Na política não há vácuo duradouro, mas alguns dos piores desastres se produzem quando os sujeitos que já não cumprem seu antigo papel permanecem no antigo lugar, como fantasmas do que foram um dia.
Outras Palavras
Por Antonio Martins
Que o governo Bolsonaro é um raro amálgama
entre forças que por muito tempo estiveram em conflito, já sabíamos.
Nele convivem, por um lado, personagens precários e regredidos, como o
próprio presidente, seus filhos, Damares, Weintraub, o chanceler Araújo.
Por outro, figuras que expressam as elites financeiras, em punhos de
renda. Pense em Paulo Guedes; mas também nos dirigentes do Banco Itaú,
que lançam seguidos relatórios entusiasmados com o governo; ou em
economistas como Delfim Netto, que torcem para que contrarreformas
reduzam o poder dos trabalhadores e “modernizem” o país.
Já sabemos também que este arranjo esdrúxulo não
é uma particularidade brasileira. Veja o apoio de Davos a Trump;
a aliança explícita, na Espanha, entre o PP (de centro-direita), o
Ciudadanos (de direita “moderna”) e o Vox (abertamente fascista).
Ou repare na Itália, no esvaziamento da direita tradicional, que
migrou para a Lega de Matteo Salvini e seu assessor especial, Steven
Bannon. Sobre esta aliança, se falará adiante.
A
novidade, esta semana, é o surgimento de fatos que permitem
compreender, com clareza inédita, como estas duas forças – que
podemos chamar de “proto fascista” e “ultra capitalista”,
convivem, apoiam-se e se protegem mutuamente. Também ficou nítido
algo mais delicado. Os ataques desta aliança só são possíveis
porque ambos os sócios aproveitam-se de algo raro. A oposição de
esquerda desapareceu. Os partidos em que uma importante parcela da
população confiava,
para expressar
uma visão de mundo alternativa às de Bolsonaro ou Paulo Guedes,
deixaram de cumprir esta papel. Esta ausência restringe o campo da
política visível a
uma opção entre o péssimo e o intragável; e dá às duas facções
que compõem o governo espaço para nunca saírem da ofensiva; nunca
serem obrigadas a se confrontar com propostas contrárias às suas;
nunca terem de comparar suas visões de mundo a outras.
*
* *
Três acontecimentos dominaram a semana, e é por meio deles que
examinaremos o governo Bolsonaro e a ausência de oposição real a
ele. Um dos fatos polarizou o debate público, repercutindo inclusive
no exterior. Foi o pedido, por um procurador federal já conhecido
por seu partidarismo, de indiciamento do jornalista Glenn Greenwald,
por suposta colaboração com hackeamento. Ou dois outros fatos
tiveram impacto muito menor – mas são muito mais importantes.
Prosseguiu a operação que poderá transferir a Embraer – maior
empresa brasileira de alta tecnologia – para a Boeing, uma
corporação norte-americana que, por sua vez, enfrenta uma crise
aguda e pode até sucumbir. Enquanto isso, no Congresso Nacional,
avançava a chamada “PEC de Pacto Federativo”, uma proposta de
emenda constitucional que pode desobrigar os governos estaduais e
municiais de destinar um mínimo de verbas para a Saúde e Educação.
Se aprovada, ameaça liquidar tanto o SUS quanto o ensino público.
Mas nem este risco, nem a liquidação da Embraer, entraram no foco
da mídia e do debate público. Por que?
*
* *
Uma primeira
resposta está na articulação precisa entre as duas forças
principais que compõem o governo. Não se trata de conspiração,
mas de defesa recíproca e combinada de interesses distintos. Reveja
os lances, para compreender a dinâmica. A pauta proto fascista – a
tentativa de calar Glenn Greenwald e de restringir a liberdade de
imprensa – ganhou todas as manchetes, entre terça e quarta-feira.
Gerou dezenas de matérias, milhares de comentários nas rádios e
TVs, milhões de posts nas redes (anti-) sociais. Não produziu
maiores consequências: a causa não é popular, o promotor é
desqualificado, a repercussão internacional negativa fez com que o
próprio Bolsonaro se distanciasse do movimento infeliz, um dia
depois de alimentá-lo.
Mas a polarização
produzida serviu de fogo de barragem para que avançassem, à sombra,
sem debate algum, as agendas muito mais relevantes da banda ultra
capitalista do governo. Nesta semana, foi o caso da entrega da
Embraer e da emenda constitucional que devasta o SUS e o Ensino
Público. Ao longo de um ano de Bolsonaro, será possível encontrar
dezenas de casos em que o mesmo lance se repetiu. Pense, por exemplo,
para ficar em alguns casos recentes, na fala nazista do patético
Roberto Alvin; na associação, por Bolsonaro, de Leonardo di Caprio
às queimadas na Amazônia ou na nomeação, para a presidência da
Fundação Palmares, de Sérgio Camargo, que nega haver racismo no
Brasil. Sob o guarda-chuva de “controvérsias” como estas, o
governo promover uma segunda contrarreforma trabalhista, devastou a
Previdência pública, está dizimando a Petrobras, ameaça o BNDES,
apequenou o Banco do Brasil e a caixa, quer minerar terras indígenas,
atrelou a diplomacia brasileira aos EUA – entre muitos outros atos
semelhantes.
