Agora, está claro: devastação espantosa
prossegue porque presidente apoia-se na ignorância dos neofascistas e
nos interesses dos neoliberais. Mas tal coalizão revela precariedade do
capitalismo brasileiro e brechas abertas, em tempos de revolta
Por Luiz Filgueiras e Graça Druck
“Se a esquerda radicalizar a esse ponto,
a gente vai precisar ter uma resposta.
E uma resposta pode ser via um novo AI-5”.
(Eduardo Bolsonaro)
a gente vai precisar ter uma resposta.
E uma resposta pode ser via um novo AI-5”.
(Eduardo Bolsonaro)
“Sejam responsáveis, pratiquem a democracia. Ou democracia é só
quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses
você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade
é essa? Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não
aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”
(Paulo Guedes)
quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses
você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade
é essa? Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não
aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”
(Paulo Guedes)
O ministro admitiu que o ritmo das reformas desacelerou no Congresso
após a aprovação das mudanças na Previdência e disse que, quando as
pessoas começam a ir para as ruas “sem motivo aparente”, é preciso
“entender o que está acontecendo” e avaliar se é possível prosseguir
com a agenda liberal
(Folha de S.Paulo, 23/11)
após a aprovação das mudanças na Previdência e disse que, quando as
pessoas começam a ir para as ruas “sem motivo aparente”, é preciso
“entender o que está acontecendo” e avaliar se é possível prosseguir
com a agenda liberal
(Folha de S.Paulo, 23/11)
No
momento atual — transcorridos onze meses do governo Bolsonaro, mais
de três anos do golpe/impeachment que pôs fim ao governo de Dilma
Roussef eleita democraticamente, e seis anos das manifestações de
2013 que deram início à atual conjuntura político-econômica do
país –, pode-se identificar, mais claramente, o significado e o
sentido de todo o processo, bem como reconstituir a sua origem e
desenvolvimento – destacando-se alguns dos seus aspectos
fundamentais.
– A
convergência entre neoliberalismo e neofascismo
Antes de tudo, o processo em curso expressa um movimento político
mais amplo, internacional, de ascensão da direita e extrema-direita em
inúmeros países, tanto no centro quanto na periferia do capitalismo. Em
todos os casos, em maior ou menor grau, esse movimento representa e
articula, de forma aparentemente bizarra, um conjunto de interesses e
tendências ideológicas, que podem ser resumidos em:
ultra-neoliberalismo, autoritarismo político (desqualificação do Estado
Democrático de Direito),
nacionalismo efetivo ou retórico (contra a “globalização”),
xenofobismo (contra a imigração), reacionarismo moral e cultural
(anti-iluminista), fundamentalismo religioso cristão (católico e,
principalmente, evangélico). E que tem como meio fundamental de
propagação e arregimentação de militantes e apoiadores o uso
intensivo das redes sociais, fazendo uso da chamada “Guerra
Híbrida”.
No plano
internacional, a crise geral do capitalismo, eclodida em 2008, assim
como a resposta dada pelos diferentes Estados nacionais (socialização
dos prejuízos do sistema financeiro, através do endividamento dos
Estados) e, na sequência, o aprofundamento das políticas e reformas
neoliberais nos países periféricos (a partir da crise da Zona do
Euro em 2010), se constituem na base material dessa ascensão da nova
direita e extrema-direita em escala mundial. Elas conseguiram
capturar a raiva e o ressentimento dos
“perdedores” do processo de mundialização do capital dos
últimos quarenta anos (conduzido pelas finanças e o neoliberalismo)
e direcioná-los contra inimigos imaginários e o establishment
em geral (a democracia liberal); raiva e ressentimento derivados do
desemprego, da pobreza, da insegurança e da precarização do
trabalho e da vida. A incapacidade do liberalismo clássico e da
social-democracia, em apresentar alternativas ao ultra-neoliberalismo
e suas consequências sociais, facilitou o crescimento do
neofascismo.
Para além das
aparências e da retórica, há uma clara convergência política,
uma afinidade eletiva, entre o neoliberalismo, enquanto expressão
dos interesses do capital financeiro – doutrina/ideologia, política
econômica e tipo de racionalidade –, e a atual ascensão da
extrema-direita (no limite, o neofascismo). Assim como na sua
primeira experiência prática no Chile da Ditadura de Pinochet
(1973), a implementação das reformas e políticas neoliberais (de
natureza regressiva e excludente, gerando mais pobreza,
desigualdade e instabilidade) exigem, ao fim e ao cabo, um Estado de
Exceção. Como o programa e as políticas neoliberais não têm o
que oferecer à esmagadora maioria da população em qualquer parte
do mundo, a democracia liberal e o Estado de Direito se evidenciam,
cada vez mais, incompatíveis com os interesses e as políticas do
capital financeiro. Portanto, a potencial tensão e oposição entre
neoliberalismo e democracia (daí a sua crise), presente desde o
início dessa utopia regressiva, concretiza-se claramente na
atualidade.
