"O golpismo chega à Bolívia, com o Exército e a polícia forçando o presidente Evo Morales a deixar seu cargo. Em sua declaração de renúncia, Evo justifica que sai para livrar seus compatriotas das perseguições, intimidações, sequestros, ameaças e da tortura, exatamente como nos tempos mais difíceis das ditaduras sul-americanas", pontua a colunista e Jornalista pela Democracia Cynara Menezes em uma restrospectiva
2013. Quase 30 anos após o fim da ditadura militar no Brasil, parecia
que estávamos livres do autoritarismo e com nossa jovem democracia
consolidada. O que ninguém esperava é que, como em uma missa macabra, as
elites conjurassem o monstro de volta. Aproveitaram-se de um protesto
legítimo contra o aumento dos ônibus em São Paulo para lançar a semente.
“O gigante acordou”, diziam. Mas era um troll, disposto a tudo para entregar o poder novamente aos gorilas verde-oliva que oprimiram o continente sul-americano por duas décadas.
O terreno para os saudosistas da ditadura vinha sendo semeado anos
antes, desde 2009, com o golpe contra o presidente de Honduras, Manuel
Zelaya, tirado de casa de pijamas e expulso do país. Invocado das
catacumbas, o demônio autoritário migrou em seguida para o Paraguai,
onde derrubaria o presidente Fernando Lugo em 2012. A mídia comercial
brasileira se referiu a ambos os casos não como “golpes”, mas utilizando
o eufemismo “deposição constitucional”. Recebia de braços abertos,
assim, o retorno da prática de arrancar governantes eleitos de seus
cargos, como ocorria na ditadura que ela apoiou.
Sob o beneplácito e patrocínio dos donos da imprensa, o monstro ia
criando braços. Primeiro, em organizações surgidas nos subterrâneos da
política, financiados sabe-se lá por quem, que, na superfície, se
identificavam como “cidadãos de bem” e “patriotas”. Depois, encontraria
abrigo entre as togas mais sinistras do Judiciário, que revelou uma
inequívoca vocação ditatorial, misturada ao fundamentalismo religioso
que também marca essa nova onda de autoritarismo em nosso continente. Em
vez da Constituição, essa gente jura seguir a Bíblia, ou sua peculiar
interpretação dela.
O próximo passo era arrancar do cargo a presidenta eleita do Brasil,
Dilma Rousseff, e, por conseguinte, o PT. Os protestos de 2013, que,
após serem desvirtuados pelo oportunismo midiático e pela extrema
direita, chegaram ao fim sem conseguir seu intento de derrubar Dilma,
foram retomados com outra roupagem em 2015, logo após a reeleição. Nas
ruas, os golpistas perderam o pudor e começaram a invocar abertamente o
demônio: “Intervenção militar já!”, bradavam homens e mulheres de verde e
amarelo, possuídos pela paranoia anticomunista e pelo ódio à esquerda
alimentados durante anos pelo rádio,revistas, jornais e TVs.
Dilma foi impichada e Lula, preso. Mas a conspiração não trouxe, ao
contrário do que garantiam os pseudo “defensores da democracia”,
políticos salvadores da pátria e sim os demônios autoritários que estes
setores invocaram, a pretexto de exorcizar o PT do poder. Um
simpatizante declarado da ditadura militar e da tortura, o capitão Jair
Bolsonaro, foi alçado à presidência da República. A ameaça de uma nova
onda de governos militares paira sobre nossas cabeças, inclusive sobre
as cabeças da mídia que os ajudou a retornar do além-morte.
Agora o golpismo chega à Bolívia, com o Exército e a polícia forçando
o presidente Evo Morales a deixar seu cargo. Não foi nem pelo
Congresso, como no caso de Zelaya, Lugo e Dilma: foi um golpe militar
clássico mesmo, à moda antiga. Uma quartelada. Tanto é que nem a mídia
brasileira está falando em “deposição constitucional” desta vez.
