem culpa e remorso, que humilha e mata os
pobres”. A mídia, a Justiça e a intelectualidade, de maneira quase
unânime, afirma Souza na entrevista a seguir, estão a serviço dos donos
do poder e se irmanam no objetivo de manter o povo em um estado
permanente de letargia. A classe média, acrescenta, não percebe como é
usada. “É feita de imbecil” pela elite.
CartaCapital: O impeachment de Dilma Rousseff, afirma o senhor, foi mais uma prova do pacto antipopular histórico que vigora no Brasil. Pode explicar?
Jessé Souza: A construção desse pacto se dá logo a partir da libertação dos escravos,
em 1888. A uma ínfima elite econômica se une uma classe, que podemos
chamar de média, detentora do conhecimento tido como legítimo e
prestigioso. Ela também compõe a casta de privilegiados. São juízes,
jornalistas, professores universitários. O capital econômico e o
cultural serão as forças de reprodução do sistema no Brasil. Em outra ponta, temos uma classe trabalhadora precarizada, próxima
dos herdeiros da escravidão, secularmente abandonados. Eles se
reproduzem aos trancos e barrancos, formam uma espécie de família
desestruturada, sem acesso à educação formal. É majoritariamente negra,
mas não só. Aos negros libertos juntaram-se, mais tarde, os migrantes
nordestinos. Essa classe desprotegida herda o ódio e o desprezo antes
destinados aos escravos. E pode ser identificada pela carência de acesso
a serviços e direitos. Sua função na sociedade é vender a energia
muscular, como animais. É ao mesmo tempo explorada e odiada.
CC: A sociedade brasileira foi forjada à sombra da escravidão, é isso?
JS:
Exatamente. Muito se fala sobre a escravidão e pouco se reflete a
respeito. A escravidão é tratada como um “nome” e não como um “conceito
científico” que cria relações sociais muito específicas. Atribuiu-se
muitas de nossas características à dita herança portuguesa, mas não
havia escravidão em Portugal.
Somos, nós brasileiros, filhos de um ambiente escravocrata, que cria um
tipo de família específico, uma Justiça específica, uma economia
específica. Aqui valia tomar a terra dos outros à força, para acumular
capital, como acontece até hoje, e humilhar e condenar os mais frágeis
ao abandono e à humilhação cotidiana.
CC: Um modelo que se perpetua, anota o senhor no novo livro.
JS:
Sim. Como essa herança nunca foi refletida e criticada, continua sob
outras máscaras. O ódio aos pobres é tão intenso que qualquer melhora na
miséria gera reação violenta, apoiada pela mídia. E o tipo de rapina
econômica de curto prazo que também reflete o mesmo padrão do
escravismo.
CC: Como isso influencia a interpretação do Brasil?
JS: A recusa em confrontar o passado escravista gera uma incompreensão sobre o Brasil moderno. Incluo no problema de interpretação da realidade a tese do patrimonialismo, que tanto a direita quanto a esquerda, colonizada intelectualmente pela direita, adoram. O conceito de patrimonialismo serve para encobrir os interesses organizados no chamado mercado. Estigmatiza a política e o Estado, os “corruptos”, e estimula em contraponto a ideia de que o mercado é um poço de virtudes.
JS: A recusa em confrontar o passado escravista gera uma incompreensão sobre o Brasil moderno. Incluo no problema de interpretação da realidade a tese do patrimonialismo, que tanto a direita quanto a esquerda, colonizada intelectualmente pela direita, adoram. O conceito de patrimonialismo serve para encobrir os interesses organizados no chamado mercado. Estigmatiza a política e o Estado, os “corruptos”, e estimula em contraponto a ideia de que o mercado é um poço de virtudes.
"O ódio aos pobres é intenso"
CC: O moralismo seletivo de certos setores não exprime mais um ódio de classe do que a aversão à corrupção?
