terça-feira, 5 de novembro de 2019

O "OUTUBRO VERMELHO" E A ESCLEROSE BRASILEIRA


Ainda que a velha mídia feche os olhos, o tabuleiro da América Latina foi sacudido. Todas as forças políticas refazem seus cálculos. O futuro está de novo aberto. Os impasses que se armam em Buenos Aires, Santiago e Brasília serão decisivos 

GGN

Por José Luís Fiori[1]


“Por qué protestan? Es por la desigualdad económica. Y los bajos salários. También por la baja o nula movilidad social y la falta de un futuro mejor para los jóvenes. Es por los servicios públicos infames. Y por la globalización y la pérdida de puestos de trabajo…”

Moisés Naim, El País, 27 de octubre de 2019


Desta vez tudo passou muito rápido. Como se, em apenas uma noite, a América Latina tivesse dormido de direita e acordado de esquerda. Depois da avassaladora vitória de Lopez Obrador no México, em 2018, em apenas um mês, outubro de 2019, as forças progressistas venceram as eleições presidenciais na Bolívia, Uruguai e Argentina, elegeram um jovem economista de esquerda para o governo de Buenos Aires e ganharam as eleições na Colômbia, para o governo de suas principais cidades, como Bogotá e Medellín. E quase simultaneamente, uma sucessão de revoltas populares derrubou ou colocou de joelhos os governos direitistas de Haiti e Honduras, impondo pesadas derrotas aos presidentes de direita, do Equador e do Chile.

Muitos analistas se surpreenderam com essa sequência de derrotas da direita, como se fosse inesperada, um verdadeiro raio em céu azul. Mas isto não é verdade, sobretudo nos casos iminentes da rebelião do povo chileno e da derrota de Mauricio Macri na Argentina. No caso do Chile, já tinha havido uma gigantesca manifestação de mais de um milhão de pessoas, em 1988, pelo fim da ditadura do General Pinochet, acossada pelo fracasso de uma economia que havia crescido apenas 1,6%, em média, durante os 15 anos da ditadura militar, deixando como herança um desemprego de 18%, e 45% da população abaixo da linha da pobreza.

Logo depois da redemocratização do país, a partir de 2006, sucederam-se grandes mobilizações estudantis contra a privatização e os altos custos da educação, da saúde, da água e do saneamento básico, que haviam sido privatizados durante a ditadura e permaneceram privados depois da redemocratização. Numa mobilização quase contínua, que alcançou uma extraordinária vitória em janeiro de 2018, com a aprovação pelo Congresso Nacional chileno de um novo sistema de educação universitária, universal e gratuita, tanto pública quanto privada. E foi na esteira dessas manifestações que a população chilena voltou a sair às ruas, neste mês de outubro, contra uma sociedade que apesar do seu “equilíbrio macroeconômico”, segue sendo a mais desigual dentre todos os países da OCDE, com a concentração de 33% da riqueza nacional nas mãos de apenas 1% da população chilena. E contra os sistemas de saúde, água e serviços básicos que seguem privatizados e com custos exorbitantes, e contra um sistema de previdência privada que entrega aos aposentados apenas 33% do seu salário ativo. Num quadro de descontentamento que já prenuncia a derrota provável das forças de direita nas eleições presidenciais chilenas de 2021.

No caso da Argentina, a vitória peronista foi uma resposta imediata e explícita ao fracasso do programa econômico neoliberal do presidente Mauricio Macri, que conseguiu destruir e endividar a economia argentina, deixando como herança um crescimento negativo do PIB, com um taxa de inflação de 50%, um desemprego de 10%  e 32% da população abaixo da linha de pobreza. Sabe-se que a Argentina foi, até bem pouco tempo atrás, a sociedade mais rica e com melhor qualidade de vida e nível educacional de toda a América Latina. Ou seja, resumindo o argumento, a rebelião chilena e a vitória peronista na Argentina não têm nada de surpreendentes, como acontece também com a sucessão em cadeia das demais derrotas da direita latino-americana.

