O analista de política internacional Marcelo Zero afirma que não há como
não relacionar o discurso recente de Mike Pompeo com as declarações
sobre AI-5 ou os projetos de GLO. "O conjunto de sinais emitidos,
coordenadamente, aqui e nos EUA, aponta inequivocamente para uma
direção: os EUA apoiarão a repressão de Bolsonaro contra eventuais
manifestações e, sobretudo, trabalharão para prender Lula de novo"
Por Marcelo Zero, sociólogo, especialista em Relações Internacionais
e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)
Não há dúvida de que há uma crise mais ou menos generalizada dos sistemas democráticos no mundo.
A causa última e fundamental dessa crise tange à crescente
desigualdade social, à erosão do Estado de Bem-Estar e à falta de
geração de empregos de qualidade, ocasionadas pelas políticas
neoliberais e de austeridade, combinadas com uma crise econômica que não
dá mostras de ser efetivamente superada.
A eleição de Trump e de outros líderes do chamado “populismo de
direita”, o Brexit, a ascensão de forças de extrema direita e uma
insatisfação generalizada com os partidos e as instituições democráticas
são sintomas claros dessa crise política e democrática.
Na América Latina, os principais sintomas dessa crise são uma extrema
instabilidade política, a eclosão de revoltas populares de grande
magnitude, como as que ocorreram e ocorrem no Chile, no Equador e na
Colômbia, e, sobretudo, o retorno do golpismo.
Desde 2009, ocorreram golpes de Estado, “brancos” ou não tão brancos,
em Honduras, no Paraguai, no Brasil e, recentemente, na Bolívia. Nesse
último caso, a deposição do presidente eleito deu-se pela ação violenta
de milícias paramilitares e religiosas.
Assim, a nossa região voltou a ser sinônimo de democracias frágeis ou de fachada e de republiquetas de bananas.
Por conseguinte, aqui a crise democrática é bem mais grave.
Há dois fatores básicos que explicam essa gravidade maior. O primeiro
e mais óbvio deles tange à fragilidade dos sistemas democráticos da
região e à falta de enraizamento histórico e social das democracias.
Conforme já observei em outro artigo, a característica principal das
oligarquias brasileiras e latino-americanas de um modo geral é sua falta
de compromisso real com a democracia e sua incapacidade de conviver com
processos significativos de distribuição de renda, de combate à
pobreza, e de ascensão social e política das camadas da população
historicamente excluídas dos benefícios do desenvolvimento.
Sempre houve aqui uma espécie de demofobia, o medo à perda de
controle político das grandes massas pauperizadas. Perón, Getúlio (em
seu segundo governo), João Goulart, Chávez, Correa, Lugo, Kirchner,
Lula, Evo Morales etc. provocaram esse medo e esse ódio, sem nunca terem
chegado sequer a se aproximar do socialismo, muito menos do comunismo.
Mas há outro fator, menos óbvio, que também acarretou instabilidade
política à região e comprometeu o desenvolvimento e o enraizamento de
suas democracias.
Trata-se da constante ingerência política dos EUA, que sempre
apoiaram o golpismo na região e sempre combateram os regimes
progressistas que aqui se instalaram.
Segundo estudo publicado na Harvard Review of Latin America,
em 2005, menciona-se que, apenas entre 1898 e 1994, os EUA conseguiram
êxito em mudar governos da região 41 vezes, o que dá uma média de uma
mudança de governo a cada 28 meses. Ressalte-se que, nesse estudo
publicado na Universidade de Harvard, não se analisa as possíveis
intervenções recentes, como as ocorridas em Honduras (2009), Paraguai
(2012), Brasil (2016) e na Bolívia (2019).
As evidências históricas dessa constante intervenção são, portanto,
avassaladoras. Mas, para quem ainda tinha alguma dúvida, as últimas
declarações de Mike Pompeo, Secretário de Estado dos EUA, nos parecem
definidoras.
