O histórico de Sergio Moro no processo anterior à Lava Jato, o do Banestado, já deveria suscitar cuidados. Sua atuação no impeachment de Dilma foi já escandalosa e passou incólume. A condenação de Lula sem provas, no atropelo dos prazos, nas sentenças e procedimentos acertados à margem dos ritos legais, nada disso retirou a mídia de sua paralisia delirante.
Contexto Livre
Por Mario Vitor Santos, jornalista, foi ombudsman da Folha e do portal iG,
secretário de Redação e diretor da Sucursal de Brasilia da Folha.
A publicação das mensagens trocadas pela força-tarefa da Lava-Jato com o então juiz Sérgio Moro, pelo site The Intercept Brasil, do qual o jornalista norte-americano Glenn Greenwald é um dos fundadores e diretores, representa o momento mais constrangedor da história dos meios de comunicação do Brasil. Desse episódio é impossível outra constatação: os grandes jornais, redes de rádio e televisão do país fracassaram e estão desmoralizados.
Do ponto de vista da razão maior de sua existência jornalística, a
busca da verdade, os grandes meios, com suas equipes de diretores,
editores e repórteres, foram 'furados' e estão todos a reboque de um
site diminuto, com uma equipe reduzida de cerca de dez jornalistas com
base no Brasil.
Mais do que isso, o furo do Intercept Brasil revela uma verdade que fez
subitamente jogar no lixo anos de cobertura avassaladora dos grandes
meios de comunicação. A verdade apareceu: o jornalismo brasileiro ao
longo dessa cobertura, com raras exceções, não passou de propaganda.
Enquanto abandonavam a independência e envergavam a camisa de torcedores
de Sergio Moro e da Lava-Jato, cantando em coro que ela era uma
operação judicial angelicalmente isenta, "técnica", apolítica e afinal
salvadora de um país imerso na corrupção, o furo agora revelado por
Glenn Greenwald e sua equipe escancarou uma realidade oposta.
A Lava-Jato é essencialmente uma ação de velhacos atuando à socapa, à
margem da lei, comandada por justiceiros sedentos de cargos e poder,
executando um projeto político na verdade "isento de isenção".
Enquanto posava de vestal diante da nação extasiada, Moro encabeçava na
escuridão dos tribunais uma operação fraudulenta, destinada a condenar
um réu sem provas, voltada para a gravíssima tarefa de usar o poder e a
Justiça para fraudar o resultado da escolha democrática e barrar o
candidato favorito na eleição para o cargo mais importante do país.
Enquanto posava de semideus, Moro se divertia abusando da crendice
nacional. Que o populacho se deixe enganar é lamentável, mas que seja o
jornalismo a conduzi-lo à cegueira chega a ser criminoso.
De acordo com os vazamento publicados pelo Intercept, Moro, Deltan
Dallagnol e a Lava-Jato conspiravam ("reservado, claro") em grupos de
chat para se comunicar com ministros e procuradores, combinar
procedimentos, constranger testemunhas, manipular a opinião pública e
incriminar Lula. A mídia conservadora, a quem cabia investigar por seu
ledo a verdade, reproduzia em uníssono, sem críticas, as versões
inventadas pela Lava-Jato e chancelava bovinamente seus métodos.
Enquanto a Justiça era achincalhada com objetivos criminosos, por
aqueles mesmos que deveriam zelar pela sua neutralidade, a mídia se
oferecia para criar um culto, reverberar as versões oficiais sem
exercer o ceticismo, sem cobrança, sem apurar os reais interesses que
orientavam a cozinha venenosa da Lava-Jato. Vem à tona agora o que
alguns observadores e veículos isolados alertavam impotentes: a mídia
foi parte essencial de um massacre engendrado por agentes sumamente
poderosos, incrustados no aparato judicial de características
improvisadas especialmente para a ocasião, contornando prerrogativas
constitucionais instâncias, prazos processuais e garantias legais.
Seria ilusão considerar que esse evento devastador para a imagem do
jornalismo pátrio tenha se dado por um descuido casual e que esteja
restrito a este caso, mas aqui o mecanismo mostrou suas engrenagens.
Assim como a Justiça, também o jornalismo ignorou seus próprios
princípios éticos fundamentais de distância crítica, trocados por uma
ânsia moralista que recobria uma torcida ideológica dos meios de
comunicação, agora posta a nu. Os meios de comunicação conservadores sem
exceção, sempre procuraram criminalizar os seus oponentes à esquerda
agitando o espantalho da corrupção.