Além de atuar pela
implantação de um Estado de Exceção – um estado de emergência
permanente, não assumido formal e explicitamente, que corrói o
Estado Democrático de Direito por dentro, permitindo a perseguição
e o extermínio de adversários políticos e grupos de pessoas
consideradas à margem da “normalidade” por qualquer razão e/ou
não assimiláveis pelo sistema político –, essa extrema-direita
contemporânea, neofascista, com caráter mobilizador, dá ao capital
financeiro e a sua expressão político-ideológica (o
neoliberalismo) uma massa de apoio sensibilizada, principalmente, em
sua maioria, não pelo programa do capital financeiro e a política
neoliberal enquanto tais, mas por valores morais e culturais
retrógrados, assim como pelo fundamentalismo religioso – inclusa a
“teologia da prosperidade” evangélica, de inspiração
neoliberal.
– O Golpe de 2016
e o impeachment da Presidente Dilma Roussef
Especificamente no
Brasil, o momento de inflexão que dá início à atual conjuntura
foi a eclosão das manifestações massivas de 2013, ocorridas nas
principais cidades. Motivadas, inicialmente, pelo aumento das tarifas
dos transportes urbanos, rapidamente evoluíram para se redirecionar
contra os péssimos serviços públicos em geral (saúde, educação
etc.), associando-os ao mau uso do dinheiro público (em especial à
corrupção) pelos governos municipais, estaduais e, principalmente,
o governo federal.
Naquele momento começaram a aparecer os primeiros sinais no país de
utilização e desenvolvimento da “guerra híbrida” –
desencadeada por dentro e por fora das redes sociais. Em sua esteira,
vieram a desqualificação e a demonização da política, dos
partidos políticos e dos políticos, sintetizadas na “luta contra
a corrupção”; que se desdobrou, posteriormente, no ataque ao
Estado em geral, mas sobretudo ao Estado social, e a tudo que é
público e coletivo, tendo como contraposição o individualismo e a
meritocracia. Aí, a semente da conjunção entre neofascismo e
neoliberalismo, que se desenvolveria rapidamente nos anos seguintes,
foi plantada.
A extrema
polarização das eleições de 2014, com a vitória apertada do
campo da esquerda, e que já expressava a mudança da conjuntura
anunciada pelas manifestações do ano anterior, detonou o processo
que levou ao Golpe de Estado de tipo novo, executado por dentro da
ordem democrática e fazendo uso de suas instituições. O sujeito
fundamental do Golpe, subjacente a todo o processo, mas claramente
identificado na obra neoliberal efetivada após a posse de Temer, foi
a burguesia cosmopolita (sócia
menor umbilical dos capitais imperialistas) e o imperialismo. A sua
base social de massa constituiu-se principalmente de parte
majoritária da “classe média”, mas também de alguns segmentos
das classes populares – ganhos para o ideário da anticorrupção
(sempre associada ao Estado) e da meritocracia. Os seus operadores, a
linha de frente da ação política, foram a mídia corporativa, o
próprio Parlamento, o Poder Judiciário, o Ministério Público (em
especial a “Lava Jato”) e a Polícia Federal. E,
por fim, como apoiadores e participantes ativos, o Golpe contou com
as Igrejas Evangélicas e inúmeras organizações empresariais
corporativas e organizações político-ideológicas de direita –
muitas delas articuladas e financiadas internacionalmente.
Para além dos
eventos de 2013 e das eleições de 2014, as razões mais profundas
da mudança da conjuntura podem ser identificadas no impacto
continuado da crise mundial do capitalismo no Brasil, que se
evidenciou a partir do Governo Dilma em 2011. A desaceleração do
crescimento, ano a ano, combinada com a resposta dada por este
governo, com a política de desoneração tributária para inúmeros
setores da economia, criou um déficit fiscal primário a partir de
2014 – situação que não ocorria desde 1999. Para piorar as
coisas, a execução da política de ajuste fiscal (peça-chave do programa derrotado nas eleições) a partir de 2015, logo no início
do segundo governo Dilma, levou a economia à recessão, aumentando
rapidamente as taxas de desemprego e aprofundando o déficit fiscal em
virtude da redução das receitas.
