"Frei Betto é um dos analistas sociais dos mais argutos e certeiros. Por anos viveu com poderosos, cobrando-lhes uma opção pelo povo e pelos pobres e, nos países socialistas, fazendo que os vários Estados que se confessavam ateus, superassem seu confessionalismo às avessas e assumissem o caráter laico do Estado. Neste artigo nos faz um alerta: vivemos à mercê de um presidente que magnifica ditaduras e louva torturadores, despreza a democracia e desconsidera totalmente a Constituição que jurou observar. Pois ele e os seus que o cercam, em grande parte militares, estão tramando um golpe, abolir os demais poderes e se impor como único poder ditatorial. Graças a Deus, a sociedade reagiu, as mais altas instâncias judiciais o denunciaram e encontrou o repúdio da maioria dos brasileiros. Vale ler este artigo, pois nos esclarece o que está em andamento e, infelizmente, poderá acontecer". Leonardo Boff.
Por Frei Betto
O ministro Augusto Heleno,
do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), sugeriu, em 19 de
fevereiro, que o povo deve ir às ruas “contra a chantagem do Congresso”.
Bastou este aceno autoritário para os aliados do presidente convocarem
manifestação para o domingo, 15 de março.
Ora, quando uma autoridade do Poder Executivo convoca uma manifestação contrária a
outro Poder da República, no caso o Legislativo, isso é gravíssimo e
sinaliza conspiração golpista ou, sem rodeios, o fechamento do
Congresso. Tomara que o Poder Judiciário, representado pelo STF, proíba
tal manifestação, pois caso contrário correrá o risco de assinar o
fechamento de suas portas.
O protesto a favor do governo será na mesma data em que, há cinco
anos, ocorreu a maior das manifestações pelo impeachment da presidente
Dilma Rousseff.
Foi com uma escalada de manifestações prévias, como a Marcha com
Deus e a Família pela Liberdade, que os militares prepararam o golpe de
1964 que derrubou João Goulart, presidente constitucional e
democraticamente eleito.
O sonho
de todo político com vocação para caudilho ou ditador, avesso ao regime
democrático, é governar pela supressão de todas as vias institucionais
entre ele e o povo. Uma via direta, sem intermediação dos poderes
Legislativo e Judiciário, hoje facilitada pelas redes digitais.
Autoconvencido de que só ele sabe discernir o que convém ou não à
nação, o autocrata despreza o sistema partidário, trata os políticos
como seus serviçais, e se relaciona com a Constituição como o terrorista
islâmico com o Alcorão. Ele ouve, mas não escuta; fala, mas não
dialoga; age, mas não reflete. Seu pendor absolutista é, hoje,
facilitado pelas redes digitais, por meio das quais faz chegar à
população sua vontade e determinações.
Frente a um povo despolitizado, desprovido de consciência crítica, o
déspota emite suas opiniões como se fossem leis. Seus adeptos, movidos
pelo senso de “servidão voluntária”, na expressão da La Boétie, o erigem
à condição de “mito”, aquele que se torna paradigma, referência acima
de qualquer suspeita ou juízo.
O caudilho sabe que, sem apoio popular, seu futuro político corre o
risco de virar mero sonho. Para evitá-lo, recorre ao recurso de armar
mãos e espíritos. Liberar o porte e a posse de armas, e plantar no
coração e na mente de seus adeptos o ódio mortal a seus inimigos, reais
ou imaginários. Essa segunda medida se efetiva pela descontextualização
política, como se a conjuntura, os princípios constitucionais e o
consenso entre os seus pares poucos importassem.
Dotado da uma intuição impetuosa e de agressividade incontida, o
autocrata fragmenta seu discurso, adota um vocabulário chulo, desdenha a
coerência, troca o atacado pelo varejo, a floresta pelas árvores, e
cria um deus à sua imagem e semelhança. Ele não tem outra proposta ou
programa que não seja se perpetuar no poder e transformar sua vontade em
lei. Por isso suas medidas provisórias têm o peso de definitivas.
Onde andam os partidos de oposição, as
centrais sindicais, os movimentos populares? Se o desemprego afeta mais
de 11 milhões de pessoas; a economia retrocede; a saúde e a educação
estão sucateadas; e 165 milhões de brasileiros sobrevivem com renda
mensal inferior a dois salários mínimos; qual a razão de tamanha inércia
daqueles que deveriam manifestar a sua indignação diante deste governo?
Convém ter em mente o poema de Eduardo Alves da Costa, equivocadamente atribuído a Maiakóvski:
“Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso
jardim./ E não dizemos nada./ Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada./ Até que um dia, o
mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta./ E já não podemos dizer nada”.
Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do poder” (Rocco), entre outros livros.
Fonte LeonardoBOFF.com
https://www.facebook.com/antoniocavalcantefilho.cavalcante
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