Ocorre que Bolsonaro não é um líder político autêntico, não tem força popular, nem força política no Congresso e nem habilidade para manejar essas dificuldades. Se conseguir fugir do fracasso, no máximo, será
um governo mediano. Definitivamente, não será pela via da política, e
menos ainda se tornando escudo e espada do governo Bolsonaro, que as
Forças Armadas encontrarão um ponto de reconciliação definitivo com a
sociedade brasileira, independentemente de ideologias.
Por Aldo Fornazieri,
Professor da Escola de Sociologia
e Política (FESPSP).
É certo que os principais generais que integram o governo
Bolsonaro não participaram diretamente do golpe militar de 1964, mas a
maior parte deles cursou os colégios e academias militares durante o
regime. Sua formação militar, portanto, inscreve-se sob a égide da
cultura política e das orientações ideológicas e educacionais que
conformavam aqueles tempos. Em que pese isto, não há razões para duvidar
dos compromissos democráticos desses generais. O que há, contudo, são
evidentes ressentimentos entre setores militares e setores civis que o
período de redemocratização não conseguiu desfazer.
A forma como se deu a superação do regime militar,
particularmente a Lei da Anistia, e as críticas que ela sofreu pelos
setores progressistas e de esquerda da sociedade criou ressentimentos
mútuos. Por um lado, esses setores políticos e sociais alimentaram
desconfianças em relação aos militares e, por seu turno, os militares
alimentaram ressentimentos e animosidades com os setores progressistas e
democráticos. O proselitismo da violência e da tortura que alguns
militares, incluindo Jair Bolsonaro, promovem só ajuda a alimentar essa
tensão. Os governos do PT representaram uma oportunidade impar para a
superação desses ressentimentos, desconfianças e animosidades, mas a
ocasião foi desperdiçada pelas débeis iniciativas que foram promovidas.
O fato é que no pós-regime militar, os militares
carregavam como que uma espécie de marca, de mácula, de desconfiança,
por parte de setores políticos e sociais. Assim, os militares viram no
governo Bolsonaro uma chance de desfazer esta mácula e de se integrarem
plenamente à vida nacional num ambiente de normalidade e sem exclusões,
esposando a defesa da democracia e uma doutrina mais liberal na visão da
economia. Embora na oficialidade superior, ao que se sabe,
especialmente no Exército, Bolsonaro fosse visto com reservas, parece
que os generais acreditaram que seria possível que ele se conduzisse por
parâmetros de razoabilidade e de racionalidade na função de presidente
da República. Não é isto o que tem se visto até agora.
Bolsonaro, de forma crescente, vem emitindo sinais de que
não tem preparo emocional, psicológico, intelectual e político para
exercer a mais alta magistratura do país. A postagem do vídeo obsceno no
Twitter foi a manifestação mais alta de desequilíbrio. Em quase todos
os pontos em que Bolsonaro interveio depois da investidura, o fez de
forma negativa, desde as relações internacionais (China, Árabes e
Venezuela) até os mais comezinhos assuntos internos a exemplo de
cartilhas de educação sexual de jovens. Todas essas intervenções
desastradas, somadas à ascendência de seus filhos radicais sobre o que
ele pensa e como ele age e as suspeitas de envolvimento de sua família
com milicianos no Rio de Janeiro, jogam uma pesada nuvem sobre o futuro
de Bolsonaro na presidência. De forma prematura, o seu capital político
vai se deteriorando e crescem as desconfianças acerca de sua capacidade e
equilíbrio para governar.
Então, cabe a pergunta: Os militares fizeram uma boa
escolha ao embarcar de cabeça no governo Bolsonaro? A resposta é não. E
seria não mesmo que Bolsonaro fosse um presidente que se comportasse de
forma razoável. Com isso não se quer dizer que alguns generais ou
oficiais não pudessem vir a ocupar cargos importantes no governo e mesmo
serem ministros. O problema é que a forma e o número de como oficiais
da reserva e da ativa entraram no governo – mais de 100, ao que se sabe –
conferiam a ele uma fisionomia claramente militar. E em sendo assim, a
impressão que fica é a de que os militares querem se resgatar em relação
à supracitada mácula pela via da política e isto constitui um grave
erro. Registre-se: não que ex-militares não possam participar da vida
política. Isto é comum em outras democracias, destacadamente nos Estados
Unidos. O que não podem fazer é participar da vida política como força
militar que é a impressão que fica com o governo atual.
O problema, portanto, é esta investidura militar do
governo e isto o conecta com a história do Brasil marcada pelo
pronunciamento dos militares na vida política. Isto não fez bem nem
para o Brasil e nem para os militares. A Questão Militar no final do
Império, a Proclamação da República, os primeiros anos da República
Velha, os movimentos tenentistas na década de 1920, a Revolução de 1930,
a Era Vargas, a redemocratização de 1945, as tentativas de golpe contra
Vargas e Juscelino e o golpe militar de 1964 são os episódios mais
agudos da presença dos militares na política.