Pompeo fez um discurso, nesta última segunda-feira, na Universidade
de Louisville, Kentucky, no qual afirmou que os EUA ajudarão os
“governos legítimos” da América Latina a impedir que os protestos em
seus países se tornem “revoltas”, isto é, resultem em mudanças de
regime. Pompeo também aproveitou para negar que essas manifestações, que
ocorrem sobretudo no Chile, no Equador, na Colômbia e na Bolívia contra
governos neoliberais ou contra governos golpistas reflitam "a vontade
democrática do povo". Segundo ele, tais manifestações foram
“sequestradas” por governos como os de Cuba e o da Venezuela e,
portanto, não seriam “legítimas”.
Em seu tocante discurso, Pompeo se refere à América Latina como o quintal (backyard) dos EUA.
A ameaça é evidente. Os EUA intervirão ativamente para reprimir ou
coibir manifestações contra governos conservadores da região, que se
comprometeram com a implantação de políticas ultraneoliberais, as quais
são do interesse daquele país, e que se aliaram geoestrategicamente ao
grande irmão do Norte, em sua luta pelo poder mundial contra China e
Rússia.
Impossível não relacionar esse discurso público de Mike Pompeo às
recentes declarações do clã Bolsonaro e do próprio ministro da Economia
em prol do retorno do AI-5 e de um fechamento ainda maior do regime
político brasileiro. Também não dá para não relacionar o pronunciamento
de Pompeo com a proposta de exclusão de ilicitude, ou da licença para
matar, em linguagem clara, em casos de processos de GLO.
Parece-nos também impossível não estabelecer uma relação entre a
recente visita do conselheiro para Assuntos Políticos da Embaixada dos
EUA em Brasília, Willard Smith, com larga atuação na região, inclusive
na Venezuela, ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), alinhado
à Lava Jato, e o desejo compartilhado entre os governos de Trump e o de
Bolsonaro de voltar a neutralizar Lula.
Como se sabe, e como comprovado pela Vaza Jato, a Lava Jato foi uma
operação inspirada e conduzida, em sua estratégia básica, pelo
Departamento de Justiça do EUA. Dada à assimetria das relações
Brasil/EUA, a cooperação judiciária estabelecida entre os dois países
serviu de instrumento político para o golpe de Estado de 2016 e para a
implantação de uma lawfare contra o ex-presidente Lula. Assim, o combate
aparentemente neutro à corrupção em nível internacional pôde ser
facilmente desvirtuado para beneficiar apenas interesses geopolíticos
específicos.
Entretanto, a libertação de Lula, após um ano e sete meses de uma
prisão totalmente injusta, motivada por óbvia perseguição política,
solidamente confirmada pelas não desmentidas revelações da Vaza Jato,
têm levado compreensível paura às hostes da ultradireita e da direita do Brasil.
Afinal, Lula é a grande liderança popular do Brasil. Uma liderança
que, ao contrário de algumas, não foi construída pela mídia ou por
enxurradas de fake news. A liderança de Lula foi construída em muitas
décadas de lutas democráticas e populares, que se iniciaram na
resistência à ditadura militar.
Lula é, portanto, um perigo real para os que querem iludir a
população com a reimplantação de modelos fracassados e com políticas
antipopulares travestidas de inevitáveis escolhas técnicas. Sobretudo,
Lula solto é um perigo para os que querem manter o Brasil em alinhamento
sabujo aos EUA.
O próprio Steve Bannon, o líder da ultradireita mundial afirmou que
Lula é a grande liderança da “esquerda globalista” e provocará “grande
perturbação”.
Pois bem, o conjunto de sinais emitidos, coordenadamente, aqui e nos
EUA, aponta inequivocamente para uma direção: os EUA apoiarão a
repressão de Bolsonaro contra eventuais manifestações, atuarão, com seus
amplos meios informáticos, para coibi-las e controlá-las, darão suporte
a um eventual fechamento de regime e, sobretudo, trabalharão para
prender Lula de novo.
Em 1971, Nixon disse para Médici: “para onde o Brasil for, irá o resto da América Latina”.
Os EUA sabem que o Brasil é vital para o controle de toda a região.
Agora, que conseguiram colocar Bolsonaro, um aliado amoroso e
incondicional, não vão a ele renunciar sem resistência.
A pressão virá, até mesmo sobre o Senado e o STF.
O quintal arderá.
Fonte Brasil 247