Na nova conjuntura
econômica, de aumento do desemprego e queda dos rendimentos, a
insatisfação política com o governo se ampliou, abrindo espaço
para o discurso neoliberal e sua crítica às políticas
econômico-sociais executadas pelo Estado desde a segunda metade do
primeiro governo Lula. Nesse ambiente, a ofensiva da burguesia
cosmopolita, para retomar o protagonismo no bloco no poder reduzido
parcialmente a partir de meados do primeiro governo Lula, em razão
da relação privilegiada dos Governos do PT com a burguesia interna,
prosperou. E a ponta de lança dessa ofensiva, utilizada
historicamente (desde a campanha que levou ao suicídio de Getúlio
Vargas) pela burguesia associada ao imperialismo, foi mais uma vez a
bandeira da anticorrupção – que mobilizou a massa da classe média
para o apoio e execução do golpe, com a organização de grandes
atos públicos.
– A ascensão da
extrema-direita
No processo de
preparação e mobilização para o golpe, a extrema-direita veio à
“luz do dia”, com seus adeptos, até então dispersos,
aglutinando-se na criação de um movimento neofascista no país;
cujos primeiros sinais, mirando agora retrospectivamente, já se
podiam notar no interior das manifestações de 2013. Um movimento
articulado nas redes sociais, contando com robôs e uma milícia
digital típicos da “guerra híbrida”. O reconhecimento de seu
caráter neofascista, ao mesmo tempo diferente e semelhante aos
movimentos que ocorreram no mundo na primeira metade do século XX,
justifica-se, apesar de se viver outro tempo histórico e outro
momento do sistema capitalista, por algumas de suas características
marcantes que o fazem “filho” da grande família do fascismo.
Antes de tudo, a sua própria condição de movimento, que aglutina e
mobiliza militantes políticos em torno de um líder (ainda não
partidariamente), sensibilizados por frustrações, medos, rancores e pelo
ódio e o ressentimento contra o “outro”– que pode ser identificado em
vários tipos de sujeitos: o imigrante, o comunista, o nordestino, o gay,
o negro, a mulher, o artista, o intelectual, o professor, o político, o
funcionário público etc. Mobilização que assume um caráter permanente
de luta político-ideológica agressiva, que aponta para a negação e
eliminação dos adversários – responsáveis, supostamente, por todos os
problemas do país. Adicionalmente, esse movimento se caracteriza por
forte conotação emocional e de irracionalidade: anti-iluminista,
anti-intelectual e desprezo à teoria – com o uso sistemático da mentira e
da falsidade histórica, praticando a distorção da linguagem e dos
objetos que ela designa. Para completar, reacionarismo moral e cultural
(culto às tradições), associado a uma explicação mítica,
mágico-religiosa, do mundo e da política.
O resultado de todo
o processo acabou por desembocar na vitória eleitoral de Jair
Bolsonaro para Presidente da República, o representante maior, mas
não único, da extrema-direita brasileira. A radicalização da
polarização política, que vinha desde a eleição anterior de
2014, se aprofundou e engoliu a direita tradicional neoliberal que
conspirou e participou ativamente do golpe, abrindo espaço para a
extrema-direita neofascista e ultra-neoliberal. O novo fenômeno
trouxe para política indivíduos bizarros,
completamente desconhecidos, e implicou a eleição de um Congresso
de perfil fortemente conservador e reacionário – a ponto de um
Partido “nanico”, o PSL, passar a ter a segunda bancada da
Câmara. A prisão de Lula, impedido de disputar as eleições, foi
decisiva para a derrota eleitoral da esquerda, assim como o papel
cumprido pela Justiça e a Lava Jato – agora claramente evidenciado
pelas revelações (Vaza Jato) do The Intercept Brasil.
O Governo
Bolsonaro: a obra neoliberal-neofascista
No governo Bolsonaro
podem ser identificadas três correntes de extrema direita: a
neofascista, a ultra-neoliberal e a militar tradicional, esta última
em segundo plano. A extrema-direita neofascista tem três
ramificações, que cumprem papéis diferenciados e se movem em
esferas distintas, quais sejam:
1- O bolsonarismo,
centrado na figura do líder e movido a milícias digitais nas redes
sociais, é quem permanentemente mobiliza e dirige a massa do
movimento neofascista – dando-lhe motivos reais ou imaginários
para ataques e agressões aos adversários.
2- A Lava Jato e os
operadores do direito (integrantes do Ministério Público,
Promotores e Juízes), que se atribuem a função messiânica de
limpar o país da corrupção e dos corruptos (os “Savonarolas”
contemporâneos), encarregam -se de criminalizar “legalmente” os
adversários, manter um clima de suspeita e medo, colocando a “luta
contra a corrupção” como uma tarefa permanente e inacabável.
