Como Charles Koch e outros bilionários financiaram, nas sombras, um projeto político que implica devastar o serviço público e o bem comum, para estabelecer a “liberdade total” do 1% mais rico
Por George Monbiot | Tradução: Antonio Martins
É o capítulo que faltava, uma chave para entender a política dos últimos cinquenta anos. Ler o novo livro de Nancy MacLean, Democracy in Chains:
the deep history of the radical right’s stealth plan for America
[“Democracia Aprisionada: a história profunda do plano oculto da direita
para a América] é enxergar o que antes permanecia invisível.
O trabalho da professora de História começou por acidente. Em 2013,
ela deparou-se com uma casa de madeira abandonada no campus da
Universidade George Mason, em Virgínia (EUA). O lugar estava repleto com
os arquivos desorganizados de um homem que havia morrido naquele ano, e
cujo nome é provavelmente pouco familiar a você: James McGill Buchanan.
Ela conta que a primeira coisa que despertou sua atenção foi uma pilha
de cartas confidenciais relativas a milhões de dólares transferidos para
a universidade pelo bilionário Charles Koch1.
Suas descobertas naquela casa de horrores revelam como Buchanan
desenvolveu, em colaboração com magnatas e os institutos fundados por
eles, um programa oculto para suprimir a democracia em favor dos muito
ricos. Tal programa está agora redefinindo a política, e não apenas nos
Estados Unidos.
Buchanan foi fortemente influenciado pelo neoliberalismo de Friedrich Hayek e Ludwig von Mises
e pelo supremacismo de proprietários de John C Carlhoun. Este último
argumentava, na primeira metade do século XIX, que a liberdade consiste
no direito absoluto de usar a propriedade – inclusive os escravos –
segundo o desejo de cada um. Qualquer instituição que limitasse este
direito era, para ele, um agente de opressão, que oprime homens
proprietários em nome das massas desqualificadas.
James Buchanan reuniu estas influências para criar o que chamou de “teoria da escolha pública.
Argumentou que uma sociedade não poderia ser considerada livre exceto
se cada cidadão tivesse o direito de vetar suas decisões. Queria dizer
que ninguém deveria ser tributado contra sua vontade. Mas os ricos,
dizia ele, estavam sendo explorados por gente que usa o voto para
reivindicar o dinheiro que outros ganharam, por meio de impostos
involuntários usados para assegurar o gasto e o bem-estar social.
Permitir que os trabalhadores formassem sindicatos e estabelecer
tributos progressivos eram, sempre segundo sua teoria, formas de
“legislação diferencial e discriminatória” sobre os proprietários do
capital.
Qualquer conflito entre o que ele chamava de “liberdade” (permitir
aos ricos fazer o que quiserem) e a democracia deveria ser resolvido em
favor da “liberdade”. Em seu livro The Limits of Liberty [“Os limites da liberdade”], ele frisou que “o despotismo pode ser ser a única alternativa para a estrutura política que temos”. O despotismo em defesa da liberdade…
Ele prescrevia o que chamou de uma “revolução constitucional”: criar
barreiras irrevogáveis para reduzir a escolha democrática. Patrocinado
durante toda sua vida por fundações riquíssimas, bilionários e
corporações, ele desenvolveu uma noção teórica sobre o que esta
revolução constitucional seria e uma estratégia para implementá-la.
Ele descreveu como as tentativas de superar a segregação racial no
sistema escolar do sul dos Estados Unidos poderiam ser frustradas com o
estabelecimento de uma rede de escolas privadas, patrocinadas pelo
Estado. Foi ele quem primeiro propôs a privatização das universidades e
cobrança de mensalidades sem nenhum subsídio estatal: seu propósito
original era esmagar o ativismo estudantil. Ele recomendou a
privatização da Seguridade Social e de muitas outras ações do Estado.
Queria romper os laços entre os cidadãos e o governo e demolir a
confiança nas instituições públicas. Ele queria, em síntese, salvar o
capitalismo da democracia.
Em 1980, pôde colocar este programa em prática. Foi chamado ao Chile,
onde ajudou a ditadura Pinochet a escrever uma nova Constituição – a
qual, em parte devido aos dispositivos que Buchanan propôs, tornou-se
quase impossível de revogar. Em meio às torturas e assassinados, ele
aconselhou o governo a ampliar seus programas de privatazação,
austeridade, restrição monetária, desregulamentação e destruição dos
sindicatos: um pacote que ajudou a produzir o colapso econômico de 1982.