Todas essas intervenções representam ações desviantes das
funções dos militares numa democracia. A função central dos militares é a
de se preparem para a guerra, definindo as estratégias e os meios para
executá-las, observando sempre os princípios constitucionais que regem
as Forças Armadas nas democracias. Em todas as democracias a função
principal das Forças Armadas se volta para a garantia da soberania em
face de ameaças externas. Como instituições permanentes do Estado podem
cumprir várias outras funções complementares relevantes. Mas o princípio
da separação do poder militar do poder político e da subordinação do
poder militar ao poder civil é um princípio inquebrantável das
Repúblicas.
Como consequência dessas intervenções desviantes dos
militares brasileiros o fato é que eles nunca se preparam bem para a
guerra e para a defesa da soberania. De fato, para um país continental
como é o Brasil, portador de imensos recursos naturais estratégicos, não
é possível dizer que as Forças Armadas possuem suficientes capacidades
dissuasivas e de combate ante a possibilidade de ataques de potências
mais fortes.
Compare-se, por exemplo, os investimentos e as capacidades
militares do Brasil, não com Estados Unidos, Rússia, China e Europa,
mas com a Índia, o Paquistão, o Irã, Israel etc.. É evidente que o
Brasil não tem um suporte militar suficiente para que se apresente como
uma potência média significativa no jogo do poder global. O Brasil não
tem um respaldo militar compatível com o seu território e com a
necessidade de defesa de seus recursos naturais. E, aqui, o problema e
as responsabilidades não são apenas dos militares, mas também dos
governos civis que nunca tiveram projetos estratégicos dignos desse
nome, dos partidos políticos, das universidades e da sociedade civil.
Durante o regime militar e depois dele, foi feito um
esforço de ocupação territorial no Centro-Oeste e no Norte, com o apoio
do Exército. Daí derivou a força do agronegócio que é um ativo
estratégico importante para o Brasil. Mas o Brasil nunca se tornará uma
potência significativa se depender apenas do agronegócio, de comodities.
Os Estados Unidos se tornaram uma grande potência,
primeiro, se expandindo territorialmente para o Oeste, no século XIX;
segundo, conquistando os mares no século XX; e terceiro, buscando
conquistar o espaço no século XXI. O desenvolvimento agrícola,
industrial, tecnológico e científico daquele país se interliga com esses
ciclos expansionistas. Comparativamente, o Brasil não foi capaz de
pensar em nenhum projeto estratégico que sequer chegasse à sombra do
modelo norte-americano. Os Estados Unidos dotaram o Pentágono com verbas
públicas vultosas para a corrida tecnológica na segunda metade do
século XX, visando não fazer frente apenas à Rússia, mas também ao Japão
e à Europa e a outros polos de desenvolvimento tecnológico.
Nenhum país será militarmente forte se não for
tecnologicamente desenvolvido. Neste ponto, o Brasil está perdendo
largamente a corrida do século XXI. Onde ocorreram vultosos
investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento Militar (P&DM) houve
também desenvolvimento tecnológico da indústria civil. Indústria civil e
indústria militar sempre se retroalimentaram. Desgraçadamente, o Brasil
não investe nem em P&D civil e nem em P&DM.
É na elaboração de um projeto estratégico de
desenvolvimento, integrando civis e militares, que as Forças Armadas
deveriam concentrar seus esforços e seus objetivos. Isto implicaria que a
formação dos militares tivesse um conteúdo exclusivamente profissional e
que, do ponto de vista político e ideológico, elas ficassem suspensas,
adotando o papel de o “grande mudo”, como se dizia no passado, se
submetendo ao governo civil e obedecendo a Constituição. As Forças
Armadas ajudarão o Brasil e o seu povo se se dedicarem às suas funções
precípuas. Os governos civis podem e devem incorporar militares da ativa
e da reserva em funções técnicas e escalões técnicos do Estado e até
mesmo em cargos políticos, desde que tenham aptidões para tal.
Mas ao conferirem uma fisionomia militar ao governo
Bolsonaro, as Forças Armadas correm um grande risco de incorporarem uma
nova mácula e de proporcionarem uma nova politização dos militares.
Elas se associaram a um governante que vem se mostrando desastrado,
despreparado, desagregador e que prejudica os interesses do Brasil.
Mesmo que Bolsonaro sobreviva a ele mesmo, aos seus filhos e ao setor
lunático que integra seu governo, será um governo fraco, de baixo
desempenho.
Ocorre que Bolsonaro não é um líder político autêntico,
não tem força popular, nem força política no Congresso e nem habilidade
para manejar essas dificuldades. Será um governo dependente de vontades
alheias, sem autonomia. Se conseguir fugir do fracasso, no máximo, será
um governo mediano. Definitivamente, não será pela via da política, e
menos ainda se tornando escudo e espada do governo Bolsonaro, que as
Forças Armadas encontrarão um ponto de reconciliação definitivo com a
sociedade brasileira, independentemente de ideologias.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
Fonte Brasil 247