3- As igrejas
evangélicas, em especial as neopentecostais, que unem em um só
sujeito o casamento do neoliberalismo com o neofascismo – explícito
no programa político da Frente Parlamentar Evangélica entregue a
Bolsonaro após o primeiro turno das eleições –, incubem-se do
controle e manipulação político-religiosa da massa desorganizada e
mais pobre das periferias, inculcando-lhes preconceitos, valores
morais arcaicos e individualistas, o anticomunismo histérico,
mentiras e medos.
A extrema direita
ultra-neoliberal, representada sem qualquer disfarce pelo ministro da
Economia e seu entorno, é, de fato, a condutora das reformas e das
políticas econômicas reivindicadas pelo grande capital
financeirizado e o imperialismo. Portanto, é ela que expressa e
conduz os interesses dos verdadeiros “donos do poder”, razão
maior do Golpe, e que tem forte apoio na quase totalidade da alta
classe média.
E, por fim, a
extrema direita militar tradicional, avessa à mobilização política
ativa de qualquer segmento da população e que se expressa na
presença de inúmeros militares nos diversos escalões do governo.
Tendo como figura maior o Vice-Presidente da República, mas não
parecendo ter uma maior organicidade, o seu discurso evidencia
claramente que, além do autoritarismo e anticomunismo tradicionais,
o neoliberalismo ganhou os “corações e mentes” dos integrantes
das Forças Armadas. O seu papel, simbólico, é de lembrar que as
forças armadas estão sempre presentes na função de tutelar a
democracia e, caso necessário, poderão ser “chamadas” a golpear
o Estado de Direito.
Em suma, o Governo
Bolsonaro é o modo de conjunção, especificamente brasileiro, do
neoliberalismo com o neofascismo. O conjunto da obra neoliberal
(2016-2019), iniciada imediatamente após o Golpe, com o governo
Temer, e aprofundado pelo governo Bolsonaro, trás as digitais
indeléveis dos interesses econômicos e políticos da burguesia
cosmopolita e do imperialismo: congelamento dos gastos correntes por
20 anos, liberação e generalização da terceirização, reforma
trabalhista, reforma da Previdência, desmonte da cadeia produtiva do
petróleo e entrega do pré-sal às multinacionais, destruição da
engenharia pesada nacional, alteração do marco regulatório do
petróleo, privatizações e, agora, a ameaça de uma reforma
administrativa contra o serviço e os servidores públicos.
No longo prazo, do ponto de vista estrutural, o significado e as
implicações dessa obra se manifestarão no aprofundamento da dependência e
no aumento da vulnerabilidade externa, desindustrialização, redução do
mercado interno, e aumento da desigualdade e da pobreza – cujos
indicadores em 11 meses de governo já apontam. E do ponto de vista
conjuntural, está levando à estagnação da economia e regressão social;
pois essa política ultra-neoliberal afeta negativamente, direta e
indiretamente, o consumo das famílias, o investimento das empresas, os
gastos do governo e o saldo da balança comercial do país – o conjunto de
variáveis que expressa e determina a dinâmica de toda e qualquer
economia capitalista.
Por sua vez, o
conjunto da obra neofascista também é amplo: apoio a Ditaduras e
ataque ao Estado de Direito; defesa da tortura e de torturadores;
ataques a Instituições científicas (IBGE, INPE, CNPq); violência
armada contra os índios e movimentos sociais; defesa e estímulo ao
desmatamento da Amazônia; conivência/omissão/prevaricação no
derramamento de petróleo no litoral brasileiro; perseguição das
minorias; ataque a Instituições do Estado (STF, BNDES, INCRA);
ataque à cultura (ANCINE) e extinção de conselhos populares em
todas as áreas; estrangulamento financeiro das Universidades
Públicas e tentativa de extinguir a sua autonomia e privatizá-las,
através da proposta do MEC denominada de “Future-se” – já
rechaçada pela comunidade universitária; tentativa de
desmoralização da escola como instituição educadora e de
sociabilização, acompanhada da tentativa de impor o projeto
autoritário “Escola sem Partido”; e no plano internacional e
diplomático, o alinhamento servil (vira-lata) aos EUA, sem a
exigência de qualquer tipo de contrapartida.
– A
responsabilidade da esquerda
Antes de tudo, para
se evitar mal-entendidos, deve ser dito que a derrota da esquerda
nesse processo, em especial do Partido dos Trabalhadores e seu
governo, resultou de um conjunto de contradições, protagonizadas ou
não por suas ações. Em outras palavras, o PT e o seu governo foram
derrotados por seus méritos, mas também por seus equívocos.