Nada disso perturbou a Academia Sueca que, por meio de Assar
Lindbeck, um devoto na Universidade de Estocolomo, conferiu a James
Buchanan o Nobel de Economia de 1986. Foi uma das diversas decisões que
tornaram duvidosa a honraria.
Mas seu poder realmente intensificou-se quando Charles Koch, hoje o
sétimo homem mais rico nos EUA, dicidiu que Buchanan tinha a chave para a
transformação que desejava. Para Koch, mesmo ideólogos neoliberais como
Milton Friedman e Alan Greenspan eram vendidos, já que tentavam
aperfeiçoar a eficiência dos governos, ao invés de destruí-los de uma
vez. Buchanan era o realmente radical.
Nancy MacLean afirma que Charles Koch despejou milhões de dólares no
trabalho de Buchanan na Universidade George Mason, cujos departamentos
de Direito e Economia parecem muito mais thinktanks corporativos
que instituições acadêmicas. Ele encarregou o economista de selecionar o
“quadro” revolucionário que implementaria seu programa (Murray
Rothbard, do Cato Institute, fundado por Koch, havia sugerido ao
bilionário estudar as técnicas de Lenin e aplicá-las em favor da causa
ultraliberal). Juntos, começaram a desenvolver um programa para mudar as
regras.
Os documentos que Nancy Maclean descobriu mostram que Buchanan via o
sigilo como crucial. Ele afirmava a seus colaboradores que “o sigilo
conspirativo é essencial em todos os momentos”. Ao invés de revelar seu
objetivo último, eles deveriam agir por meio de etapas sucessivas. Por
exemplo, ao tentar destruir o sistema de Seguridade Social, sustentariam
que estavam salvando-o e argumentariam que ele quebraria sem uma série
de “reformas” radicais. Aos poucos, construiriam uma
“contra-inteligência”, articulada como uma “vasta rede de poder
político” para, ao final, constituir um novo establishment.
Por meio da rede de thinktanks
financiada por Koch e outros bilionários; da transformação do Partido
Republicano; de centenas de milhões de dólares que destinaram a disputas
legislativas e judiciais; da colonização maciça do governo Trump por membros de sua rede
e de campanhas muito efetivas contra tudo – da Saúde pública às ações
para enfrentar a mudança climática, seria justo dizer que a visão de
mundo de Buchanan está aflorando nos EUA.
Mas não apenas lá. Ler seu livro desvendou, para mim, muito da política britânica atual. O ataque às regulamentações
evidenciado pelo incêndio da Torre Grenfell, a destruição dos serviços
públicos por meio da “austeridade”, a regras de restrição do orçamento,
as taxas universitárias e o controle das escolas: todas estas medidas
seguem à risca o programa de Buchanan.
Em um aspecto, ele estava certo: há um conflito inerente entre o que
ele chamava de “liberdade econômica” e a liberdade política. Deixar os
bilionários de mãos livres significa, para todos os demais, pobreza,
insegurança, contaminação das águas e do ar, colapso dos serviços
públicos. Como ninguém votará em favor deste programa, ele só pode ser
imposto por meio de ilusão ou controle autoritário. A escolha é entre o
capitalismo irrestrito e a democracia. Não se pode ter os dois.
O programa de Buchanan equivale à prescrição de capitalismo
totalitário. E seus discípulos apenas começaram a implementá-lo. Mas ao
menos, graças às descobertas de Nancy Maclean, agora podemos compreender
a agenda. Uma das primeiras regras da política é conhecer seu inimigo.
Estamos a caminho.
–
1Nos últimos anos, reportagens e vídeos têm começado a jogar luz sobre a atividade política dos irmãos Charles e David Koch, e seus vínculos com a ultra-direita nos EUA e em outras parte do mundo. Vale assistir, por exemplo, a Koch Brothers exposed, documentário de Robert Greenwald (https://www.youtube.com/watch?v=2N8y2SVerW8); ou ler “Por dentro do império tóxico dos irmãos Koch”, publicado pela revista Rolling Stones (em inglês) http://www.rollingstone.com/politics/news/inside-the-koch-brothers-toxic-empire-20140924
Fonte Outras Palavras
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