O velha classe operária acabou. As lutas típicas dos séculos passados perderam relevância. Na era do precariado, surgem novas formas de produzir e distribuir riquezas. A esquerda brasileira precisa superar a melancolia e se voltar a elas
Imagem: Eric Drooker, Estilingue
Por Antonio Martins
Resgatar a esquerda social brasileira da maré de pessimismo em que
mergulhou desde 2016 é árduo, mas indispensável. Em textos anteriores,
vimos o avanço de Bernie Sanders,
candidato declaradamente socialista, nas eleições presidenciais dos
Estados Unidos. Ao fazê-lo, mostramos que há espaço para conter o avanço
da ultradireita, quando se dialoga com as angústias da maioria
(inclusive o descrédito com a velha política) e se exploram as novas
possibilidades de construir sociedades mais igualitárias e mais
democráticas, nas condições totalmente novas do século XXI. Depois, numa
edição intitulada “Decifrando Bolsonaro”,
expusemos como funciona, no governo brasileiro atual, a aliança entre o
ultracapitalismo dos punhos de renda (o de Paulo Guedes e da
aristocracia financeira), e o protofascismo do porrete (o do próprio
Bolsonaro, de seus filhos, dos ministros patéticos). Naquele programa,
demonstramos que a fórmula só funciona porque falta oposição. Perdem-se,
todas as semanas, dezenas de oportunidades, tanto de denunciar os
efeitos perversos das medidas do governo quanto – ainda mais importante –
de propor uma agenda de transformações, de imaginar outro futuro e sua
construção, de mostrar que há vida além do labirinto em que nos
perdemos.
Mas é necessário também tratar mais especificamente deste futuro. É
preciso mostrar que a ultradireita atual, assim como o fascismo há cem
anos, é impotente e infértil – no sentido de não expressar um projeto
novo, mas a reação desesperada do capitalismo a uma realidade que surgiu
e que o desafia. Para isso, iremos nos apoiar na ideia do Comum. É um
conceito recente, porém cada vez mais debatido na Sociologia, na
Filosofia e em especial na Política, quando se fala nas alternativas
contemporâneas à exploração das maiorias.
Não se trata mais, como nos séculos passados, de estatizar as
fábricas. Elas já não são, neste século, o centro da geração de valor.
Os trabalhadores deixaram de se concentrar em grandes unidades de
produção: uma parcela cada vez maior entre eles não bate cartão, não tem
chefes, sequer recebe salários. Agora, constituem o grande precariado.
Estão dispersos pelas ruas, carregando mochilas nas costas, obrigados a
trabalhar em dois ou três empregos e principalmente a ser empresários de
si mesmos – e a adotar as atitudes correspondentes a esta condição:
trabalhar sem limites, competir entre si mesmos, saber que nada está
garantido, ter medo (muito medo) do futuro.
O Comum representa,
para esta nova realidade, o que a luta salarial significava para os
trabalhadores dos séculos anteriores. Ele materializa as ideias da
igualdade e da democracia econômica. Permite tirá-las do terreno
das quimeras e transformá-las em conquistas reais, contra os donos
do mundo. Permite, em especial, transformar um cenário adverso, e
aparentemente sem saída, num terreno de lutas e de possibilidades.
Pense nos operários ingleses, que sofriam como escravos em jornadas
de 18 horas, no final do século XVIII, início da Revolução
Industrial. Pense em como, algumas décadas depois, o Manifesto
Comunista lhes oferecia tanto um guia para as lutas mais imediatas
quanto um horizonte histórico, um futuro totalmente distinto do
pesadelo que viviam.
Hoje, o Comum remete às imensas riquezas produzidas pelo
Conhecimento, pela Cultura, pela Comunicação – e capturadas pelas
mega-corporações e pelos bilionários do planeta. O Comum são as
florestas, sua biodiversidade, os saberes ancestrais e contemporâneos
que permitem aproveitá-las sem destruí-las. O Comum é a Água, que as
multinacionais querem controlar em toda parte (neste exato momento, no
Brasil), o que gera revoltas populares como a pioneira, em Cochabamba,
na Bolívia, já nos anos 1990. Comuns são a Saúde igual para todos, a
Educação de excelência e inovadora, a Habitação e o Transporte públicos e
gratuitos – como se reivindicava nas ruas do Brasil em 2013. O Comum é o
emprego garantido para todos que o desejem – e voltado, por exemplo,
para a transição energética, a construção de redes de metrôs ou
ferrovias ou a despoluição dos rios. O Comum é a Renda da Cidadania,
assegurada incondicionalmente a todos os cidadãos, independente de
contrapartida em trabalho. Todas estas dimensões não são apenas
abstrações teóricas. Correspondem a lutas sociais que estão se dando há
anos — e também neste exato momento — em diversas partes do mundo.
