Concebido às pressas, “Future-se” é precário e mal-acabado. Mas sentido de suas parcas ideias é claro: um ensino superior sem autonomia, em conformidade com a cruzada de Bolsonaro contra a inteligência e o conhecimento
O Future-se, nome
fantasia do “Programa Institutos e Universidades Empreendedoras
e Inovadoras”, foi lançado oficialmente pelo governo federal em 17
de julho. No dia anterior, o MEC já havia apresentado aos reitores
das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) as linhas
gerais do programa. Anunciado pelo twitter e transmitido ao vivo pela
internet, o lançamento frustrou os que esperavam um documento mais
completo, com estudos que justificassem a necessidade do projeto, com
propostas detalhadas do que será exatamente implementado e com
projeções concretas do impacto de cada medida. A comunidade
acadêmica e demais interessados esperaram a divulgação do projeto
“completo”, mas os únicos documentos que circularam foram um
press realease intitulado “Para revolucionar é preciso
despertar”, com 21 slides, e um documento aparentemente informal
intitulado Future-se, de nove páginas, que nada mais é do que a
cópia do site criado para consulta pública do programa.
Ou seja, de
concreto, até agora, temos apenas isso: uma proposta de “revolução”
apresentada em menos de dez páginas. Nada contra o poder de síntese,
mas parece que falta, ainda, muita substância a esse esboço de
ideias para que venha a ser, de fato, um projeto. O que está sendo
colocado em consulta pública é, portanto, um brainstorm de
ideias de estatutos diferentes: algumas já estão em vigor há anos;
outras, carecem ainda de legislação específicas e, portanto, não
têm viabilidade imediata; outras são tão genéricas que sequer dá
para entender como serão realizadas e se existe marco legal para
isso. É esse esboço de projeto, amplo e confuso que o governo quer
que discutamos a sério.
Desde já, acho
importante não subestimar qualquer projeto político vindo do
governo. Mas tanto quanto o conteúdo, a forma do projeto diz muito
sobre seus objetivos mais imediatos. Na melhor das hipóteses, parece
que o governo correu muito para lançar essa proposta agora. Não que
ela não estivesse sendo discutida, nem que não estivesse prevista,
mas é visível que foi disponibilizada muito antes de estar pronta.
O que sugere que o governo de fato quis gerar um momentum para
sair da defensiva, como já analisei em texto anterior.
Isso posto sobre a
forma, em termos de conteúdo, de concreto, o que tem até agora?
O objetivo geral do
Future-se é “o fortalecimento da autonomia administrativa,
financeira e de gestão das IFES”. E pretende fazer isso através
de dois meios principais assim explicitados:
I) “parceria com
organizações sociais”; e
II) “fomento à
captação de recursos próprios”
As universidades
públicas estão entre as instituições mais importantes do país. A
produção de conhecimento e de tecnologia de ponta, a formação de
profissionais e cidadãos preparados para a pensar e intervir em
temas complexos e a atuação junto à sociedade fazem das
universidades e institutos técnicos federais instituições centrais
em qualquer projeto de construção de um país mais justo, mais
autônomo e com garantias mínimas de bem-estar para a maioria da
população.
Justamente por isso,
todos os setores sociais devem financiar a universidade, inclusive o
setor privado.
O grande problema do
Future-se, portanto, não é buscar meios de aumentar o
financiamento privado às instituições públicas de ensino
superior. Esse financiamento, aliás, já está previsto no atual
modelo de funcionamento dessas instituições e vem sendo
incentivado, há alguns anos, por uma série de mecanismos que o
projeto do Future-se em parte reproduz como inéditos, em parte
ignora totalmente sem qualquer justificativa.
O grande problema do
Future-se, na verdade, é que ele projeta que os recursos privados
serão a principal fonte de financiamento das instituições federais
de ensino superior, em especial das universidades – substituindo,
em grande medida, o financiamento público que hoje sustenta essas
instituições.
Esse modelo é
problemático por duas razões:
(I)
A primeira – e
mais importante – é que o financiamento público é a garantia,
consolidada historicamente, para a autonomia universitária. Essa
autonomia é o fundamento da nossa liberdade de ensino, pesquisa e
extensão, sem a qual o que fazemos perde todo sentido.
O fato do Estado –
que idealmente representa o conjunto da sociedade – ser o principal
financiador das universidades e institutos técnicos federais é o
que garante que eles possam, na prática, contrariar setores
específicos da sociedade com estudos e pesquisas que não têm
compromisso de agradar seus financiadores imediatos. Não por acaso,
portanto, os professores dessas instituições têm garantia
constitucional de estabilidade. Em tese, o presidente da República
ou o Ministro da Educação não podem me demitir, mesmo que eu
critique, de modo enfático e fundamentado, as políticas que eles
visam implementar.