JS: Sim. Uma parte privilegiada da sociedade passou a se sentir ameaçada pela pequena ascensão econômica desses grupos historicamente abandonados. Esse sentimento se expressava na irritação com a presença de pobres em shopping centers e nos aeroportos, que, segundo essa elite, tinham se tornado rodoviárias. A irritação aumentou quando os pobres passaram a frequentar as universidades. Por quê? A partir desse momento, investiu-se contra uma das bases do poder de uma das alas que compõem o pacto antipopular, o acesso privilegiado, quase exclusivo, ao conhecimento formal considerado legítimo. Esse incômodo, até pouco tempo atrás, só podia ser compartilhado em uma roda de amigos. Não era de bom tom criticar a melhora de vida dos mais pobres.
JS: Sim. Uma parte privilegiada da sociedade passou a se sentir ameaçada pela pequena ascensão econômica desses grupos historicamente abandonados. Esse sentimento se expressava na irritação com a presença de pobres em shopping centers e nos aeroportos, que, segundo essa elite, tinham se tornado rodoviárias. A irritação aumentou quando os pobres passaram a frequentar as universidades. Por quê? A partir desse momento, investiu-se contra uma das bases do poder de uma das alas que compõem o pacto antipopular, o acesso privilegiado, quase exclusivo, ao conhecimento formal considerado legítimo. Esse incômodo, até pouco tempo atrás, só podia ser compartilhado em uma roda de amigos. Não era de bom tom criticar a melhora de vida dos mais pobres.
CC: Como o moralismo entra em cena?
JS: O moralismo seletivo tem servido para atingir os principais agentes dessa pequena ascensão social, Lula e o PT. São o alvo da ira em um sistema político montado para ser corrompido, não por indivíduos, mas pelo mercado. São os grandes oligopólios e o sistema financeiro que mandam no País e que promovem a verdadeira corrupção, quantitativamente muito maior do que essa merreca exposta pela Lava Jato. O procurador-geral, Rodrigo Janot, comemora a devolução de 1 bilhão de reais aos cofres públicos com a operação. Só em juros e isenções fiscais o Brasil perde mil vezes mais.
JS: O moralismo seletivo tem servido para atingir os principais agentes dessa pequena ascensão social, Lula e o PT. São o alvo da ira em um sistema político montado para ser corrompido, não por indivíduos, mas pelo mercado. São os grandes oligopólios e o sistema financeiro que mandam no País e que promovem a verdadeira corrupção, quantitativamente muito maior do que essa merreca exposta pela Lava Jato. O procurador-geral, Rodrigo Janot, comemora a devolução de 1 bilhão de reais aos cofres públicos com a operação. Só em juros e isenções fiscais o Brasil perde mil vezes mais.
CC: Esse pacto antipopular pode ser rompido? O fato de os antigos representantes políticos dessa elite terem se tornado alvo da Lava Jato não fragiliza essa relação, ao menos neste momento?
JS:
Sem um pensamento articulado e novo, não. A única saída seria
explicitar o papel da elite, que prospera no saque, na rapina. A classe
média é feita de imbecil. Existe uma elite que a explora. Basta se
pensar no custo da saúde pública. Por que é tão cara? Porque o sistema
financeiro se apropriou dela. O custo da escola privada, da alimentação.
A classe média está com a corda no pescoço, pois sustenta uma ínfima
minoria de privilegiados, que enforca todo o resto da sociedade. A base
da corrupção é uma elite econômica que compra a mídia, a Justiça, a
política, e mantém o povo em um estado permanente de imbecilidade.
CC: Qual a diferença entre a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos?
JS:
Não há tanta diferença. Nos Estados Unidos, a parte não escravocrata
dominou a porção escravocrata. No Brasil, isso jamais aconteceu. Ou
seja, aqui é ainda pior. Os Estados Unidos não são, porém, exemplares.
Por conta da escravidão, são extremamente desiguais e violentos. Em
países de passado escravocrata, não se vê a prática da cidadania. Um
pensador importante, Norbert Elias, explica a civilização europeia a
partir da ruptura com a escravidão. É simples. Sem que se considere o
outro humano, não se carrega culpa ou remorso. No Brasil atual prospera
uma sociedade sem culpa e sem remorso, que humilha e mata os pobres.