Pense, por exemplo, nas propostas da insurreição que desmascarou, há
poucos meses, o neoliberalismo no Chile. O que falta é uma construção,
teórica e política, que converta os Comuns em motivo geral de luta –
mais ou menos como foi com a jornada de 8 horas diárias de trabalho, há
cerca de 150 anos.
Mas há uma outra dimensão menos conhecida e igualmente crucial para superar o capitalismo. É o Modo de Produção do Comum
– ou seja, novas formas de organizar o trabalho coletivo, de rever as
hierarquias, de repartir o que é produzido, de difundir esta produção
pelo mundo. Estas relações já existem, de modo embrionário porém
efetivo, na vida real. Convivem com as relações capitalistas, que
evidentemente são hegemônicas. Buscam ampliar seu espaço, reproduzir-se.
São combatidas ferozmente pelo sistema atual, que procura a todo custo
inviabilizá-las. Para examinar estas relações, um excelente começo é o
ensaio How to Create a Thriving Global Commons Economy, ou Como criar uma economia florecente de Comuns Globais, do pesquisador belga Michel Bawens, fundador do Fundação Peer to Peer e um dos grandes estudiosos dos Comuns contemporâneos. *
A produção segundo a lógica do Comum, explica Bawens no texto, tem origens pré-capitalistas. O cercamento das terras comuns, na
fase final do feudalismo, impulsionou a Revolução Industrial, e a
transição ao sistema hoje dominante, ao obrigar os camponeses a migrar
em massa para as cidades e aceitar a condição de assalariados nas
fábricas nascentes (e totalmente insalubres0. Mas as raízes são ainda
mais remotas. O Comum era a base da organização produtiva, por exemplo,
das sociedades tribais antigas, da maior parte dos povos americanos,
quando da chegada dos europeus, ou de muitas das nações indígenas do
Brasil contemporâneo. Algumas das características destes processos do
passado são resgatadas e ressignificadas na produção do Comum
contemporâneo, mostra o ensaio.
Bawens refere-se a ferramentas que você certamente já empregou: a
Wikipedia, construída colaborativamente por milhões de voluntários. Mas
também coletivos menores, cujos membros vivem do trabalho que realizam.
Entre muitos outros, programa Apache, base de grande maioria dos servidores onde estão instalados todos os sites da internet. O sistema operacional Linux, coração do Android, presente na maior parte dos celulares do planeta. O WordPress, a partir do qual são construídos milhões de publicações — entre elas, Outras Palavras. O Libre Office,
que produz editores de texto, planilhas e outros produtos de escritório
tão potentes e constantemente atualizados quanto os da Windows. O Firefox, usado por cerca de 10% dos internautas para se movimentar na internet e mesmo o Chromium, base do Chrome, da Google, o mais popular de todos os navegadores.
Todos
estes projetos, explica o artigo, são construídos por comunidades
que reúnem milhares de pessoas, e funcionam segundo a lógica da
Produção por Pares baseada no Comum (CBPP,
no acrônimo em inglês). Algumas
de suas características centrais são
claramente pós-capitalistas. As
instituições
encarregadas da produção não são empresas de propriedade privada,
mas organizações
semelhantes a cooperativas. Não há objetivo de lucro, muito menos
apropriação individual deste (pode
haver acumulação de
recursos, investidos para ampliar as ações da comunidade). As
hierarquias são fluidas: o trabalho coletivo é estruturado de forma
que cada programador contribua com o desenvolvimento de partes
específicas de um dado projeto, segundo sua aptidão. Há, é claro,
coordenação e controle de qualidade – mas não subordinação. O
assalariamento é residual.
Não há alienação: cada um
contribui apenas com os projetos que julga merecerem seu empenho
pessoal. Buscam-se formas
igualitárias de distribuir as receitas entre os
que trabalham.
Como vivemos sob hegemonia do capitalismo, frisa Bawens, não é
possível evitar de todo as relações mercantis. A Apache oferece seus
programas no mercado. O WordPress, o Firefox, as múltiplas
“distribuições” (versões) do Linux e o Libre Office são gratuitos. As
instituições que os produzem financiam-se vendendo programas e
desenvolvimento de nicho, para clientes empresariais, ou buscando outras
formas de captação de recursos. Todas estas comunidades também compram,
no mercado, os insumos para seu trabalho – os computadores, o aluguel
dos escritórios, a eletricidade, o material de consumo etc etc etc.