Se a universidade
pública dependesse majoritariamente do financiamento privado ou se
os professores não tivessem estabilidade na carreira – ou seja,
fossem contratados via Organizações Sociais, como explicitou em
entrevista hoje, o Ministro da Educação – não teríamos estudos
autônomos e, portanto, confiáveis sobre, por exemplo: o aumento do
desmatamento, os riscos ambientais das grandes barragens, os efeitos
colaterais de medicamentos rentáveis, as ameaças à saúde pelo uso
de agrotóxicos, a correlação entre mortes e posse de armas de
fogo, o crescimento da fome, o impacto da sonegação de impostos por
parte das grandes empresas sobre as contas públicas, o efeito dos
juros altos sobre o crescimento e o orçamento da união, o papel de
discursos intolerantes no fortalecimento de preconceitos e no
enfraquecimento da democracia, do marketing político e empresarial
na construção de identidades e das novas tecnologias digitais na
definição de comportamentos, inclusive eleitorais.
Visto desse ângulo
e à luz dos interesses que sustentam o atual governo, fica claro
onde o Furure-se quer realmente chegar: na desconstrução da
autonomia universitária e, com ela, da possibilidade de produzir
conhecimento sem compromissos de ocasião, formando profissionais
livres para servir à maioria da sociedade e não a uma pequena
parcela dessa.
O ataque
inclassificável de Bolsonaro ao Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (INPE) e a sua negativa de aceitar os dados sobre o
crescimento do desmatamento e da fome no país fazem parte desse
amplo contexto. A redução do orçamento do Censo Demográfico do
IBGE, o corte de bolsas de pesquisa e a suspensão das avaliações
do INEP sobre a atuação das universidades, idem. Sem falar da
recente afirmação do ministro da Educação de que os professores
das universidades federais ganham muito e trabalham pouco, de em como
a sua sugestão mudanças na forma de contratação dos docentes, com
a eliminação dos concursos públicos e da estabilidade na carreira.
Há um amplo e
inequívoco movimento do governo contra a produção de conhecimento
autônomo e confiável, que seja capaz de fazer frente à política
de desinformação e obscurantismo que se quer implementar.
O Future-se é, sem
dúvida, parte disso.
(II)
A segunda razão
pela qual a substituição do financiamento público pelo privado
previsto no Future-se é problemática é mais simples e pragmática:
esse financiamento simplesmente não virá ou não virá na proporção
que o MEC imagina para poder, de fato, se isentar do financiamento
das instituições de ensino superior.
O setor privado,
tradicionalmente e por razões econômicas bem identificadas pela
literatura, não investe em pesquisa e desenvolvimento no Brasil.
Basta olhar os dados da Pintec (Pesquisa de Inovação Tecnológica),
feita a cada três anos pelo IBGE, para constatar isso. Mesmo depois
de todos os incentivos criados pelas leis de propriedade intelectual
de 1996, 1997 e 1998, pela Lei de Inovação de 2004 e pelo Marco de
Ciência e Tecnologia de 2016, os patamares de investimento continuam
muito baixos. A Lei de Fundos Patrimoniais aprovada recentemente,
segundo todas a análises, não vai alterar substancialmente esse
cenário.
Pode ser que o
governo, que tanto despreza dados e evidências, esteja apostando
realmente que o Future-se pode ganhar densidade a ponto de se tornar
uma fonte prioritária e real de financiamento do ensino superior
público. Caso isso fosse viável, seria preciso alterar
substancialmente o formato do projeto para incrementar a autonomia
universitária e fortalecer a carreira docente de modo a preservar o
caráter público – no sentido de fiel ao interesse público, ou
seja, da maioria da população – do ensino e, principalmente, da
pesquisa produzida nessas instituições.
Mas penso que o
Future-se não busca consolidar uma fonte alternativa real de
financiamento da universidade através da venda de pesquisas e outros
expedientes extravagantes previstos no projeto. Seu objetivo
principal é incidir, no curto prazo, no debate sobre financiamento
do ensino superior, seja naturalizando o corte de 30% do orçamento
das instituições de ensino superior, seja enfraquecendo a pressão
que vamos exercer, no Congresso, para que o orçamento de 2020
garanta o funcionamento mínimo das instituições federais de ensino
superior. Em tempos de orçamento impositivo, essa batalha é central
e o Future-se é, na minha visão, uma estratégia discursiva para
naturalizar a redução do orçamento para educação superior
pública.
Sem financiamento,
as universidades e institutos federais não poderão seguir
produzindo conhecimento em condições normais e o governo terá
cumprido sua agenda central. De quebra, abre espaço para a discussão
que realmente interessa para o setor privado do país. Não é nem a
pesquisa, nem a inovação, muito menos a nomeação de prédios e
outras banalidades previstas no projeto original, mas a exploração
comercial do ensino, sobre o qual o Future-se, estrategicamente, não
diz palavra.
Não custa lembrar
que o Brasil tem os maiores e mais internacionalizados grupos
empresariais do mundo atuando no ensino superior privado e que a
vice-presidente a Associação Nacional de Universidades Particulares
(ANUP) é Elisabeth Guedes, irmã de Paulo Guedes, superministro da
Economia. O atual ministro da Educação. Abraham Waintroub atuou,
durante a campanha de Bolsonaro a presidente, na equipe de Paulo
Guedes, participando da formulação do programa econômico do atual
governo. Dizem que foi Guedes quem o colocou no MEC.
Ha alguns dias,
circulou uma informação de que o slogan Future-se era originalmente
de uma universidade privada que vendia MBA à distância em parceria
com universidades privadas dos Estados Unidos. Será esse o Futuro
que o governo quer para nós?
Fonte Outras Palavras