Projeto que privatiza saneamento avançou silencioso no Senado. Represas e rios poderão cair em mãos de transnacionais como Nestlé e Coca Cola, que já controlam fontes em todo mundo. Foi assim com minérios, hidrelétricas, telefonia…
Por Paulo Kliass
Tem gente que chama esse tipo de situação de coincidência. Outras
pessoas, mais sofisticadas, apelam para Carl Jung e falam em
sincronicidade. Enfim, o fato que nos interessa reter no momento é que
quase nada acontece por acaso. Ainda mais nesses tempos difíceis do
bolsonarismo e da noite de trevas do neoliberalismo em que as forças do
conservadorismo pretendem nos enfiar.
Pois então, parte da agenda política da semana passada pode ser lida
por essa ótica. Enquanto o Itamaraty de Ernesto Araújo comandava uma
triste operação de descrédito e inviabilização de avanços necessários na
reunião da COP 25, os tucanos e seus aliados articulavam no Congresso
Nacional um movimento que pode provocar um retrocesso secular em termos
de um bem essencial também para o futuro do planeta.
A postura da diplomacia brasileira na Conferência do Clima da ONU em
Madrid foi lamentável. Promoveram alianças com os setores que mais
dificultam a busca de consensos para o cumprimento dos acordos para
redução dos efeitos da poluição, do desmatamento e de outras ações sobre
o processo de aquecimento global. As consequências dessa postura
irresponsável para o futuro da humanidade são trágicas.
Estudos e pesquisas comprovam que alguns dos problemas associados a
esse processo descontrolado de comprometimento do meio ambiente são os
eventos climáticos extremos no plano global. Em particular, os períodos
de grande seca e estiagem, onde a falta de chuvas pode aprofundar ainda
mais a ausência de água para uso humano no planeta.
Tucanos em prol da privatização
Pois enquanto os representantes da diplomacia bolsonarista nos faziam
passar vergonha e isolamento no plano internacional, aqui no Congresso
Nacional seguia a passos rápidos a tramitação de um Projeto de Lei de
autoria do Senador Tasso Jereissati PSDB/CE). Trata-se do PL 3.261/2019,
que foi votado rapidamente na casa comandada por David Alcolumbre
(DEM/AP). O projeto promove uma mudança profunda no sistema brasileiro
de água e esgotos. Tanto que recebeu o apelido de “marco regulatório do
saneamento”.
Essa aliança entre os membros do antigo PFL e os tucanos conseguiu a
impressionante marca de promover a aprovação de um documento tão
complexo como esse em apenas uma semana no Senado Federal. Ele foi
apresentado pelo autor em 30 de maio e aprovado de forma definitiva em
06 de junho. Uma loucura. O projeto passou como um bólido pela comissão
de infraestrutura e foi aprovado pelo plenário em ritmo de urgência.
Na sequência, o texto foi encaminhado à Câmara dos Deputados, também
presidida por um parlamentar do Democratas. Mas a condução de Rodrigo
Maia não foi inspirada na rapidez de seu par no Senado. O Presidente da
Câmara constituiu uma Comissão Especial para tratar da matéria em
agosto. Foram realizadas diversas audiências públicas para debater o
tema e outros projetos já existentes foram apensados ao texto de
Jereissati. Porém, a atenção acabou recaindo ao longo do ano para os
assuntos mais urgentes, a exemplo da Reforma da Previdência, Reforma
Tributária e Reforma Administrativa.
Com isso, o PL foi avançando sem muito alarde e a primeira votação no
plenário da Câmara acabou ocorrendo a toque de caixa no dia 11 de
dezembro. Naquela sessão foi aprovado o texto-base, mas ainda estão
pendentes de apreciação e votação as emendas apresentadas pelos
deputados. A estratégia para angariar apoios nas diferentes bancadas
conta com a pressão dos próprios governadores da oposição. A exemplo do
ocorrido com temas como as reformas da previdência e administrativa,
parte dos chefes de executivo estadual contam com a aprovação das mesmas
pelo Congresso Nacional para implementar essas ações nos seus espaços
de atuação.
Marco regulatório ou todo poder ao capital?