Que consequências imediatas se devem esperar, e que lições extrair deste “outubro vermelho”? A primeira e mais contundente é que os latino-americanos não suportam nem aceitam mais viver em sociedades com um nível de desigualdade tão extrema e vergonhosa. A segunda é que o mesmo programa neoliberal que fracassou na década de 90 voltou a fracassar exatamente porque não produz crescimento econômico sustentado e acentua violentamente a precarização, a miséria e a desigualdade que já existem em toda a América Latina. Por outro lado, do ponto de vista estritamente brasileiro, este fracasso neoliberal, sobretudo o fracasso do Chile e da Argentina, caem como uma bomba em cima do programa de promessas e blefes ultraliberais do senhor Guedes, cuja insistência na mesma tecla, depois de tudo o que aconteceu, sugere tratar-se de um financista que, além de fanático, parece ser cego ou burro.

Assim, permanecem no ar duas perguntas importantes: por que este novo ciclo neoliberal foi tão curto? E o que se deve esperar para o futuro? Para refletir sobre esta questão, entretanto, é necessário afastar-se um pouco da conjuntura e de seus debates mais acalorados, recorrendo a uma hipótese de mais logo prazo, sobre a natureza contraditória do desenvolvimento capitalista, que foi formulada pelo economista e historiador austríaco Karl Polanyi, na sua obra A Grande Transformação, publicada em 1944. Polanyi se propunha a explicar o fim da “ordem liberal do século XIX”, que alcança seu apogeu e começa sua crise e transformação, a um só tempo, a partir de 1870. Segundo o economista austríaco, esta simultaneidade se deve à existência de um duplo princípio que comanda a expansão capitalista: “o princípio do liberalismo econômico, que objetiva estabelecer um mercado autorregulado, e o princípio da proteção social, cuja finalidade é preservar o homem e a natureza, além da organização produtiva.”[2] E teria sido exatamente por isso que os Estados e sociedades capitalistas mais avançados e suas populações teriam começado a se defender do avanço do liberalismo desenfreado, no exato momento em que tal avanço alcançou seu apogeu. Como consequência, segundo Polanyi, a partir de 1870, “o mundo continuou a acreditar no internacionalismo e na interdependência, mas agiu cada vez mais sob os impulsos do nacionalismo e da autossuficiência”.[3] Por isso, na mesma hora do padrão-ouro, da desregulação dos mercados financeiros e da expansão imperialista do final do século XIX, os Estados europeus começaram a praticar o protecionismo e a desenvolver as formas embrionárias de seus sistemas de proteção social, que iriam alcançar seu ápice com a criação do Estado de Bem-Estar Social, após a Segunda Guerra Mundial.

Seguindo Polanyi, podemos também formular a hipótese de que o sistema capitalista voltou a experimentar um grande impulso de internacionalização, liberalização e promoção ativa dos mercados desregulados, a partir dos anos 80 do século XX, e que esse “surto internacionalizante” entrou em crise terminal com as guerras do início do século XXI e o colapso econômico-financeiro de 2008. E foi essa crise terminal que desencadeou ou acelerou um novo grande movimento de autoproteção por parte dos Estados e economias nacionais, que começou na Rússia e na China, no início do século XXI, alastrou-se pela periferia do sistema europeu e acabou atingindo o próprio núcleo financeiro e anglo-americano do sistema capitalista mundial, na hora do Brexit; e ainda mais, na hora da eleição de Donald Trump e seu “America first”. Desta perspectiva, podemos também conjeturar que a onda neoliberal da América Latina dos tempos de Menem, Fujimori, Fernando H. Cardoso e Salinas fez parte do movimento geral de internacionalização, desregulação e globalização das décadas de 80/90, liderado pelos países anglo-saxônicos. E a “virada à esquerda” do continente, da primeira década do século XXI, com seu viés nacional-desenvolvimentista, também fez parte desse novo e grande movimento de autoproteção estatal, econômico e social que está em pleno curso sob a liderança das quatro grandes potências que deverão liderar o mundo no século XXI: EUA, China, Rússia e Índia.

Olhando para o mundo desta maneira, pode-se entender melhor por que o revival neoliberal latino-americano dos últimos cinco anos durou tão pouco: porque está rigorosamente na contramão do sistema capitalista mundial. Apesar disso, esta reincidência neoliberal tardia pode fazer parte de uma disputa pelo futuro do continente que ainda está em pleno curso e que pode se prolongar ainda por muitos anos, incluindo a possibilidade de um impasse sem solução. Ou seja, deste ponto de vista, apesar da grande vitória progressista deste outubro vermelho, o futuro da América Latina segue incerto e dependerá muitíssimo do que venha a passar na Argentina, Chile e Brasil, nos próximos tempos.

