A pressão para privatização da água é muito forte, conta com organizações financiadas pelos grandes grupos interessados, especialmente do setor de alimentos e bebidas e com cobertura do Banco Mundial. Os defensores da ́privatização têm um discurso sinuoso, como se não quisessem de fato, aquilo com o que sonham noite e dia. Sabe-se que a Coca-Cola disputa água no mundo todo e certamente não o faz por razões humanitárias.
O problema da falta de água, que é diagnosticado em várias partes
do mundo, afeta sempre a sociedade de forma diferenciada. Como todo
direito básico existente, quem enfrenta dificuldades no acesso a
água são sempre os mais pobres, o que ocorre tanto nos países
imperialistas centrais, quanto nos subdesenvolvidos. Os EUA e a
Europa também enfrentam grandes problemas de falta de água, a
maioria dos rios dos EUA e do Velho Continente estão contaminados.
No caso dos EUA, o próprio desenvolvimento recente da indústria
extrativa de gás de xisto contribui para a contaminação dos
lençóis de água.
Esse importante debate ganhou um novo capítulo no Brasil, com a
aprovação, nesta quarta-feira (11/12) do projeto de lei do saneamento
básico (PL 4162/19, do Poder Executivo), que trata da Política Federal
de Saneamento Básico e cria o Comitê Interministerial de Saneamento
Básico. Dentre outros tópicos, a lei prevê a abertura da concessão do
serviço de água e esgoto para empresas privadas. É que estão chamando de
novo marco legal do Saneamento. O projeto, dentre outros, define o
prazo de um ano para empresas estatais de água e esgoto anteciparem a
renovação de contratos com municípios. Nesse período as estatais de água
e esgoto poderão renovar os chamados “contratos de programa”, acertados
sem licitação com os municípios. Segundo o relator do projeto, o
objetivo dessa última medida é possibilitar que as empresas tenham uma
valorização dos ativos e possam ser privatizadas por um valor mais alto.
Os destaques tentados pela oposição, que visavam aliviar um pouco o
projeto, foram todos rejeitados. Os defensores do projeto têm
perspectivas de sancioná-lo rapidamente, talvez ainda em dezembro.
O senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), autor do projeto, qualificou de
“corporativistas”, ao longo da tramitação no Parlamento, os
parlamentares que se posicionaram contra o texto. Classificado
recentemente, por um outro parlamentar, como o “senador Coca-Cola”,
Jereissati é, direta e financeiramente, interessado na privatização dos
serviços de água e saneamento no Brasil. Seu patrimônio é estimado em R$
400 milhões (informações de 2014). É um dos sócios do Grupo Jereissati,
que comanda a Calila Participações, única acionista brasileira da
Solar. Esta última empresa é uma das 20 maiores fabricantes de Coca-Cola
do mundo e emprega 12 mil trabalhadores, em 13 fábricas e 36 centros de
distribuição.
Na prática o novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, autoriza a
privatização dos serviços de saneamento no país (não nos enganemos: esse
é o objetivo principal). O item mais polêmico do projeto é a vedação
aos chamados “contratos de programa”, que são firmados entre estados e
municípios para prestação dos serviços de saneamento. Os referidos
contratos atualmente não exigem licitação, já que o contratado não é uma
empresa privada. É evidente que, se não houver os contratos de
programa, a maioria dos municípios terá que contratar serviços privados,
pois não dispõem de estruturas nos municípios para desenvolver
atividades de saneamento. É muito evidente que o projeto visa conduzir
os municípios a contratarem empresas privadas.
Esta lei poderá quebrar as estatais de saneamento, o que abriria as
portas para a privatização da água. Água é a matéria-prima mais cara
para a produção de bebidas em geral. Para cada litro de bebida
produzido, por exemplo, a Ambev declara usar 2,94 litros de água. Não
existe nenhuma transparência nas informações divulgadas, mas ao que se
sabe, as empresas de alimentos e bebidas contam com uma condição
privilegiada no fornecimento de água e esgoto. Obtendo, por exemplo,
descontos. No entanto, foram essas mesmas empresas que estiveram à
frente da tentativa de aprovar o novo marco regulatório, possivelmente
porque avaliam que, com o setor privatizado, pagarão ainda menos pelos
serviços.
Tudo indica que os golpes desferidos na América Latina, com a
coordenação geral dos EUA, têm também como favor motivador, os
mananciais de água na Região. Em 2016, logo após o golpe no Brasil, o
governo dos Estados Unidos iniciou negociação com o governo Macri sobre a
instalação de bases militares na Argentina, uma em Ushuaia (Terra do
Fogo) e outra localizada na Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil e
Paraguai). Um dos objetivos na instalação destas bases, tudo indica, foi
o Aquífero Guarani, maior reserva subterrânea de água doce do mundo. O
Aquífero, localizado na parte sul da América do Sul (Brasil, Argentina,
Uruguai e Paraguai) coloca a região como detentora de 47% das reservas
superficiais e subterrâneas de água do mundo. Os EUA sabem que não há
nação que consiga manter-se dominante sem água potável em abundância,
por isso seu interesse em intensificar o domínio político e militar na
região, além do acesso à água existente em abundância no Canadá,
garantida por acordos como o do NAFTA (Acordo de Livre Comércio da
América do Norte, entre EUA, Canadá e México).
