"Eles querem colocar seus dedos podres no gerenciamento coletivo do sentido e do discurso, como já vêm colocando. Mas a força do desejo coletivo aliado a novas gerações com apetite irrefreável na disputa por criatividade e inovação, pode resultar, pela primeira vez, na derrota dessa doença chamada 'perpetuação dos modos de distribuição de poder'.", diz o linguista Gustavo Conde sobre a disputa pela hegemonia nas redes sociais
Por Gustavo Conde
A precarização da interpretação de texto nas redes sociais é
mito. Aqueles que não se adaptam à redes a criticam e a rebaixam, mas
são eles, precisamente, os detentores do protocolo de leitura obsoleta.
O que houve foi um "estilhaçamento" dos processos de interpretação
(que desmascarou os processos normativos de interpretação e produção de
textos, outrora detentores da hegemonia do discurso).
Os memes são prova disso: eles são os textos-imagens mais
sofisticados da história, hiper complexos, repletos de
intertextualidade; exigem profunda atenção e vivência leitora para serem
codificados.
Destaque-se que ‘vivência leitora’ é diferente de 'educação formal' - esta última atravessa uma crise sem precedentes.
Há um equívoco compreensível na interpretação do que seja o fenômeno da massificação do sentido nas redes sociais.
Não admira que a grande crítica elitista sobre a internet seja a
"precarização da interpretação de texto". Quem não sabe mais
interpretar, crítica a interpretação dos outros.
O fato é que a interpretação previsível das escolas formais e bem
comportadas perdeu espaço para a explosão das possibilidades leitoras
que foram aparecendo com o volume descomunal de interações por texto.
Essa nova ordem da interpretação ainda está desorganizada e assusta,
como tudo o que é novo. Mas ela faz a experiência do texto no século 20
parecer um tanto rudimentar.
O fenômeno é relativamente simples de explicar: trata-se de
massificação versus elitização. Um processo massificado de interações
humanas na produção de leituras possíveis de mundo dará origem
resultados muito mais sofisticados e avançados de interpretação. É assim
que funciona o cérebro humano: 80 bilhões de neurônios produzindo
interações entre si através de descargas bioelétricas. Esse volume
gigantesco possibilita a complexa experiência cognitiva que nos
diferencia das plantas e de alguns animais.
Para simplificar: o resultado final da nossa imensa atividade de
interação neuronal possibilita um indivíduo mais apto para solucionar
toda a sorte de desafios cognitivos, incluindo aí a interpretação de
texto.
Esse é o paralelo elementar com a massificação das interações digitais via usuários de rede.
A rigor, o efeito colateral tóxico decorrente dessa nova realidade de
interações humanas é justamente a não adequação e a não aceitação deste
protocolo como fonte possível de sentido.
O fascismo digital, o autoritarismo, a violência, o gesto insultuoso,
a ameaça, têm origem nos usuários de rede ainda acostumados com
protocolos totalitários e elitistas de interpretação de texto e de
mundo.
Quem “estraga” a internet são os leitores escolarizados e
domesticados nas formas hegemônicas e normativistas de interpretação de
texto, que agem sob a égide sufocante da propriedade intelectual. Eles
não sabem lidar com a liberdade, tampouco oferecerem trabalho
qualificado de leitura para girar a moenda da liberdade em construção
que caracteriza a manutenção da civilização e da democracia.
Pegue-se crianças e adolescentes que são nativos de rede digital:
eles estão cognitivamente anos-luz à frente de professores, pais e
educadores que ainda pensam analogicamente.
São mais rápidos, mais eficientes, mais qualificados e mais serenos
com relação a essa excrescência ideológica, herança direta das velharias
conceituais do século 20, o século caracterizado pelo nazismo e pela
guerra fria.
São eles que projetam e programam a maioria dos aplicativos que
usamos. São eles que estabelecem uma nova ordem de codificação textual,
auditiva e visual, atreladas às nossas necessidades sociais, mentais e
sensoriais.
