Protestos oceânicos contra execução de Marielle Franco e Anderson
Gomes revelam: é possível frear a espiral conservadora; mas é urgente
um programa comum. Veja nossa análise e uma seleção de textos relevantes
Por Antonio Martins
Mais
uma vez, o cenário mudou. A emoção gerada pelo assassinato brutal de
Marielle Franco e Anderson Gomes mobilizou centenas de milhares de
pessoas, em todo o país. As ruas voltaram a se encher de uma multidão
aguerrida, insistente, multicor, que há muito não por convocação
partidária, mas por convicção de que ou agimos já, ou o país se tornará
insuportável. E como as multidões foram inumeráveis, os hipócritas
tiveram de ceder. Todo o noticiário dos jornais e das TVs, que há
alguns dias enxergava a intervenção no Rio como caminho para o resgate
do Rio, abriu espaço a uma mulher negra que denunciou desde o início a
militarização das favelas. As tímidas ações de fachada, adotadas pelo
ministro Raul Jungmann e pela procuradora geral Raquel Dodge tiveram
repercussão pífia.
As ruas coalhadas de gente frearão a grande
maré de retrocessos? Há quem aposte, desde já, que sim. O jornalista
Fernando Rodrigues, editor do Poder360º e insuspeito de defender o poder popular, enxerga hoje
uma “disrupção”, capaz de “mudar o cenário eleitoral de 2018”, aplicar
um “duro golpe” na intervenção sobre o Rio e favorecer o naufrágio da
estratégia do Palácio do Planalto. Também vê o possível início de uma
onda de mobilizações semelhante à de 2013.
Provavelmente, é otimismo demais. A intervenção não é apenas um plano de Temer
para manter alguma relevância, tumultuar o ambiente político e evitar a
prisão após o final do mandato. Ela socorreu os três grupos essenciais
que se uniram em torno do golpe de 2016 – grande poder econômico, mídia e
máfias parlamentares –, ao converter a segurança pública no grande tema
nacional e evitar que crescesse uma forte corrente em favor da
revogação da agenda de retrocessos. Por isso, a tendência natural é que,
passadas a emoção de uns e a hipocrisia de outros, Marielle seja
sepultada também pela avalanche de sensacionalismo e irrelevâncias com a
qual os jornais e TVs usualmente escondem os fatos importantes.
Este
choque – por um lado, multidões ansiosas por agir; por outro, a pressão
do quotidiano, tendente a anular qualquer chance de ação transformadora
– indica a necessidade de mais formulação política. Se, como tudo
indica, a presença nas ruas é o único fator capaz de interromper a
espiral rumo ao abismo, é preciso garantir que ela se sustente.
Significa definir agendas que sejam capazes de convocar e, tanto quanto
possível, unitárias.
O fim da intervenção é um primeiro passo
óbvio. A presença dos militares no Rio, maciçamente respaldada pela
mídia, teve de início apoio popular. Mas pode desgastar-se rapidamente,
atingida por sua própria ineficácia – e o repúdio ao assassinato de
Marielle pode ser um desencadeador. Ele deveria, por exemplo, convidar
os partidos e movimentos presentes ontem nas ruas a manter o ímpeto. A
denunciar movimentos como o do 41º Batalhão da Polícia Militar do Rio,
que instaurou o terror na comunidade de Acari, numa sucessão de mortes e
ameaças. Esta denúncia, que Marielle fez quase solitariamente, poderia
desdobrar-se em uma sucessão de fatos políticos. O deslocamento
sustentado de parlamentares,e de referências dos movimentos sociais,
para as favelas onde a brutalidade é aguda. O convite aos
correspondentes imprensa estrangeiros – muito menos alinhados com a
agenda conservadora – para que acompanhem as visitas. A convocação de
observadores internacionais, aproveitando a capacidade de apelo da
sociedade civil brasileira.
A agenda de horrores não se manifesta apenas na intervenção. No
Congresso Nacional tramitam propostas de gravidade extrema, sem que os
parlamentares e seus partidos – mesmo os de esquerda – façam todos os
esforços necessários para alertar sobre os riscos implicados. Em breve,
as manifestações políticas podem tornar-se alvo da Lei Antiterror. As
ocupações do MST e MTST estão ameaçadas de criminalização. A necessidade
de licenciamento ambiental das grandes obras está em questão. As
bancadas ruralistas tramam retirar da própria Anvisa o direito de vetar a
venda de agrotóxicos cancerĩgenos. Etc etc etc.
Extremamente
impopular, o Congresso que ameaça impor estas medidas não está sendo
suficientemente deslegitimado. Muito se falou, desde as primeiras
manifestações contra o golpe, em 2015, sobre a formação de Comitês
Populares em defesa dos direitos e da democracia. A difusão sistemática
de informações sobre a agenda de retrocessos ofereceria um poderoso
combustível para tais comitês. Eles seriam, além disso, um primeiro
passo para retomar o trabalho de base, um objetivo muitas vezes proposto (às vezes de forma mística) e tantas outras adiado.