Examine agora como a
associação é mutuamente vantajosa para as duas facções que
dividem o governo. Bolsonaro é a cortina de fumaça perfeita para o
projeto ultra capitalista. Se o presidente fosse Geraldo Alckmin,
toda a agenda do ataque aos direitos sociais, da devastação dos
serviços públicos e da renúncia à soberania nacional estaria
sendo igualmente implementada – talvez, inclusive, por agentes de
maior competência técnica. Porém, todas estas políticas
impopulares estariam no centro
do debate nacional, submetidas a escrutínio público, produzindo o
desgaste de seus defensores. Bolsonaro poupa-os de tudo isso. Ele é
o palhaço que distrai a plateia, enquanto as tenebrosas transações
se fazem nos bastidores.
Mas
os proto fascistas também ganham com a parceria. Porque
o grande poder econômico compreende, e recompensa, os serviços
prestados. O presidente, por seus atos e falas – da defesa da
tortura à dissolução da
política externa independente –
já cometeu
dezenas de crimes de responsabilidade. Cada
um deles provocaria enorme escândalo e poderia gerar um pedido de
impeachment, se o
ocupante do Palácio do Planalto fosse outro. Mas não espere por
isso, nem imagine que, em dado momento, Bolsonaro ultrapassará uma
linha vermelha e será processado. Seus ataques à democracia e suas
palermices serão perdoados, esquecidos
ou minimizados pelo grande poder econômico, pela mídia tradicional
e pelos políticos conservadores supostamente “civilizados” –
enquanto ele continuar cumprindo o papel atual…
* * *
Isso
nos remete ao segundo
elemento central do cenário político: a quase completa inexistência
de oposição. A devastação
que o governo produziu em pouco tempo (e que deseja ampliar
indefinidamente) não é obra de um dream team
– mas de um elenco indigente. Sobre Bolsonaro, seus filhos e os
ministros patetas, nada é preciso dizer. Mas tome Sérgio Moro, seu
provincianismo, sua ignorância mesmo em matéria jurídica. Ou Paulo
Guedes, um contemporâneo medíocre dos economistas que gestaram os
planos econômicos dos anos 1980 e 90, jamais convocado por eles para
nada; um ministro que dá sinais seguidos de desconhecer os
mecanismos essenciais tanto
do serviço público quanto
da economia brasileira. Esta equipe de baixíssimo nível só brilha
no cenário brasileiro porque encontra, no campo oposto, um vazio.
A
paralisa da oposição tem dois aspectos: a incapacidade de resistir
à agenda de Bolsonaro e a inapetência, ainda maior, para retomar a
imaginação rebelde e anti sistêmica – que já renasce em
diversas partes do mundo. Examine, primeiro, os principais
acontecimentos desta semana e as oportunidades de ação que eles
oferecem. Na Embraer, 16 mil trabalhadores foram colocados em férias
compulsórias, entre 6 e 21/1. Diante das incertezas provocadas
pela crise
aguda da Boeing, a direção da empresa ainda não sabe qual será
seu destino. Bastaria este fato para que qualquer personagem público
da oposição se dirigisse a São José dos Campos, articulasse com o
sindicato uma visita às fábricas tomadas pela angústia, dialogasse
com os trabalhadores. A repercussão seria certa – inclusive porque
há, além das mídias tradicionais, uma rede importante de
publicações alternativas. Já a PEC do “Pacto Federativo”
permitiria, por exemplo, abrir diálogo com os estudantes
(responsáveis por uma importante onda de manifestações contra o
corte de verbas em 2019), com a vasta rede dos defensores do SUS
(presente em todo o país), com os usuários de serviços de saúde,
em processo de sucateamento.
Você
certamente não viu nenhuma dessas iniciativas, ao longo da semana. E
a lacuna não foi aberta agora. Desde o início do governo, a
oposição omitiu-se da crítica aos atos de devastação. Preferiu
concentrar-se numa pauta única – a liberdade de Lula – que,
apesar de sua evidente justiça, jamais foi capaz de dialogar com os
dramas quotidianos das maiorias. A partir de novembro, quando Lula
foi solto, a pauta única transformou-se em pauta nenhuma. Pelo menos
até o momento, aliás, Lula livre produz muito menos fatos políticos
que produzia Lula preso…
O
cenário é ainda pior quando se examina a disposição da esquerda
institucional para projetar
futuros alternativos ao ultra capitalismo e ao proto fascismo. Esse
passo é indispensável para tirar o país do labirinto, porque não
basta denunciar os
retrocessos vividos.