Os governos do PT sintetizaram uma aliança ou frente política,
expressa em um programa autodenominado de “neodesenvolvimentista”
(crescimento com distribuição de renda), composta pela burguesia
interna, trabalhadores organizados e setores populares desorganizados
identificados diretamente com Lula. O contexto de ascensão do ciclo
econômico internacional nos anos 2000 (a fortuna), combinado com a
mudança parcial da política macroeconômica a partir de meados do
primeiro governo Lula e a adoção de um conjunto de políticas sociais (a
virtude), possibilitou taxas de crescimento do PIB mais elevadas,
redução do desemprego e da pobreza, pequena alteração (para melhor) na
distribuição de renda (fundamentalmente entre os diversos segmentos de
trabalhadores), elevação do consumo (em especial de bens de consumo
duráveis) da população em geral, mas especificamente dos segmentos de
menor renda. Além de políticas nos campos da habitação (com o Programa
Minha Casa, Minha Vida) e da educação (ampliação do FIES e criação do
PROUNI, voltados para o acesso a Instituições de Ensino Superior
Privadas, e do REUNI, este último viabilizando a criação de mais
Instituições Federais de Ensino Superior e ampliação das já existentes).
Esse arranjo
político, interpretado pelo PT e seus intelectuais como uma
superação do “modelo neoliberal”, ressuscitou a ilusão
histórica da possibilidade de um desenvolvimento do capitalismo
brasileiro mais autônomo e soberano frente ao imperialismo. O Estado
apoiou privilegiadamente – principalmente através da atuação do
BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e da Petrobrás –
a burguesia interna, promovendo suas empresas, centralizando capitais
e internacionalizando-as (a política de fomento aos “campeões
nacionais”), expandindo sua influência na América Latina e na
África. Esse movimento veio acompanhado por um novo tipo de
diplomacia, com forte ênfase nas relações com os demais países
periféricos – que promoveu e estimulou programas de cooperação
em diversas áreas que, para alguns observadores e analistas
políticos, se constituíram na “face simpática do subimperialismo
brasileiro”.
No entanto, os
relevantes resultados econômico-sociais alcançados, fundamentais
principalmente para a população mais pobre, não significaram a
superação do neoliberalismo no país. A flexibilização da
política macroeconômica (metas de inflação, superávit fiscal
primário e câmbio flutuante), permitida pela folga no balanço de
pagamentos do país nos anos 2000, foi operacionalizada dentro do
Padrão de Desenvolvimento Liberal Periférico – constituído a partir dos anos
1990 (governo Collor), consolidado pelos governos de FHC e aceito, como
irreversível, pelos governos do PT – que não reverteu nenhuma de suas
reformas estruturais. Daí a fragilidade e os estreitos limites dos
avanços sociais que beneficiaram a parte mais pobre da população, e que
sofreu um rápido processo de desmonte a partir do Golpe. A ilusão de que
se estava superando o neoliberalismo deriva de se confundir o Padrão de
Desenvolvimento Capitalista (estrutural) com o Regime de Política
Macroeconômica (conjuntural) – este último de fato alterado.
A ausência de reformas estruturais, que realmente confrontassem o
neoliberalismo, evidenciaram as contradições e limites do arranjo
político “neodesenvolvimentista”. A expressão institucional-parlamentar
desse arranjo teve como fiel da balança para a “governabilidade”, tal
como nos governos de FHC, o chamado “Centrão”; constituindo o que ficou
conhecido como o “Presidencialismo de Coalização”. Com a crise
econômica, que possibilitou e facilitou a ação política da burguesia
cosmopolita e do imperialismo, a expressão parlamentar do arranjo
neodesenvolvimentista se desfez, abrindo o caminho
para o impeachment. Não tendo respaldo suficiente das
mobilizações de massa contra o golpe, a ação
político-institucional da esquerda no Parlamento não conseguiu
reverter a situação. E, no processo, a burguesia interna (hoje
inexistente politicamente e em boa parte desestruturada, com a
contribuição decisiva da Lava Jato) “lavou as mãos” ou apoiou
abertamente o golpe. De outro lado, retrocedendo no tempo, é
importante lembrar que a entrada do neoliberalismo no Brasil a partir
do governo Collor impactou fortemente o conjunto das forças
políticas em disputa, em particular o Partido dos Trabalhadores.