CC: Algum dia a sociedade brasileira terá consciência das profundas desigualdades e suas consequências?
JS:
Acho difícil. Com a mídia que temos, desregulada e a serviço do
dinheiro, e a falta de um padrão de comparação para quem recebe as
notícias, fica muito complicado. É ridícula a nossa televisão. Aqui você
tem programas de debates com convidados que falam a mesma coisa. Isso
não existe em nenhum país minimamente civilizado. É difícil criar um
processo de aprendizado.
CC: O senhor acredita em eleições em 2018?
JS: Com a nossa elite, a nossa mídia, a nossa Justiça, tudo é possível. O principal fator de coesão da elite é o ódio aos pobres. Os políticos, por sua vez, viraram símbolo da rapinagem. Eles roubam mesmo, ao menos em grande parte, mas, em analogia com o narcotráfico, não passam de “aviõezinhos”. Os donos da boca de fumo são o sistema financeiro e os oligopólios. São estes que assaltam o País em grandes proporções. E somos cegos em relação a esse aspecto. A privatização do Estado é montada por esses grandes grupos. Não conseguimos perceber a atuação do chamado mercado. Fomos imbecilizados por essa mídia, que é paga pelos agentes desse mercado. Somos induzidos a acreditar que o poder público só se contrapõe aos indivíduos e não a esses interesses corporativos organizados. O poder real consegue ficar invisível no País.
JS: Com a nossa elite, a nossa mídia, a nossa Justiça, tudo é possível. O principal fator de coesão da elite é o ódio aos pobres. Os políticos, por sua vez, viraram símbolo da rapinagem. Eles roubam mesmo, ao menos em grande parte, mas, em analogia com o narcotráfico, não passam de “aviõezinhos”. Os donos da boca de fumo são o sistema financeiro e os oligopólios. São estes que assaltam o País em grandes proporções. E somos cegos em relação a esse aspecto. A privatização do Estado é montada por esses grandes grupos. Não conseguimos perceber a atuação do chamado mercado. Fomos imbecilizados por essa mídia, que é paga pelos agentes desse mercado. Somos induzidos a acreditar que o poder público só se contrapõe aos indivíduos e não a esses interesses corporativos organizados. O poder real consegue ficar invisível no País.
CC: O quanto as manifestações de junho de 2013, iniciadas
com os protestos contra o reajuste das tarifas de ônibus em São Paulo,
criaram o ambiente para a atual crise política?
JS: Desde
o início aquelas manifestações me pareceram suspeitas. Quem estava nas
ruas não era o povo, era gente que sistematicamente votava contra o
projeto do PT, contra a inclusão social. Comandada pela Rede Globo, a
mídia logrou construir uma espécie de soberania virtual. Não existe
alternativa à soberania popular. Só ela serve como base de qualquer
poder legítimo. Essa mídia venal, que nunca foi emancipadora, montou um
teatro, uma farsa de proporções gigantescas, em torno dessa soberania
virtual.
CC: Mas aquelas manifestações foram iniciadas por um grupo supostamente ligado a ideias progressistas...
JS:
Só no início. A mídia, especialmente a Rede Globo, se sentiu ameaçada
no começo daqueles protestos. E qual foi a reação? Os meios de
comunicação chamaram o seu povo para as ruas. Assistimos ao retorno da
família, propriedade e tradição. Os mesmos “valores” que justificaram as
passeatas a favor do golpe nos anos 60, empunhados pelos mesmos grupos
que antes hostilizavam Getúlio Vargas. Esse pacto antipopular sempre
buscou tornar suspeito qualquer representante das classes populares que
pudesse ser levado pelo voto ao comando do Estado. Não por acaso, todos
os líderes populares que chegaram ao poder foram destituídos por meio de
golpes.
Fonte Carta Maior
Visite a pagina do MCCE-MT