Para reconstruir um movimento pela transformação da sociedade, é
preciso acenar com a possibilidade de outras
lógicas, políticas, modos
de estar no mundo.
A
crise do
sistema tem aberto, em
distintos países, espaço para reconstruir um imaginário
pós-capitalista. Observe o
caso
do
Chile. Em
torno da busca do comum, de
serviços públicos de excelência, teceu-se, ao longo dos últimos
anos, uma alternativa às privatizações
e a transformação da vida
em mercadoria barata. Em
setembro do ano passado, uma revolta estudantil contra o aumento das
passagens de metrô serviu como estopim de
uma revolta que abalou a
“vitrine do neoliberalismo” na
América Latina, desaguando
na convocação de uma Constituinte. Nos Estados Unidos, Bernie
Sanders sacode
as
eleições presidenciais
e polariza em especial a
juventude ao propor,
entre outros projetos de enorme impacto, um Green New Deal. A proposta combina a
conversão para a economia limpa com um gigantesco plano de
investimentos em infraestrutura
(usinas solares, ferrovias, transporte público urbano, banda larga
gratuita) e com a garantia de ocupação formal, com salário digno,
a todos os trabalhadores que as reivindicarem. Na França, uma
greve geral prolongada,
em combinação com formas de luta inovadoras e irreverentes, obrigou
o governo a abrir mão do ponto principal de sua contrarreforma da
Previdência – a elevação da idade mínima para aposentadoria.
No
Brasil, a
esquerda institucional
permanece surda
a este burburinho e
fermentação de ideias.
O projeto de governo que
animou Lula e Dilma esgotou-se em 2014 e, moribundo,
levou em 2015 a um
“ajuste fiscal” que rompeu
os laços com as maiorias e abriu
caminho para o golpe. Mas não há reflexão nem
sobre o
colapso deste
projeto, nem sobre as
alternativas para
substituí-lo. Predominam duas posturas
mórbidas: ou o lamento
melancólico pelo fim dos “bons tempos” do passado, ou a
adaptação silenciosa aos retrocessos: a maioria dos governadores de
oposição está implementando, em
seus estados, contrarreformas
da Previdência de sentido
similar à de Bolsonaro. Quem
é capaz de se empolgar, ou
mobilizar, diante de atitude
como estas?
*
* *
Na
política não há vácuo duradouro, mas alguns dos piores desastres
se produzem quando os sujeitos que já não cumprem seu antigo papel
permanecem no antigo lugar, como fantasmas do que foram um dia. Como
se viu, vencer a coalizão entre proto fascistas e ultra
capitalistas, armada em torno de Bolsonaro, não é simples, nem
fácil. Tampouco é impossível. O apoio ao governo é minoritário
entre a sociedade. Uma ampla maioria não está de acordo nem com o
ataque aos direitos e aos serviços públicos, nem com a tentativa de
restringir, e quem sabe liquidar, a democracia. Há, sobretudo,
imensa energia represada: milhões de pessoas – críticas, bem
formadas, criativas – que se mobilizaram, nos últimos anos, em
episódios como as manifestações contra o golpe, as revoltas de
secundaristas, as greves gerais no governo Temer, o #elenão, os
protestos contra o assassinato de Marielle Franco, a luta para
defender a Educação, a Universidade e a Ciência dos cortes de
Weintraub.
Estas
pessoas, que conhecem as ameaças expressas por Bolsonaro e estão
dispostas a enfrentá-las, esperam que alguém as informe, articule,
convoque. Porém, deparam com uma esquerda fantasmática. Em outros
países, em tempos recentes, esta contradição foi resolvida por
duas vias distintas. Ou abre-se, no interior da própria esquerda,
uma brecha para a renovação – como ocorreu nos Estados Unidos e
na Inglaterra, com Bernie Sanders e Jeremy Corbyn –, ou surgem, em
resposta a partidos que teimam em morrer, alternativas. É o caso dos
Indignados e do Podemos na Espanha; ou, no Chile, da Frente Ampla e,
mais recentemente, da Plataforma Unidade Social.
Às
voltas com fantasmas, o
Brasil precisa viver, em
breve, um destes dois
processos. Percebê-lo
é essencial para não seguirmos prisioneiros
de uma
coalizão que ameaça os direitos, a democracia e a própria ideia de
país.
Duas facções compõem o governo: a do porrete e a dos punhos de renda. Juntas, lesam o país e ameaçam a democracia – mas se protegem mutuamente. Isso só é possível porque a esquerda institucional perdeu-se, vítima de erros táticos e estratégicos.
Por Antonio Martins
Vídeo: Gabriela Leite
e Lucas Scatolini