A não consciência de se estar repetindo elaborações do passado é indício de como elas se tornaram fortes, tendo até penetrado no senso comum. Mesmo que as fórmulas variem – Cassiano Ricardo falava em “pequena propriedade e grande família”, ao passo que atualmente se afirma, “Agro é tech, agro é pop, agro é tudo” – a ideia básica permanece. Em poucas palavras, como também se costumava afirmar em outros tempos: “ninguém segura este país”.
Por Bernardo Ricupero*
Em 2016 fomos surpreendidos quando
multidões vestidas de verde e de amarelo ocuparam as ruas das cidades
brasileiras para defenderem o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Bradavam palavras de ordem, como: “nossa bandeira jamais será vermelha”; “o
gigante acordou”; “quero meu país de volta”.
De onde teria emergido essa massa que,
de maneira aparentemente inédita, não tinha vergonha de defender teses de
direita? O choque talvez tenha sido particularmente forte para aqueles que
cresceram durante a chamada transição, período em que a lembrança de nossa
última ditadura ainda estava fresca e mesmo um político como Paulo Maluf sentia
a necessidade de se definir como de centro-esquerda.
Não faltou quem percebesse as
semelhanças, até mesmo estéticas, da nova direita brasileira com o
neoconservadorismo norte-americano. Tais coincidências não são mero acaso até
porque, como logo se soube, os tupiniquins se inspiraram nos ianques.
Nessa referência, talvez se pudesse
perguntar se no Brasil, assim como nos EUA, se teria constituído uma hegemonia
de direita. Até porque o país da Moral Majority é quase um exemplo
acabado de como se pode estabelecer direção intelectual e moral.
Com
efeito, depois do fim da Segunda Guerra, quando a orientação dada por Franklin
Roosevelt ao governo dos EUA parecia assumir ares de quase consenso, forjou-se
uma improvável aliança entre intelectuais conservadores, defensores do livre
mercado e cristãos tradicionalistas. Essa espécie de exército de Brancaleone
logo criou revistas, fundou think tanks, atuou na sociedade civil, até
que elegeu, em 1980, Ronald Reagan presidente.
Desde então, a direita passou a dar a
tônica do debate político-cultural norte-americano, mesmo quando não está no
poder. Sinal da nova hegemonia é
que uma afirmação como a do crítico literário
Lionel Trilling de que no seu país “o liberalismo não é apenas a tradição
intelectual dominante, mas a única tradição intelectual” deixou de fazer
sentido desde quando foi proferida em 1950.
No Brasil,
em contraste, a ascensão da extrema-direita se deu repentinamente, talvez em
não mais de cinco anos, a partir das chamadas Jornadas de Junho de 2013. Nesse
sentido, não houve tanto um lento processo de constituição da hegemonia, mas
uma espécie de colapso do regime instaurado pela Constituição de 1988. Seria
questionável, portanto, considerar que a sociedade civil está impregnada por
ideias de direita.
Por outro
lado, não deixa de chamar a atenção as semelhanças do discurso da atual
extrema-direita brasileira com as formulações de egressos do que é normalmente
estudado como um movimento puramente
literário, o grupo modernista Verde-Amarelo [1]. Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo e Plínio Salgado
eram colaboradores do Correio Paulistano, órgão oficial do Partido
Republicano Paulista (PRP), e constituíam
uma das facções modernistas quando, a partir de 1924, o movimento deixou de ser
uma “frente única”.
Na verdade,
os diferentes grupos modernistas se definiram basicamente em relação uns aos
outros, os verde-amarelos assumindo boa parte de seus contornos em
contraste com o Pau Brasil. Não aceitavam, em particular, o “primitivismo”
favorecido por Oswald de Andrade, defendendo, em contraste, um projeto
“construtivista”. No entanto, me interessa particularmente como os integrantes do Verde-Amarelo se
comportam depois da Revolução de 1930, quando a rigor o movimento já não existe
como tal e segundo João Luiz Lafetá, há a passagem do
projeto estético para o projeto ideológico do modernismo.
Plínio rompe com o PRP e em 1932 funda a Ação Integralista Brasileira (AIB), o
primeiro partido de massas brasileiro. Seu documento de fundação, o “Manifesto
de Outubro”, se abre com a proclamação: “Deus dirige os destinos dos povos”.
Também em termos tradicionalistas, defende a família e se volta contra a
imoralidade dos costumes, o cosmopolitismo e o comunismo, temas que voltaram a ganhar centralidade no
Brasil atual. Mas igualmente se coloca contra o liberalismo.
O documento
escrito pelo chefe integralista se preocupa especialmente com a divisão social,
contra a qual se posicionaria o
Estado integral, pretensamente capaz de garantir a harmonia no interior
da sociedade. Em termos mais específicos, para combater a desordem seria
preciso garantir o princípio de autoridade, a hierarquia e a disciplina.