É por isso que é tão difícil para a geração conservadora aceitar a
massificação do sentido via redes digitais. É um mundo que lhes é
hostil, que lhes veta as explicações facilitadas e tuteladas oriundas de
um discurso pré-fabricado e sustentado apenas pelo poder econômico e
por pautas moralistas (para não falar em religião).
Esse protocolo de interpretação de texto morreu e se recusa a sair de
cena. Daí, os retrocessos civilizatórios pelos quais o mundo inteiro
passa nesse momento: todos associados a preceitos morais obsoletos e a
projeções rasteiras de valor de verdade.
As redes digitais funcionam, portanto, como um grande cérebro
coletivo, mas que nasce com Alzheimer precoce em função da população de
“neurônios” ainda atrelada a princípios exclusivistas no gerenciamento
das descargas bioelétricas. São os neurônios-egoístas.
A doença pode vencer, é claro. Ainda mais porque, para sobreviver, um
cérebro precisa também de um coração para lhe bombear o sangue.
Isso significa que há um debate a ser feito sobre o controle das
redes sociais, sobre manipulação de dados no mercado financeiro e sobre a
criação de robôs no mercado da democracia.
Mas discutir o controle de todo e qualquer processo coletivo de
interação social é básico. Também precisamos discutir o controle das
televisões, o controle dos jornais, o controle dos parâmetros
educacionais etc.
Ressalto o tema correlato para contemplar os neurônios paranoicos que
entendem que tudo se resume a uma imensa e assustadora teoria da
conspiração: a culpa é do Zuckerberg.
O “neurônio” revoltado poupa seu trabalho terceirizando a culpa e o
Alzheimer social avança a passos largos, numa erupção cognitiva tóxica
que mistura ceticismo e fanatismo.
O que não deixa de ser curioso é que essa discussão sobre
interpretação de texto e redes sociais está diretamente associada à
ideia de democracia. É por isso que o sentido de ‘democracia’ também
está sendo fortemente disputado neste momento.
Estamos já em 2020 do calendário cristão, se não me engano. Um feito
chegarmos até aqui, dada a índole autoritária e assassina dos homens.
Meu raciocínio é: se chegamos até aqui, porque não irmos mais longe?
Esse “longe” seria aproveitar esse salto tecnológico que aflige
conservadores e paranoicos e produzir, pela primeira vez na história,
uma democracia real, inclusiva, amorosa e profundamente inteligente, que
corresponda aos desafios de se ter no planeta sete bilhões de pessoas.
Um mundo que extraia suas soluções do coletivo, não da cabeça
solitária da branquitude masculina e heteronormativa que controla a
experiência social do planeta desde os tempos imemoriais.
Eles querem colocar seus dedos podres no gerenciamento coletivo do
sentido e do discurso, como já vêm colocando. Mas a força do desejo
coletivo aliado a novas gerações com apetite irrefreável na disputa por
criatividade e inovação, pode resultar, pela primeira vez, na derrota
dessa doença chamada “perpetuação dos modos de distribuição de poder”.
Cada um tem a rede social que merece. Se a sua rede não vai bem ou se
sua experiência é um desastre, ou, ainda, se você não quer saber de
compartilhar seus valores e suas posições (porque as pessoas vão lá e te
“xingam”), devo dizer que você está na delicada posição de negar a si
mesmo (espero que não gaste o seu tempo vendo televisão ou lendo
passivamente os jornais convencionais).
Mas se suas redes vão bem (inclusive as não digitais), se você deixa
sua marca filosófica e social entre os seus, se você compartilha o teu
sentido e a tua visão de mundo, permita-me dar os parabéns.
Você está tentando construir um mundo melhor, assim como
parte importante da sociedade que se diz - e, verdadeiramente, é -
democrática.
Fonte Blog do Esmael