No caso da Argentina, o novo governo de Alberto Fernandez enfrentará desafios de grande proporção quase imediatos e que podem levar o país a repetir o dilema das últimas décadas, prisioneiro de uma “gangorra” que não deslancha, ora sob o comando dos “liberistas”, ora sob o comando dos “nacionalistas”, sem conseguir sustentar uma estratégia de desenvolvimento que seja coerente, consistente e duradoura. A diferença entre Fernandez e Macri foi de 8%, e apesar de que Fernandez terá maioria no Senado, não o terá no Congresso, onde será obrigado a negociar com Macri e com os demais partidos para aprovar seus projetos. Além disso, Fernandez começará seu governo no mês de dezembro, com um país quebrado e endividado, com reservas que já estão quase inteiramente comprometidas com o pagamento de dívidas de curto prazo, com altas taxas de inflação, desemprego e miséria. E com a ameaça permanente de ver seu governo torpedeado por novas explosões inflacionárias e crises financeiras que se repetem periodicamente na Argentina.

Por outro lado, no caso do Chile, as forças progressistas só poderão recuperar o governo em 2021, e até lá terão que negociar com o governo de Sebastián Piñera um programa de reformas constitucionais que terá que enfrentar o problema da reestatização dos serviços de saúde, água e saneamento básico, pelo menos, além da rediscussão do sistema de previdência social por capitalização, que fracassou rotundamente do ponto de vista dos aposentados. E a aceitação conjunta de que o desempenho macroeconômico chileno das duas últimas décadas é insuficiente para dar conta das necessidades concretas dos cidadãos comuns que não se interessam pelas cifras e querem apenas sobreviver com um mínimo de decência e qualidade de vida.

Por fim, o futuro brasileiro está cada vez mais difícil de prever depois dessa revolta continental. Mesmo que o país consiga se desfazer deste grupo de pessoas que se apoderou do estado brasileiro, evitando portanto, a instalação autoritária de um regime controlado por milicianos e narcotraficantes, mesmo assim, depois do que já fizeram, eles já deixarão para trás, como uma herança funesta, um Estado e uma economia aos pedaços, e uma sociedade dividida e moralmente destruída. O que foi construído pelos brasileiros nos últimos 90 anos está sendo destruído e entregue, sistematicamente, por estes senhores, em troca de promessas e blefes que não têm a menor base científica ou histórica. Mesmo sem voltar a falar da cegueira ideológica do senhor Guedes, basta ver o estrago que já foi feito novo chanceler brasileiro à imagem internacional do país, e à toda sua história diplomática, induzido pelos seus delírios religiosos e milenaristas, e pela sua decisão de “purificar” os costumes “ocidentais e cristãos”. A sua invasão da Venezuela já virou piada internacional, o seu Grupo de Lima implodiu, e o seu servilismo americano abriu portas para a formação de um novo eixo político-diplomático no continente, articulado em torno do México e da Argentina, enquanto ele próprio, se seguir por este caminho, acabará passando  para a história da diplomacia brasileira como um personagem patético: “Ernesto, o Idiota”.

Concluindo, mesmo depois que esse grupo de marginas e fanáticos seja devolvido ao seu devido lugar de origem, o Brasil terá que enfrentar o desafio extremamente complexo de reconstruir seu Estado, suas instituições e sua própria sociabilidade, ao mesmo tempo em que defineos novos caminhos da sua economia. E isto só será possível a partir de um grande acordo civilizatório entre as forças políticas democráticas, que tenha como ponto de partida o rechaço terminante do projeto atual de destruição do Estado e de submissão do país à direção econômica e ao protetorado militar dos Estados Unidos.

31 de outubro de 2019

[1] Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia política Internacional, PEPI, coordenador do GP da UFRJ/CNPQ, “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”; coordenador adjunto do Laboratório de “Ética e Poder Global”; pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis, INEEP. Publicou “O Poder global e a nova geopolítica das nações”, Editora Boitempo, 2007 ; “História, estratégia e desenvolvimento”, Boitempo, em 201 ; e, “Sobre a Guerra”, Editora Vozes Petrópolis, 2018.

[2] Polanyi, K. A Grande Transformação. Rio de Janeiro: Editora Campus, Rio de Janeiro, 1980, p. 139.

[3] Idem, p. 142.

Fonte GGN