E
há, também, a agenda da contraofensiva. Até o final do ano passado, a
proposta de questionar, por meio de Referendos Revogatórios, os
retrocessos já consumados, avançava e espraiava-se. Fazia parte do
discurso dos candidatos de esquerda. Começava a despertar polêmicas na
mídia. Foi afastada, momentaneamente, por dois fatos. Primeiro, a
antecipação do julgamento de Lula pelo TRF4 – polarizou as atenções do
chamado “campo progressista”. Depois, a intervenção no Rio impôs uma
volta a mais no torniquete do golpe e pareceu tornar a resistência
inútil.
As mobilizações gigantescas de ontem expõem, mais uma vez, uma realidade contraditória. Não estamos
diante de um jogo liquidado. O golpe e sua agenda são fortes pelo
controle que exercem sobre o instituído; mas são vulneráveis pela
incapacidade de criar consensos, de agir por outro caminho além da
truculência. Há espaço para uma dissidência crescente. Mas ela não está
dada, nem surgirá automaticamente
Construí-la com generosidade –
evitando, em especial, que a disputa eleitoral torne-se um fator de
desagregação das multidões que voltaram às ruas – é a maior homenagem
que se pode prestar a Marielle Franco e Anderson Gomes.
—
Por Fernando Rodrigues, no Poder360.
Para o articulista, volta das multidões às ruas coloca governo Temer em situação delicada e pode mudar o cenário eleitoral de 2018. “O Brasil viu nesta 5ª feira (15) imagens de grandes manifestações em capitais como Rio, São Paulo e Recife. O assassinato da vereadora carioca Marielle Franco pode mudar o cenário político”.
Por José Roberto de Toledo, na Revista Piauí.
No texto, uma descrição da trajetória de Marielle Franco. “Após dez anos de trabalho como assessora parlamentar, Marielle elegeu-se em 2016 para seu primeiro e último cargo eletivo. O sucesso logo de cara predizia uma carreira política longeva. Quatro balas anularam a previsão. Mas não seu legado: foram quatorze meses como vereadora, dezenove anos como mãe, e quase quatro décadas como voz inconformada contra a violência à sua volta”.
Por Maria Teresa Cruz e Pavio, na Ponte Jornalismo.
Na entrevista (o vídeo está logo abaixo abaixo), feita semanas atrás, Marielle denunciava a intervenção federal/militar no Rio. “Para Marielle, a intervenção iria trazer ‘o acirramento da violência nos corpos nossos de favelados’ e fazia parte de um processo que colocava a própria democracia em risco. ‘O processo de democratização está ameaçado por causa do que está colocado: servidor, saúde, caos em varias áreas e intervenção na segurança, o que ajuda a controlar ainda mais o que vinha sendo controlado antes’, afirmou. ‘Esses dias a gente conversava ali na Maré, sobre o quanto os 14 meses de incursão militar… e não só da PM, mas da força nacional, do Exército, o barulho dos tanques, de tanque blindado, o barulho do tanque ainda é muito latente que ficava na porta de um dos prédios que eu morei até pouco tempo. Esse medo, esse desespero é onde a gente chora porque corta na nossa carne’, disse na entrevista”.
Em entrevista inédita, vereadora assassinada avisou: ‘democracia está ameaçada’
Por Alexandra Lucas Coelho, no Sapo24, de Portugal
Um
perfil de Marielle e do país depois do golpe, da intervenção e da
execução. “Foi esta cidade que há um mês se viu ocupada por militares, a
mando de um presidente da república não-eleito, alegadamente para fazer
face ao crime. Depois do golpe na presidência, o golpe na cidade que é a
cara do Brasil. O crime de Estado tem esta tradição de se justificar
pelo crime. O presidente não-eleito, Michel Temer, assinou essa
ocupação. O Rio de Janeiro é desde então uma cidade ocupada, num país
ocupado. Todos os dias algo se soma ao horror. Chegam amigos de lá, ou
mensagens de amigos, vejo as notícias, horror atrás de horror.”
Por Felipe Betim, no El Pais Brasil.
As multidões que ocuparam as ruas depois da execução de Marielle Franco e Anderson Gomes causaram um curto-circuito nos planos do Palácio do Planalto. “A força das ruas tornou-se um inesperado desafio para o Governo de Michel Temer (MDB) e sua aposta em uma inédita intervenção federal como bandeira eleitoral e resposta para caos na segurança pública do Rio. O presidente colocou suas fichas em nomear como interventor federal o general Walter Souza Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste e, desde o último dia 16 de fevereiro, também chefe máximo da segurança pública fluminense, ainda que nem sequer haja um plano oficial para a ação. Agora, essa cadeia de comando — da Polícia Civil ao presidente — tem que responder por um dos mais emblemáticos crimes políticos da história recente brasileira”.
Fonte Outras Palavras