No começo de 2018, o “insuspeito” Michel Temer encontrou-se com o
presidente da Nestlé, Paul Bucke, para uma conversa reservada. Não é
preciso ser muito sagaz para concluir que o tema da conversa foi um
pouco além de amenidades. Alguns meses depois, o governo Temer enviou ao
Congresso uma Medida Provisória 844, que forçava os municípios a
conceder os serviços, medida que não foi aprovada. No último dia de
mandato, Temer editou a MP 868, que tratava basicamente do mesmo
assunto. Em março deste ano, Tasso Jereissati foi nomeado relator.
Quando a MP 868 perdeu validade no começo de março, o senador Tasso
encaminhou o Projeto de Lei 3261, de 2019, que basicamente retomou o que
constava da medida provisória. A proposta foi aprovada em comissão e
plenário em tempo recorde, e rapidamente chegou à Câmara (o que
demonstra a existência de forças muito poderosas por detrás do projeto).
A pressão para privatização da água é muito forte, conta com
organizações financiadas pelos grandes grupos interessados,
especialmente do setor de alimentos e bebidas e com cobertura do Banco
Mundial. Os defensores da ́privatização têm um discurso sinuoso, como se
não quisessem de fato, aquilo com o que sonham noite e dia. Sabe-se que
a Coca-Cola disputa água no mundo todo e certamente não o faz por
razões humanitárias. Uma unidade da empresa é acusada de ter secado as
nascentes em Itabirito, na região metropolitana de Belo Horizonte. A
fábrica, segundo as organizações de defesa do meio ambiente, secou
nascentes dos rios Paraopeba e das Velhas – responsáveis por quase toda o
abastecimento de água de Belo Horizonte. A Coca-Cola, claro, nega que a
unidade esteja provocando falta de água na região e afirma que possui
todas as licenças para funcionamento.
Em todo o mundo, diversos casos envolvem a Coca-Cola com privatização
e controle sobre águas. Há relatos de que no México, regiões inteiras
ficam sob “estresse hídrico” por causa de fábricas da empresa, que
inclusive contam com água subsidiada. Existem cidades no México em que
os bairros mais pobres dispõem de água corrente apenas em alguns
momentos, em determinados dias da semana, obrigando a população comprar
água extra. O resultado é que, em determinados lugares, os moradores
tomam Coca-Cola, ao invés de água, por ser aquela mais fácil de
conseguir, além do preço ser praticamente o mesmo. Há moradores destes
locais que consomem 2 litros de refrigerante por dia, com consequências
inevitáveis para a saúde pública.
Sobre o projeto de privatização das fontes de água no Brasil quase
não se ouve posições contrárias. Estas são devidamente abafadas pelo
monopólio da mídia. Exceto nos sites especializados e independentes. É
que na área atuam interesses muito poderosos, com grande influência no
Congresso Nacional, nos governos, nas associações de classes,
empresariado, universidades. Os encontros realizados para discutir o
assunto são patrocinados por gigantes como Ambev, Coca-Cola, Nestlé, que
têm interesses completamente antagônicos aos da maioria da sociedade.
Essas empresas investem uma parcela de seus lucros com propaganda,
vinculando suas imagens a temas como sustentabilidade ambiental e
iniciativas sociais, de acesso à água, e outras imposturas. Apesar de
tudo isso ser jogo de cena para salvar suas peles e exuberantes lucros,
enganam muitos incautos.
Apesar de extremamente importante, não é muito conhecido no Brasil o
episódio intitulado “A guerra da água da Bolívia”, ou “Guerra da água de
Cochabamba”. Os grandes grupos de mídia que dominam a informação, a
maioria ligados aos interesses do imperialismo, por razões óbvias,
escondem o acontecimento. Entre janeiro e abril de 2000, ocorreu uma
grande revolta popular em Cochabamba, a terceira maior cidade do país,
contra a privatização do sistema municipal de gestão da água, depois que
as tarifas cobradas pela empresa Aguas del Tunari (por “coincidência”,
pertencente ao grupo norte-americano Bechtel) dobraram de preço. É fácil
imaginar o que isso pode significar, em termos de qualidade de vida,
para uma população extremamente pobre.
Em 8 de abril de 2000, Hugo Banzer, general e político de extrema
direita que tinha assumido o governo da Bolívia através de um golpe de
Estado, declarou estado de sítio. A repressão correu solta e a maioria
dos líderes do movimento foram presos. Mas a população não recuou e
continuou se manifestando vigorosamente, apesar da grande repressão. Em
20 de abril de 2000, com o governo percebendo que o povo não iria ceder,
o general desistiu da privatização e anulou o contrato vendilhão de
concessão de serviço público, firmado com a Bechtel. A intenção do
governo era celebrar um contrato que iria vigorar por quarenta anos.
Graças à mobilização da população, a Lei 2.029, que previa a
privatização das águas do país, foi revogada.
Fonte Outras Palavras