Bolsonaro é a continuidade daquilo que Moro encarnava. Os dois juntos, somados a outros coadjuvantes, no delírio de suas presunções de que são a manifestação da verdade, quando não da vontade divina, se comprazem em perseguir, em destruir e em praticar o mal. Ao marcharem sobre os cadáveres das leis, das instituições e dos direitos que vão destruindo, Moro e Bolsonaro não deixarão nenhum legado positivo.
Por Aldo Fornazieri, cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política (FESPSP)
Cada um de nós, no nosso
pensar, tem a responsabilidade de decidir o que é certo e o que é
errado. Neste terreno, nos situamos num ilimitado relativismo moral
subjetivo. Quando agimos, a nossa moral adquire um caráter objetivo e,
externamente, ela se submente a duas considerações: 1) ao juízo moral
dos outros, seja ele individual, seja aquele social, conformado na moral
do senso comum; 2) ao do direito, sacramentado nas leis e na
Constituição, que conformam a moralidade objetiva. Assim, a moralidade
de uma sociedade só adquire realidade e objetividade mediante as leis,
as instituições e a Constituição.
Quando um juiz julga, ou
quando um agente público age em nome do Estado, não podem adotar como
critério do juízo e da ação a sua moralidade subjetiva, aquilo que ele
considera certo ou errado. Aquilo que ele considera certo ou errado
ponde não ser considerado certo ou errado por muitas outras pessoas e
pode estar em desacordo com as leis e a Constituição. Isto pode
configurar um delito, um ato criminoso. Foi precisamente isto o que
Sérgio Moro, na sua antiga condição de juiz, o procurador Dallagnol e
outros integrantes da Lava Jato fizeram. As revelações do Intercept
dissiparam qualquer dúvida a este respeito.
Sérgio Moro não julgou
apenas a partir de suas convicções morais próprias e contra a
Constituição. Julgou também a partir de um interesse político e material
pessoal e de grupo ao estabelecer um conluio ilegal e imoral com
Dallagnol e outros integrantes da Lava Jato, como provaram as mensagens
divulgadas pelo Intercept. Desta forma, existem duas considerações a
fazer.
A primeira se refere ao
moralismo. O moralismo de Moro está publicamente estabelecido por
declarações, nos autos, em manifestações públicas e em artigos que ele
escreveu. O moralista, em regra, é imoral. Ele aplica aos outros juízos
que não aplica a si mesmo. Em se tratando de juiz, o moralismo é ainda
mais grave porque é criminoso. O moralismo nasce de uma vontade
absoluta: julgar os outros e querer conformar o mundo a partir da
vontade exclusiva do moralista, desconsiderando a realidade objetiva e a
alteridade. Assim, o moralista está possuído por uma vontade
totalitária – a de fabricar o mundo e as relações humanas segundo sua
vontade. Quando um juiz julga por critérios moralistas, pratica um ato
totalitário, executa uma excepcionalidade que está fora do Estado de
Direito.
Já se escreveu muito
sobre o Estado de exceção. Um dos aspectos desse Estado é fomentado pelo
Judiciário: julga-se a partir de critérios emanados do juízo moral do
juiz, da interpretação violentada da lei segundo interesses e objetivos
políticos e da pressão da opinião pública. Estes juízos, de modo geral,
fogem das leis, da Constituição e do direito. Moro incorreu em todas
essas práticas, golpeando a democracia, o Estado de Direito e a
Constituição. Ele antecedeu Bolsonaro na sanha destrutiva da
institucionalidade, da legalidade e da constitucionalidade do país.
A imoralidade de Moro é
avassaladora. Condenou Lula por corrupção como forma de camuflar os seus
desejos e suas práticas corruptas. Erigiu-se como paladino da moral e
herói do país enquanto recebia ganhos salariais muito acima do teto
constitucional e era beneficiário do inescrupuloso, indecoroso e
criminoso auxílio-moradia. Os privilégios públicos sempre foram e são
uma forma de corrupção. Moro era um corrupto pelos seus privilégios e se
corrompeu ao violar os princípios legais e constitucionais no
julgamento de Lula.