O ponto principal do ensaio é demonstrar que o Comum, visto principalmente como um conceito útil para pensar a distribuição de riquezas, pode ser também um modo de produção. Para isso, destaca Bawens, são necessárias mudanças sociais muito mais profundas – e, é claro, exteriores às
comunidades que hoje produzem segundo a nova lógica. A instituição de
uma Renda da Cidadania suficiente para assegurar a todos uma vida digna,
por exemplo, é crucial, porque livra a população do trabalho
obrigatório e alienado e libera cada pessoa a empregar uma parcela muito
maior de seu tempo nas tarefas que julgar mais relevantes para si
mesma, a sociedade e o planeta. A garantia de serviços públicos de
excelência gratuitos – começando por Saúde, Educação, Habitação e
Transportes –, também, porque acaba com o tormento de ter de comprar,
incessantemente, a própria vida.
Bawens
destaca, no artigo, dois aspectos que
reforçam a potência do Comum como alternativa pós-capitalista. Uma
parcela cada vez mais importante da produção de riquezas está
concentrada no imaterial –
ou seja, nos chamados bens não rivais, que
podem ser distribuídos infinitamente com custo quase zero. Pense
nos livros, na música, nas obras de arte, mas
também no design de uma roupa, uma bolsa, uma bicicleta ou um
relógio. O
imaterial é hoje o terreno em que as grandes corporações mais
geram valor, lançando produtos distintivos, que
segregam os indivídios e, ao fim das contas, definem o status que a
sociedade dará a eles. Este mesmo imaterial pode ser o
espaço da igualdade e, num certo sentido, do que Caetano Veloso uma
vez chamou de “luxo para todos”.
Outro aspecto é a automação crescente e cada vez mais intensa. Hoje,
ela gera desconforto, insegurança e pavor. Ao fazê-lo funciona como arma
poderosa de domesticação das maiorias. Porém, numa sociedade articulada
em torno do Comum, permitirá reduzir drasticamente o tempo do trabalho
humano necessário, gerar uma abundância positiva de força de trabalho e
tornar obsoletas as relações de produção hierarquizadas e alienadas. Se
minha contrapartida social, pelo direito a viver dignamente, for
trabalhar quinze horas por semana, como previu Keynes, posso empregá-las
escrevendo reportagens, oferecendo aulas de jornalismo ou contando
histórias para crianças, em praças públicas. Meu trabalho deixará de ser
uma obrigação forçada pela necessidade do salário e pela pressão de um
chefe autoritário, para se converter numa contribuição prazerosa à
sociedade – e por isso realizada com preparação, cuidado,
responsabilidade e capricho.
E aqui voltamos ao caráter e papel do protofascismo contemporâneo,
dos Trump, Boris Johnson, Salvini, Duterte e Bolsonaro. Todas as novas
relações sociais elencadas há pouco são materialmente possíveis. O que
as bloqueia é um sistema que sucumbiria diante delas – porque não há
capitalismo sem que as maiorias sejam obrigadas ao trabalho submisso;
nem em condições de abundância, que tornem sem sentido a competição
entre os seres humanos.
As últimas hipóteses desta análise, portanto, são: a) O que chamamos de ofensiva da ultradireita
é, na verdade, uma tentativa desesperada de defesa. O capitalismo já
não é capaz de oferecer vida digna – como mostram, por exemplo, a
concentração indecente de riquezas ou a redução da expectativa de vida
mesmo nos Estados Unidos, centro do sistema. Além disso, está acossado
pela emergência de novas relações – inclusive de produção – que ameaçam
as bases em que se assenta. Para assegurar sua sobrevivência recorre,
com frequência cada vez maior, à vigilância obsessiva, aos golpes, às
guerras, aos assassinatos de inimigos, a políticos grotescos.
Estes políticos são, de fato, muito perigosos. Enfrentá-los exigirá
enorme esforço. Mas é importantíssimo saber que eles só existem porque
surgiram condições reais para superar o capitalismo. Descobrir os
caminhos para isso é algo que já começa a ser feito, em diversas pares
do mundo. O Brasil pode e precisa fazê-lo também. A única condição para
tanto é uma esquerda que olhe para frente, ao invés de se voltar,
melancólica, para um passado que não voltará.
—
Nota: Este texto foi alterado. No início do terceiro parágrafo, onde se afirma agora que “não se trata mais, como nos séculos passados, de estatizar as fábricas”, dizia-se antes que já não cabe “socializar os meios de produção”. Ora, estabelecer os Comuns, a proposta central do texto, nada mais é que “socializar os meios de produção”, nas condições contemporâneas. A velha fórmula de Marx é mais atual que nunca, embora com nova aparência. Um leitor atento, o professor Jair Pinheiro (Unesp-Marília), notou o descuido, pelo que muito lhe agradeço (A.M.)
Vídeo: Gabriela Leite
Fonte Outras Palavras