Em uma democracia, governantes que conclamam a população a festejar uma ditadura de assassinos, de corruptos e de torturadores que tomou o seu próprio país por 20 anos seriam objetos imediato de destituição.
A democracia não aceita que o ocupante do lugar da Presidência atente tão abertamente contra ela, saudando aqueles que a destruíram.
Blog da Cidadania
Leia a coluna de Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.
O dia da infâmia
Por Vladimir Safatle
Dificilmente, poderia ser mais didático. Em uma comissão feita na
Câmara dos Deputados, o senhor ministro da Educação é confrontado
pela deputada Tabata Amaral sobre a ausência gritante de um plano
estratégico e de descrições mínimas sobre projetos, responsáveis,
cronogramas, resultados esperados e critérios de avaliação.
O ministro é questionado sobre números elementares da área no país.
Sem ser capaz de dizer nada concreto, ele remete aos seus secretários,
que mudam ao sabor do vento e não duram nem sequer duas
semanas. Se alguém precisava de uma imagem final de como os integrantes do governo atual não estão dispostos a governar (e nem seriam capazes, se quisessem), essa imagem está agora disponível a todos.
Mas não deixa de ser sintomático que, praticamente no mesmo momento
da confissão do vazio educacional, o senhor Jair Messias continuasse sua
guerra pessoal contra o presidente da Câmara. Pare de brincar e comece a
governar, disparou o deputado contra o Planalto, frase logo revidada
por acusações de “irresponsabilidade”.
Alguns podem achar que isso é uma inabilidade vinda do “espírito
intempestivo” do ocupante da Presidência. Mas não. É uma lógica de
governo. Trata-se de vender a ideia de que as estruturas da “velha
política” estão a impedir que o novo governe, mesmo que o novo não seja
capaz de montar uma planilha elementar de ações com cronograma.
Trata-se de dizer que as práticas fisiológicas da antiga Nova
República estão a tentar sufocar a revolução em marcha, mesmo que o
partido do “novo” comece a explodir a céu aberto com casos de corrupção e
antigas práticas de malversação de fundos, mesmo que os ocupantes do
Planalto exalem um cheiro insuportável de milicianos.
Essa tática não nasceu hoje. Ela serve para esconder exatamente o que
o senhor ministro da Educação mostrou —a saber, que, mesmo se quisesse,
o governo não saberia governar.
Na falta do que fazer, sobra produzir o caos para vender a ordem.
Dizer que o Estado está cindido entre as forças da novidade e as forças
da reação para: a) justificar a paralisia carnavalesca do governo; b)
preparar um expurgo final.
Nesse sentido, não são uma bravata a proposição criminosa
de comemorar a ditadura de 1964 e as declarações sórdidas de que
foram “probleminhas” as torturas, o terrorismo de Estado, a ocultação de
cadáveres, os estupros, os assassinatos, a censura, o empastelamento de
jornais.
Erra quem acha que isso é acessório, assim como erra quem acha que o
racismo, o sexismo e o preconceito generalizado são manobras
diversionistas. Isso é o essencial, pois se trata do verdadeiro
horizonte de governo.
Essas não são afirmações passadistas, de quem está com os olhos fixos
no passado. Elas são declarações que miram o futuro, que visam impedir a
emergência dos que podem nos tirar dessa situação e inventar uma
democracia que nunca existiu. Elas visam anunciar o que está sendo
preparado e profundamente desejado pelos ocupantes do poder.
Em uma democracia, governantes que conclamam a população a festejar
uma ditadura de assassinos, de corruptos e de torturadores que tomou o
seu próprio país por 20 anos seriam objetos imediato de destituição.
A democracia não aceita que o ocupante do lugar da Presidência atente
tão abertamente contra ela, saudando aqueles que a destruíram.
No Brasil, que parece apenas esperar o golpe de misericórdia para
institucionalizar a sua situação autoritária de fato, colocações dessa
natureza só podem ser barradas mostrando qual é o preço de uma nova
ditadura, quantas vozes nas ruas ela precisará calar, contra quanta
violência legítima, vinda do direito fundamental de resistência, ela
precisará responder.
O dia 31 de março sempre será, na história deste país, o dia da
infâmia e da vergonha. Se alguém esqueceu, nós podemos lembrá-lo.
Da FSP
Fonte Blog da Cidadania