Não é à toa que agora as gravações foram vazadas para o The Intercept
Brasil. Um detentor dessas informações deveria procurar veículo
jornalístico isento, que dispusesse de independência, técnicas de
checagem e compromisso com a verdade. Precisava de jornalistas que
tivessem acesso a uma rede de meios de comunicação para multiplicar a
repercussão do furo e, mais do que tudo, coragem. A "Garganta Profunda"
desse escândalo, provavelmente, observou a paisagem e não identificou
nenhum jornalão (para não falar das TVs ou das grandes revistas) capaz
de encarar inicialmente a tarefa, seja por razão ideológica, falta de
coragem ou baixa fidelidade ao jornalismo. Todos os grandes veículos
brasileiros são refratários a qualquer ação que, mesmo justa, viesse a
beneficiar Lula - cuja prisão, ao que tudo indica, era o principal
troféu da Lava-Jato.
Embora o governo e a maioria da mídia se empenhe em desautorizá-lo, é
possível que o autor, ou autores, original dos vazamentos tenha feito o
trabalho em boa fé, por preocupação com os rumos do país e interessado
em que viesse ao domínio público um conluio contra a Justiça operado
justamente pelos encarregados de zelar pelo seu exercício.
Houve, além do mais, imensa falta de vontade jornalística dos meios de
comunicação diante dos descaminhos de Sergio Moro e da Lava-Jato. Seus
excessos, existentes desde os primeiros momentos dessa cobertura,
deveriam fazer soar alarmes nas redações. Os times de repórteres
promocionalmente rotulados de investigativos aderiram à onda geral de
puxa-saquismo lava-jatista que emanava dos comandos das redações. Há aí
uma lição velha. Custe o que custar, cabe ao jornalismo duvidar dos
poderosos, fazer as perguntas incômodas, remar contra a corrente do
clamor público, seguir pistas, testar hipóteses e dar atenção aos
indícios. É preciso dar voz aos perseguidos em tribunais de exceção.
Em lugar de investigar e cobrar os deslizes de Sergio Moro a fundo, a
mídia empenhou-se em incensar seus métodos e não só isso. Ela
dedicou-se a estigmatizar os que se contrapunham a Sérgio Moro. Ainda
hoje, os juízes do STF como Teori Zavacki (já morto), Ricardo
Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello padeceram nos
programas, nas colunas, nas páginas de jornais e nas capas de revistas.
São alvos de torturas midiáticas, tachados como criminosos protetores
de corruptos, nos comentários de analistas maldosos.
É verdade que nenhum veículo alternativo de esquerda investe não
investe em investigação jornalística em busca dos furos de reportagem.
Isso é um erro grave. É também certo que os sites jornalísticos, os
veículos independentes, os blogs de esquerda, os jornalistas que
alertavam para o uso político e eleitoral da Lava-Jato foram ignorados,
ridicularizados, acusados da mesma forma que o Intercept Brasil ainda é
tratado ainda hoje. Glenn Greenwald, vencedor tanto do Pullitzer como
do Oscar, não faz jornalismo, resmunga a maior parte da mídia
tupiniquim.
A história vai registrar que nesse período o jornalismo estava longe
das grandes redações da mídia conservadora. A razão estava em deduções
jornalistas muitas vezes solitários, corajosos, desligados de grandes
estruturas que estavam empenhadas em criar um xerife justiceiro e
super-heróis higienizadores à custa da verdade, da democracia, e da
Justiça.
O histórico de Sergio Moro no processo anterior à Lava Jato, o do
Banestado, já deveria suscitar cuidados. Sua atuação no impeachment de
Dilma foi já escandalosa e passou incólume. A condenação de Lula sem
provas, no atropelo dos prazos, nas sentenças e procedimentos acertados à
margem dos ritos legais, nada disso retirou a mídia de sua paralisia
delirante. Em choque pelo furo tomado, a grande mídia em sua quase
totalidade ainda resiste a somar-se à necessária investigação e
divulgação dos vazamentos obtidos pelo Intercept.
As consequências demolem a imagem do jornalismo brasileiro, posto sob
justificada suspeição, batido por veículos liliputianos, mas muito mais
confiáveis para quem deseja fazer emergir a verdade. A Justiça e a
democracia não estariam tão ameaçados no Brasil se o jornalismo acima de
tudo tivesse cumprido com independência o seu papel.
Mario Vitor Santos é jornalista. Foi ombudsman da Folha e do portal iG, secretário de Redação e diretor da Sucursal de Brasilia da Folha.
Fonte Contexto Livre