Acompanhando o movimento geral de deslocamento à direita, o PT aos
poucos foi abandonando o seu programa original, depurando-o de seus
aspectos claramente socialistas e se assumiu definitivamente como um
partido social-democrata na periferia do capitalismo. Vitórias
eleitorais sucessivas, em municípios e estados, com ampliação do número
de prefeitos, governadores (cargos a serem preenchidos) e parlamentares
(com muitos assessores) em todos os níveis, e com um processo de
institucionalização e burocratização cada vez maior, a frente de luta
institucional-parlamentar se agigantou,
deslocando para segundo plano a ampliação, educação, organização
e mobilização política cotidiana das bases sociais tradicionais do
partido. A ocupação da presidência da República, pela sua
liderança maior, aprofundou esse processo e impulsionou mais ainda
esse redirecionamento do partido, que se refletiu inclusive no perfil
de seus novos integrantes.
Essa prioridade quase que absoluta da frente de luta
institucional-parlamentar cobrou o seu preço, manifestado dramaticamente
na incapacidade da esquerda em geral, e do PT em particular, em se
contrapor ao processo que levou ao golpe. As grandes mobilizações de
massa (da classe média) no período foram feitas pelas forças de direita
insufladas decisivamente pela mídia corporativa e fazendo uso das redes
sociais. As mobilizações contra o golpe, além de claramente menores,
alcançaram, fundamentalmente,
segmentos sociais minoritários de classe média e de trabalhadores
organizados em sindicatos fragilizados e burocratizados. As grandes
massas populares das periferias urbanas, cada vez mais influenciadas
politicamente pelas igrejas evangélicas (o maior partido de direita
do país), ficaram majoritariamente à margem do processo – numa
atitude de indiferença – ou tomaram posição a favor do golpe, no
caso de seus segmentos mais integrados organicamente a essas igrejas.
Por sua vez, as tendências políticas e organizações e paartidos à
esquerda do PT não apresentaram robustez e amplitude suficiente para
dirigir as forças democráticas e socialistas; na verdade, cumpriram um
papel importante de puxar o movimento contra o golpe para as ruas e
ações mais combativas, mas um papel coadjuvante e mais localizado em
determinados segmentos de trabalhadores. O destaque nesse subcampo da
esquerda é, sem dúvida, o MTST e sua liderança maior: Guilherme Boulos.
Adicionalmente, algumas de suas tendências e organizações não se
mobilizaram contra o Golpe, ou se mobilizaram muito tardiamente,
influenciadas por uma interpretação equivocada de que “ser contra o impeachment
era ser a favor do governo Dilma e de sua política de ajuste fiscal”.
Uma concepção que se reiterou na questão do “Lula Livre”; que não
percebe que, em ambos os casos, a questão central é a da defesa da
democracia e da esquerda em geral, e não o apoio político a Dilma, a
Lula ou ao programa do PT.
– Situação
atual e perspectivas
A obra
neoliberal-neofascista, realizada até aqui, é impressionante pelas
mudanças profundas que foram efetivadas na estrutura institucional e
econômico-social da sociedade brasileira – em um espaço de tempo
muito curto. A reversão dessa nova situação é dificílima e se
ocorrer só acontecerá no longo prazo, com a existência de uma
correlação de forças bem distinta da atual. E, para isso, é
crucial o convencimento majoritário da esquerda, e de suas direções,
de que o capitalismo dependente em geral, e o brasileiro
especificamente, jamais poderá ter vida própria, descolada do
imperialismo. A burguesia cosmopolita, fração hegemônica das
classes dominantes, está atada historicamente, e atrelou o país, ao
imperialismo; daí não sairá nenhum projeto nacional de
desenvolvimento capitalista soberano – articulado ou não com o
Estado.
Do ponto de vista
conjuntural, no entanto, o ambiente está se alterando, tornando-se
mais favorável às forças político-sociais democráticas e de
esquerda. O governo Bolsonaro, embora ainda promovendo ataques de
vários tipos e em várias áreas, vem sofrendo um desgaste acelerado
(detectado em todas as pesquisas de opinião), tanto no âmbito
interno quanto internacionalmente; além de sofrer, juntamente com as
forças de extrema-direita que o apoiam, derrotas importantes.
No plano
internacional, o seu isolamento político é evidente e cada vez
maior nas mais diversas áreas: no meio ambiente, direitos humanos,
cultura e situações específicas como apoio à política de Israel
no oriente médio e o embargo a Cuba patrocinado pelos Estados
Unidos. O seu caráter neofascista está registrado, e rejeitado,
mundialmente, assim como o da figura ridícula e caricata que hoje
dirige o Itamaraty. Na América Latina, apesar do Golpe de Estado
executado na Bolívia (após mais uma vitória de Evo Morales) e da
vitória da direita no Uruguai (praticamente um empate), a reação
ao neoliberalismo e sua políticas vem se difundindo rapidamente:
revoltas no Haiti e em Honduras, e grandes movimentos políticos e
protestos de ruas no Chile, no Equador e na Colômbia (com vitórias
importantes nas eleições municipais), além da derrota eleitoral da
direita na Argentina no primeiro turno.