Seguindo uma preocupação comum na década de 1930, defende a organização das
classes profissionais. Além disso, enfatiza a importância do município. Diante
da orientação dominante no país, declara que os integralistas deliberadamente
prefeririam estar “proscritos da falsa vida política da nação”.
Num sentido
amplo, Plínio defende uma sociedade organizada hierarquicamente e baseada em
valores espirituais. Em termos específicos, da mesma forma que uma vasta literatura existente sobre o
país, vê o Brasil dividido em dois: o falso e cosmopolita país do litoral,
cópia da Europa, e o país real do Sertão, onde se encontrariam os gérmens da
nacionalidade. Nesse sentido, paradoxalmente o Brasil teria sido mais
brasileiro durante a colônia, quando fora praticamente esquecido pela metrópole
portuguesa.
No entanto,
quando se discute o integralismo, normalmente a principal preocupação é
entender sua relação com o fascismo [2]. É evidente a semelhança e mesmo a inspiração dos camisas verdes
brasileiros nos camisas negros italianos. No entanto, o integralismo não é mera
reprodução do fascismo, refletindo as peculiares condições brasileiras. Mesmo
assim, o integralismo e o fascismo não deixam de refletir o clima intelectual e
político mais amplo do entre-guerras.
Mas talvez
seja especialmente interessante explorar o que fica das formulações de outro
escritor verde-amarelo com vinculações menos óbvias com o fascismo, Cassiano
Ricardo. Diferente de Plínio, o autor de Martim Cererê não rompe com o
PRP depois da Revolução de 1930 [3]. Apoia a Revolução
Constitucionalista de 1932 e chega a ser chefe de gabinete do governador de São
Paulo, Armando Salles de Oliveira. Em prol da sua campanha para a eleição
presidencial de 1938, que acabou
não ocorrendo devido ao golpe de 1937, cria o movimento Bandeira, que congrega
além de egressos do movimento Verde-Amarelo, escritores como Monteiro Lobato e
Mário de Andrade.
No entanto,
Cassiano, assim como Menotti del Picchia, aproxima-se de Getúlio Vargas com o
Estado Novo. Escreve um livro, Marcha para o Oeste (1940), evocação
do discurso do presidente pronunciado às 00.00 de 31 de dezembro de 1937, em
que proclamava a necessidade de integrar as diferentes regiões brasileiras numa
economia centralizada.
Marcha para o Oeste é um documento muito
sugestivo. A começar pelo fato que é, como fazia questão de deixar claro seu
autor, uma reelaboração do poema épico Martim Cererê (1928), escrito
quando o escritor verde-amarelo ainda era vinculado ao PRP. Os dois textos
narram como a mestiçagem entre o branco e o índio – com uma participação mais
discreta do negro – teria criado um gigante: o bandeirante. Seria ele o
principal responsável pelo que é
o Brasil.
A evocação
do herói paulista insere-se numa literatura criada a partir do Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), fundado em 1894, e do PRP, em que
o bandeirante se torna um verdadeiro mito. Na década de 1920, com a publicação
dos testamentos e inventários dos velhos paulistas por iniciativa do então
presidente de São Paulo, Washington Luís, esse quase gênero ganha impulso nas
obras de autores como Afonso d’Escragnolle Taunay, Alfredo Ellis Junior e José de
Alcântara Machado, até mesmo Plínio Salgando escrevendo, já em 1934, um
romance, A voz do Oeste, sobre o tema. Em resumo, o mito bandeirante
relaciona-se com um certo projeto de hegemonia paulista.
A realização particular de Cassiano
Ricardo e, em termos mais profundos, de Getúlio Vargas está em incorporar o
mito bandeirante ao projeto ideológico do Estado Novo, convertendo antigos inimigos
em aliados do governo forte. Significativamente,
o escritor verde-amarelo torna-se, em 1941, editor do diário A Manhã, órgão
oficial do Estado Novo.
Segundo o
livro Marcha para o Oeste, dos três grupos que formariam a sociedade
brasileira – o feudal e imóvel dos engenhos de açúcar, o comunista e nômade
indígena e o democrático e móvel bandeirante – seria o último aquele que poderia criar uma nação.
Em outras palavras, a nação brasileira é identificada basicamente com seu
território. O chefe da bandeira se comportaria de maneira impiedosa com aqueles
sob seu comando, mas, na verdade, não seria “apenas o mandão: é o protetor”.
Depois do
século XVII, outras “bandeiras” teriam continuado a ocupar o imenso território
do país, com destaque para o café, não por acaso, chamado de “ouro verde”. Mais
recentemente, a bandeira indicaria as linhas que o Estado moderno e mais
especificamente o Estado Novo seguiriam: “comando seguro e fraterna solidariedade
dos indivíduos obedientes à firme unidade de comando”.