Em sua declaração de renúncia, Evo justifica que sai para livrar seus
compatriotas das perseguições, intimidações, sequestros, ameaças e da
tortura, exatamente como nos tempos mais difíceis das ditaduras
sul-americanas. A casa de sua irmã foi incendiada, assim como outras
residências de governadores e apoiadores do governo. O presidente segue
escondido, com a vida em perigo. A casa de Evo foi saqueada e seus
pertences, queimados.
A renúncia ocorre após um mês de violência no país, desatada com a inconformidade da oposição com o resultado da eleição, em outubro, dando vitória a Evo, em um pleito questionado pela OEA. Em uma das cenas mais dantescas dos protestos, Patricia Arce, prefeita de Vinto, pequena cidade vizinha a Cochabamba, aliada de Evo Morales, foi atacada, teve seu cabelo cortado e foi pintada de vermelho.
Na manhã deste domingo, diante do relatório da OEA apontando “irregularidades”
na contagem de votos, o presidente boliviano resolveu convocar novas
eleições para tentar contornar a crise, com novos membros na corte
eleitoral. Era tarde. O Exército e a polícia o obrigaram a renunciar.
Tardios demais também foram o “rechaço” da OEA
a “qualquer saída inconstitucional” na Bolívia e a recomendação de que
se “respeite o estado de direito”. O que se vê no horizonte são tempos
sombrios para os bolivianos.
Zumbis de torturadores caminham pelos palácios dos governos sul-americanos. Fantasmas de generais genocidas sopram nos ouvidos dos vivos. No Brasil, aliados do governo Bolsonaro, inclusive seu filho, já falam em “novo AI-5”
Como nos filmes de terror B, chamar os mortos de volta sempre resulta
em sangue derramado e morte. Zumbis de torturadores caminham pelos
palácios dos governos sul-americanos. Fantasmas de generais genocidas
sopram nos ouvidos dos vivos. No Brasil, aliados do governo Bolsonaro,
entre eles seu próprio filho, já falam em “novo AI-5”, tentando
ressuscitar o período mais cruel da ditadura que admiram, quando
qualquer cidadão podia ser torturado e morto apenas por questionar o governo.
A libertação de Lula pelos seis ministros do Supremo que ainda mostram apreço pela democracia
foi um alento que durou dois dias. O monstro do autoritarismo rugiu
forte diante da decisão. O guru da extrema direita mundial, Steve
Bannon, atacou o ex-presidente em entrevista à BBC,
dizendo que “o esquerdista mais celebrado do mundo”, uma vez fora da
prisão, irá trazer uma “crise constitucional” e “enorme perturbação” ao
Brasil. O general Augusto Heleno tuitou que o discurso do petista
“incita a violência”. E o guru do bolsonarismo, Olavo de Carvalho,
aplaudiu o golpe na Bolívia.
A desculpa para o AI-5 foi o discurso do deputado Marcio Moreira Alves,
em setembro de 1968, em que convocava o povo a boicotar o 7 de Setembro
e as moças, a recusar sair com jovens oficiais. Outro deputado, Hermano
Alves, seria, junto a Moreira Alves, alvo de pedido de cassação feito
pelo governo militar, por publicar artigos também considerados
“provocações”. Como a Câmara recusou, o AI-5 foi baixado, o Congresso
foi fechado e os mandatos dos parlamentares, cassados (no ano seguinte
seriam os ministros do Supremo). Estados e municípios sofreram
intervenção federal e iniciou-se um período vergonhoso de perseguições,
tortura, desaparecimentos de opositores e isolamento do país.
51 anos depois do AI-5, o que servirá de pretexto para o
endurecimento do regime? A soltura de Lula? Seu discurso em São
Bernardo? E o que importa? O monstro do autoritarismo já está entre nós.
Para começar a morder parece uma questão apenas de contagem regressiva.