Internamente, assiste-se a um processo agressivo de confronto no
interior das forças de direita e extrema-direita, em especial a
autofagia do bolsonarismo e o afastamento de vários segmentos de
apoiadores; o desmascaramento e a defensiva de Sérgio Moro e da Lava
Jato, assim como revelação da politização de parcelas do Ministério
Público a ela associadas; derrotas jurídicas importantes no STF, como a
derrubada da possibilidade de prisão após condenação em segunda
instância, que implicou a soltura do ex-presidente Lula; a instalação da
CPI das Fake News, ampliando a percepção de fraude eleitoral na vitória
de Bolsonaro; a rejeição do programa proposto pelo MEC para as
Universidades Públicas Federais (o Future-se), que foi amplamente
criticado e denunciado pela comunidade universitária; e várias
derrotas no parlamento (derrubadas de vetos de Bolsonaro), com
destaque para a aprovação da lei contra o abuso de autoridade.
O discurso
neoliberal de “consertar a economia” e voltar a crescer, gerar
empregos e melhorar o bem-estar, bem como a ladainha do “combate à
corrupção”, vai se desmoralizando rapidamente, inclusive entre
apoiadores do golpe. E a razão disso está, de um lado, na
dificuldade de retomada da economia, afetada negativamente pelas
reformas e políticas econômicas implementadas por Temer e Bolsonaro
e, de outro, nos vínculos cada vez mais explícitos entre a família
Bolsonaro e o crime organizado no Rio de Janeiro, em particular as
chamadas “milícias” (incluindo suspeitas da implicação da
família Bolsonaro com o assassinato da vereadora Marielle Franco e o
seu motorista).
Nesses 11 meses de governo, a “arquitetura da destruição” do governo
Bolsonaro encontrou limites importantes, que não têm sido destacados com
a devida ênfase. E esse é um problema que a maioria da esquerda ainda
não percebeu; não consegue valorizar vitórias parciais e freios que
foram impostos ao governo: as greves e manifestações contra a reforma da
previdência fizeram recuar o projeto original, retirando a
capitalização, mantendo a aposentadoria rural e o Beneficio de
Prestação Continuada, por exemplo. As mobilizações de rua na área
de educação (maio, agosto e setembro) na luta contra os cortes de
recursos e perseguição às universidades federais, revitalizaram o
movimento estudantil, implicando na rejeição do Future-se
(tentativa de desobrigar o Estado com o financiamento público do
ensino superior e pôr fim à autonomia universitária) pela a
maioria das universidades (as maiores) – que abrigam 82% dos
estudantes matriculados – e na suspensão do contingenciamento e
bloqueio de recursos.
Os movimentos
indígenas e de quilombolas, apesar da violência e de assassinatos
de lideranças, têm se enfrentado com o garimpo e os fazendeiros,
impondo recuos. A luta dos petroleiros contra a privatização da
Petrobrás, demissões em massa e o fechamento de sua unidade na
Bahia, inclusive com manifestações e greve que unificaram
terceirizados e empregados da Petrobrás, tem sensibilizado a
sociedade, apesar da repressão e decisão do TST para inibir o
movimento. As frentes parlamentares que foram formadas em defesa do
conhecimento e do serviço público, com a realização de audiências
públicas, têm denunciado e construído propostas alternativas a
essa destruição.
Mais recentemente a
libertação de Lula que até pouco tempo, parecia que iria morrer na
prisão, expressa o desarranjo das forças reacionárias e de
extrema-direita no país, motivado, em grande parte pelas revelações
do The Intercept Brasil junto com setores importantes da
imprensa, que influenciaram o STF, causando fissuras importantes no
seu interior.
Entretanto, o
discurso da esquerda em geral sobre a conjuntura política no país,
especialmente aquela mais organizada em sindicatos, movimentos e
partidos, expressa um sentimento de absoluta derrota, de um
abatimento desmobilizador que tem, nas redes sociais, o meio mais
eficaz de repercutir quase que exclusivamente os ataques do governo e
as barbaridades ditas e tuitadas pelos seus membros, menosprezando os
recuos, vacilações e o adiamento de reformas, a exemplo da do
funcionalismo público. A repercussão da entrevista de Paulo Guedes
à Folha de São Paulo é um exemplo dessa postura. O destaque
ficou por conta da ameaça com o AI-5, no melhor estilo bolsonarista;
entretanto, ele deixou evidenciado que por trás da ameaça está o
medo da contaminação do Brasil pelas revoltas populares na América
Latina, bem como do papel do Lula em liberdade – que tem conclamado
o povo a ir para as ruas.