De maneira
mais direta, como é comum na década de 1930, Cassiano Ricardo faz questão de
qualificar a democracia. Rejeita a democracia política, supostamente pouco
adequada ao Brasil, em favor de uma pretensa democracia étnica, favorecida
pelos bandeirantes e da qual surgiria uma democracia social.
Bolsonaro
provavelmente nunca leu Plínio Salgado ou Cassiano Ricardo. Há, além do mais,
diversos pontos contrastantes entre os atuais e antigos cultores do “Brasil
grande”. A começar pela postura diante do liberalismo, encarado com
desconfiança pelos verde-amarelos e elevado à condição de principal aliado do
atual presidente.
Verdade que
os dois liberalismos não são exatamente os mesmos; a hostilidade nos anos 1920
e 1930 voltava-se principalmente contra o liberalismo político, a simpatia
atual dirige-se especialmente em favor do liberalismo econômico. Também o Deus
que Plínio Salgado e Cassiano Ricardo evocavam não é exatamente o mesmo de
Bolsonaro. Até porque nos últimos oitenta anos o Brasil deixou de ser um país
quase exclusivamente católico para se converter num país crescentemente
evangélico.
No entanto,
a imagem da nação favorecida pelos verde-amarelos e Bolsonaro é surpreendentemente
similar: um Brasil grande, no qual não há verdadeiro espaço para seus
habitantes, particularmente os mais débeis. Nele a marcha para a pretensa
grandeza não deve levar em conta o que encontra pela frente, seja a natureza ou
os homens e as mulheres que atrapalhariam seu curso. O lócus privilegiado a
vencer tais obstáculos seria a “fronteira”, a Amazônia, em especial, sendo
vista como uma região a ser desbravada pelo agrobusiness.
Ou seja, a
não consciência de se estar repetindo elaborações do passado é indício de como
elas se tornaram fortes, tendo até penetrado no senso comum. Mesmo que as
fórmulas variem – Cassiano Ricardo falava em “pequena propriedade e grande
família”, ao passo que atualmente se afirma, “Agro é tech, agro é pop, agro é
tudo” – a ideia básica permanece. Em poucas palavras, como também se costumava
afirmar em outros tempos: “ninguém segura este país”.
*Bernardo Ricúpero é professor do Departamento de Ciência Política da USP.
Notas
[1] Bons estudos sobre o movimento
Verde-Amarelo que não prestam atenção apenas à sua dimensão literária são os de
Mônica Velloso (1993), Maria José Campos (2007) e Lorena Zem El-Dine (2017).
[2] Na década de 1970, não por acaso
durante a última ditadura brasileira, apareceram diversos trabalhos importantes
sobre o integralismo. Hélgio Trindade (1974) destacou sua semelhança com o
fascismo, ao passo que José Chasin (1978) enfatizou sua especificidade
brasileira, Gilberto Vasconcelos (1979) lidou principalmente com sua “utopia
autonomística”, Ricardo Benzaquén de Araújo (1978) tratou da lógica interna do
seu pensamento e Marilena Chauí (1978) investigou as características de sua
ideologia.
[3] Sobre Cassiano Ricardo, ver
especialmente Luiza Franco Moreira (2001).
Referências
bibliográficas
ARAÚJO,
Ricardo Benzaquén de. “As classificações de Plínio: uma análise de Plínio
Salgado entre 1932 e 1938”. Revista de Ciência Política, v. 21, n. 3,
1978.
CAMPOS,
Maria José. 2007. Versões modernistas sobre o mito da democracia racial em
movimento: estudo sobre as trajetórias e as obras de Menotti del Picchia e
Cassiano Ricardo até 1945. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade de São Paulo, 2007.
CHASIN,
José. O integralismo de Plínio Salgado. São Paulo: Livraria Editora
Ciências Humanas, 1978.
CHAUÍ,
Marilena. “Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira”. In:
CHAUÍ, Marilena; FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. Ideologia e mobilização
Popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
EL-DINE,
Lorena R. Zem. A alma e a forma do Brasil: o modernismo paulista em
Verde-Amarelo. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História
das Ciências e da Saúde, 2017.
LAFETÁ,
João. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Editora 34, 2000.
MOREIRA,
Luiza Franco. Meninos, poetas & heróis: aspectos de Cassiano Ricardo do
modernismo ao Estado Novo. São Paulo: EDUSP, 2001.
TRINDADE,
Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 1930. São
Paulo: DIFEL, 1974.
VASCONCELOS,
Gilberto. A ideologia curupira. São Paulo: Brasiliense, 1979.
VELLOSO,
Mônica. “A brasilidade Verde-Amarela: nacionalismo e regionalismo paulista”. Estudos
Históricos, v. 6, n. 11, 1993.
Fonte A Terra é Redonda