A espinha dorsal do novo marco regulatório passa pelo aproveitamento
da já existente Agência Nacional de Águas (ANA) e com a intenção de
ampliar seu escopo de atribuições. Assim, ela se transforma em Agência
Nacional de Águas e Saneamento Básico, com a competência para instituir
normas de referência para a regulação dos serviços públicos de
saneamento básico.
Além disso, o texto abre espaço para estimular a privatização das empresas públicas ou estatais de saneamento já existentes pelo país. Por outro lado, o novo ordenamento jurídico cria as bases para a transformação dos serviços de saneamento público em mais uma mercadoria a ser comercializada pelas empresas privadas. No caso, caberia à agência reguladora as funções de determinação de preços e condições de operação nesse mercado.
Apesar do discurso pró-liberalização e contra a presença do Estado no
setor, o fato concreto é que as condições técnicas e operacionais no
sistema não admitem a possibilidade da tão abençoada “livre
concorrência”, como tanto perseguem os liberais. Imagine o
cidadã/consumidor decidindo qual das torneiras da cozinha ele vai abrir
em determinado dia para obter a menor tarifa de água. Ou então, por qual
dos canos de esgoto ele vai lançar seus dejetos para a rede de
saneamento, também para “maximizar” seus interesses econômicos.
O modelo das agências reguladoras e a forma como têm sido conduzidas
desde sua criação tornam evidentes os verdadeiros interesses por trás do
discurso de concorrência e eficiência. Os cidadãos e consumidores
sempre foram deixados para trás no que se refere a prioridades nas
respectivas agendas. Banco Central, ANEEL, ANATEL, ANS, ANVISA, ANAC e
outras agências converteram-se em fiéis defensoras dos interesses das
empresas que atuam nos setores que elas deveriam regular. Preços,
qualidade dos serviços, defesa dos consumidores e temas semelhantes são
sistematicamente esquecidos.
Ora, todos sabemos que esse blábláblá é mera fantasia idealizada para
justificar a transferência de mais esse ramo da atividade econômica
para a maximização da acumulação de capital privado. Não existe
concorrência possível nesse mercado. Trata-se de um modelo que só admite
o monopólio como ofertante do bem. Cabe à sociedade decidir se prefere
uma empresa pública ou privada.
Tampouco é mera casualidade que essa mudança no marco regulatório
ocorra no momento em que os grandes conglomerados internacionais do
setor estejam se reposicionando estrategicamente. Nestle e Coca Cola,
por exemplo, começam a se preparar para o domínio de fontes de água por
todos os continentes. Isso significa que o processo de mercantilização
de mais esse bem da natureza avança rapidamente em escala global.
Água é fator estratégico para Humanidade
A grande maioria dos estudos prospectivos realizados no mundo são
unânimes em apontar a água como bem essencial e cada vez ameaçado em sua
disponibilidade. Assim como ocorreu com o petróleo e outras fontes
energéticas no passado, a tendência no tempo presente é de considerar as
fontes de água como reservas estratégicas de sobrevivência das nações.
Fala-se inclusive que ela (ou melhor, a ausência dela) pode converter-se
em elemento detonador de conflitos bélicos regionais.
E nessa matéria, o Brasil apresenta uma posição também de destaque.
Temos uma costa oceânica de milhares de quilômetros. Apresentamos uma
rede fluvial das mais importantes do planeta, com bacias estratégicas
como a amazônica. Nosso território está localizado sobre uma das mais
importantes reservas de água subterrânea, o Aquífero Guarani.
Os dirigentes dos grandes negócios em escala global não se cansam de
pressionar governos para que as fontes de água também sejam submetidas a
processo de liberalização e privatização. Não nos esqueçamos de que
nosso subsolo foi entregue à exploração privada, depois de décadas de
propriedade e monopólio de exploração pela União. Assim foi com minérios
e petróleo. A exploração da energia também seguiu o mesmo caminho.
Agora, a fonte de maior valor estratégico no futuro é a água.
Essa é a razão pela intensa movimentação nos últimos tempos. O
interesse é um só. Trata-se da busca pela apropriação privada dos
rendimentos derivados do consumo da água. Cabe às forças democráticas e
progressistas em nosso País exercer seu papel e impedir que esse caminho
da privatização seja viabilizado por meio desse marco regulatório
desvirtuado.