É possível que as
revoltas e manifestações populares dos países da América Latina
contaminem o Brasil? O que estimulou as explosões populares
recentes, especialmente no Equador, Chile e Colômbia, assim como a
vitória eleitoral na Argentina, foi o fundamentalismo neoliberal,
que tem levado amplos segmentos da sociedade a uma situação de
empobrecimento e violenta precarização do trabalho e da vida:
desemprego, ausência de políticas sociais, privatização de bens
coletivos e serviços públicos, aumentos de tarifas e impostos de
bens de primeira necessidade (energia, água, combustíveis,
transportes etc); implicando um processo de concentração da
propriedade e da renda inéditos em sua história.
Desse modo, com as singularidades históricas, políticas, econômicas e
sociais de cada país, há um fio condutor comum que tem gerado as
revoltas. Ele está nas condições materiais de vida da sociedade, que é a
base real das disputas entre as classes sociais. É nesse campo que as
forças democráticas e de esquerda podem se reorganizar e construir um
novo projeto de sociedade alternativo – não só ao fundamentalismo
neoliberal e ao fascismo, mas ao próprio capitalismo, que já não
consegue se descolar das formas mais
autoritárias e antidemocráticas de governo.
Essa perspectiva de
longo prazo, portanto, uma vez admitida, orientaria a ação política
conjuntural da esquerda socialista – que tem o desafio de enfrentar
ao mesmo tempo um movimento e um governo que fundiram politicamente
neofascismo e ultra-neoliberalismo. Embora haja alguns segmentos
políticos neoliberais que apoiaram o Golpe e a eleição de Jair
Bolsonaro, mas que hoje têm dificuldades com a agenda
político-ideológica-cultural do neofascismo e que, por isso, podem
se incorporar à luta democrática contra o neofascismo, as
evidências de sustentação desse Governo pelo capital financeiro
não deixam dúvida: hoje, a luta contra o neofascismo é,
concomitantemente, a luta contra o neoliberalismo; mesmo que,
eventualmente, a derrota do primeiro não implique necessariamente a
derrota definitiva imediata do segundo. Por isso, é urgente a
constituição de uma frente de esquerda democrático-popular, nas
ruas e no parlamento, que dê o norte à luta democrática,
antineoliberal e anti-imperialista.
O “liberalismo
brasileiro”, fundado ainda no período da escravidão –
constituindo-se em uma “ideia fora de lugar” na periferia do
capitalismo, já demonstrou suficientemente, ao longo da história, o
seu oportunismo político, inconsistência e fragilidade – ao
apoiar, ou na melhor das hipóteses aceitar passivamente, inúmeras
vezes, reiteradas tentativas de rupturas ou rupturas efetivas do
Estado Democrático de Direito. Agora, mais uma vez, não se pode
esperar dele um combate consequente contra o neofascismo em defesa do
Estado de Direito; a expressão mais clara disso tem sido o
comportamento da grande mídia corporativa e do STF, apoiadores em
primeira hora do Golpe e da eleição de Bolsonaro e, agora, mesmo
com todas as agressões que vêm sofrendo, sistematicamente
coniventes e vacilantes em combater o movimento e o Governo
neofascistas.
Os supostos liberais brasileiros, defensores e apoiadores das
reformas neoliberais, que esse governo lhes propiciou, têm um medo
pavoroso do povo e da esquerda, considerados o seu inimigo de classe.
Por isso, e sem negar a possibilidade de, eventualmente, marchar junto
com esse liberalismo (retórico e de fachada) na defesa da democracia, a
frente de esquerda democrático-popular precisa construir o seu caminho
independente, sem abrir mão da luta contra o neoliberalismo e o
imperialismo. E, o mais importante, não pode subordinar o combate ao
neofascismo a cálculos eleitorais (embora isso também seja importante),
do tipo “sangrar Bolsonaro” para derrotá-lo nas eleições 2022. A fraude
que elegeu Bolsonaro-Mourão é cada vez mais evidente, assim como, do
ponto de vista jurídico, podem ser identificados inúmeros crimes de
responsabilidade e de falta decoro já cometidos por Bolsonaro e outros
integrantes
desse Governo. O “fora Bolsonaro” não pode esperar até as
próximas eleições; a continuação da destruição medonha que vem
sendo realizada pelo Governo Neofascista-Neoliberal tem que ser
estancada, o mais rapidamente possível.
Fonte Outras Palavras