O juiz moralista, ao
julgar pela sua vontade totalitária, privatiza a vontade universal para
si e age sempre como se ele fosse o representante de todos. Eleva sua
vontade ao trono do país e pela sua reputação de herói, construída
através da manipulação da opinião pública, pretende que ninguém lhe
oponha resistência, nem mesmo os poderes superiores (no caso o STF,
acovardado pela pressão popular, sendo que alguns ministros concordavam
com as ideias criminosas de Moro). Essa vontade totalitária, que no
fundo é uma vontade de morte, de anular e suprimir o outro, se espalhou
de forma significativa no Judiciário e foi fatal para levar ao colapso
os mecanismos de limites e travas constitucionais daquele poder. Essa
fúria destruidora de Moro, do MP e de outros juízes, se transmutou para o
Executivo na figura de Bolsonaro, que não se cansa de destruir
mecanismos garantidores de direitos e os precários avanços
civilizatórios.
Bolsonaro é a
continuidade daquilo que Moro encarnava. Os dois juntos, somados a
outros coadjuvantes, no delírio de suas presunções de que são a
manifestação da verdade, quando não da vontade divina, se comprazem em
perseguir, em destruir e em praticar o mal. Ao marcharem sobre os
cadáveres das leis, das instituições e dos direitos que vão destruindo,
Moro e Bolsonaro não deixarão nenhum legado positivo. Não podem deixar
legados positivos governantes que enaltecem as armas e desprezam os
livros; que estimulam o ódio e recusam o diálogo; que semeiam a
discórdia e repudiam o convívio democrático; que se movem pelo impulso e
assassinam a razão; que elogiam a tortura e sentem repulsa pelos
direitos humanos; que amam ditadores e odeiam o povo.
A segunda consideração a
ser feita a partir do que já se sabia e que as informações do Intercept
confirmam é que Moro e a Lava Jato agiram politicamente o tempo todo,
motivados por um projeto político. Estas motivações se compõem de dois
elementos claros: impedir que Lula fosse eleito presidente e facilitar a
eleição de Bolsonaro. O candidato de Lava Jato e de Moro era Bolsonaro.
A ideologia da Lava Jato é uma ideologia de extrema-direita e se
coaduna com a ideologia do Bolsonarismo. As mensagens trocadas entre
Moro e os procuradores não deixam dúvida de que constituíam um grupo
político conspirador. O caráter político desse grupo está mais do que
evidenciado com a presença de Moro no Ministério da Justiça e com a
presença de mais 18 integrantes da Lava Jato no governo Bolsonaro.
Impedir Lula, garantir a vitória de Bolsonaro e integrar o governo era o
primeiro ato da estratégia política desse grupo. O segundo, a
candidatura presidencial de Moro em 2022.
Moro e Dallagnol, somados
a outros integrantes da Lava Jato, incorreram em duas imposturas: a do
moralismo imoral e a da ação politicamente motivada. A ação política do
grupo mostra o quanto o moralismo era falso, pois acima dessa demagogia
criminosa pairava o frio interesse pelo poder, pelo metal, pela promoção
e pela vanglória da fama popular. Se transforaram em julgadores que
serão julgados, se não pelos tribunais superiores, pois sobre estes
também recaem graves suspeições, serão julgados pela opinião pública e
pela história. Com as provas já existentes, as páginas da história não
haverão de ser benévolas com eles.
A questão que resta diz
respeito à tática da oposição, principalmente do PT, para enfrentar as
denúncias contra Moro e seu grupo. Uma CPI talvez não seja o melhor
caminho. O melhor caminho parece ser o da intensificação da campanha por
Lula Livre e anulação do processo, acompanhada da exigência da renúncia
de Moro. A renúncia de Moro também deveria se transformar numa
campanha. Por outro lado, deve ser feito todo o esforço possível para
que Moro e Dallagnol sejam investigados, processados e julgados. Neste
ponto se revelará o quanto os tribunais superiores estão corrompidos nos
seus princípios, acovardados perante os fatos, submissos às pressões de
generais. Os generais também precisam ser confrontados: não podem
querer serem os árbitros do jogo político do país. Ou param com as
pressões indevidas ou dizem que querem uma ditadura militar. A
democracia não pode ter suas instituições tuteladas por generais.
Fonte Brasil 247