Nas redes e na mídia, as imagens de policiais encapuzados fechando comércios e aterrorizando a população fez com que muitos cravassem um rápido diagnóstico: as milícias não seriam mais uma exclusividade carioca e estariam se espalhando pelo país. E é exatamente este ponto que discordo e gostaria de explorar neste texto.
Por Almir Felitte
Essa semana, a cidade de Sobral, Ceará, se tornou o centro do debate
político no país. E como todo debate político nestes tempos de
internet, o acontecimento já está recheado de vereditos sobre os
seus significados. Mas o movimento todo é muito mais complexo do que
parece e exige mais cautela em suas análises.
Primeiramente, é preciso que se diga: toda a movimentação que se
iniciou entre os policiais do Ceará foi muito mais ampla do que o
que aconteceu em Sobral e teve, a princípio, motivações legítimas
ligadas à valorização salarial e da carreira. As negociações com
o Governo cearense, inclusive, vêm contando com a ampla presença de
associações e entidades de policiais do estado. Estas, por sua vez,
vinham denunciando a perseguição política que sofriam do Governo.
Militares,
porém, não têm direito à greve e possuem regimentos duros que,
não raras vezes, são usados para perseguir policiais de baixa
patente que reivindiquem direitos, o que sempre torna as
manifestações policiais confusas e conturbadas, contando com a
presença de seus familiares. Por isso mesmo, é tão necessário que
a bandeira da desmilitarização esteja sempre presente nos debates
sobre a valorização das carreiras policiais. A esquerda poderia ter
um bom papel aqui, mas depois voltamos para este ponto.
Até
aqui, nenhuma novidade ou diferença para outros movimentos
semelhantes que sempre ocorreram em outros Estados também.
Movimentos que, não raras vezes, têm ligações com a bancada da
bala e, por outras vezes, já criaram lideranças progressistas de
esquerda dentro das próprias corporações policiais. Líderes
grevistas da PM do Rio Grande do Norte, por exemplo, integraram o
projeto vencedor da atual governadora potiguar Fátima Bezerra, do
PT.
Também
não é novidade nenhuma a instabilidade política em ano eleitoral.
E é claro que se deve levar em conta o papel do bolsonarismo no
ocorrido em um estado cuja capital pode vir a ser governada por um
Capitão do PSL com bastante influência sobre a corporação
policial. O fato da radicalização do movimento ter se dado em
Sobral, central dos Ferreira Gomes, família pilar da esquerda
cearense, é mais um indício disso.
E
é em Sobral que as diferenças deste movimento parecem ter
aparecido. Diferentemente do que se vê em greves militares, o
movimento em Sobral foi além das costumeiras participações de
familiares “impedindo” policiais de trabalharem. Por lá, a
participação de policiais foi mais direta e ostensiva, com um claro
objetivo de instaurar o terror na cidade. Manifestações que
certamente extrapolam as pautas trabalhistas legítimas e mostram um
interesse político muito mais amplo. Os militares de Sobral não
pareciam querer demonstrar como o seu trabalho é necessário para a
sociedade, como fazem grevistas. Eles pareciam querer demonstrar
força.
Mas
a resposta de Cid Gomes, é preciso que se diga, não foi correta.
Não estou, aqui, caindo no moralismo raso de dizer que o diálogo é
sempre o caminho e que a violência política é sempre condenável.
Mas a atitude do Senador poderia realmente ter causado uma tragédia
e, estrategicamente, poderia ter sido tão explosiva quanto a ainda
mal explicada facada de Adélio em Bolsonaro. Nada, porém, justifica
dois tiros no peito de Cid quando este já havia cessado a sua ação,
o que, aliás, afasta qualquer hipótese de legítima defesa.
Nas
redes e na mídia, as imagens de policiais encapuzados fechando
comércios e aterrorizando a população fez com que muitos cravassem
um rápido diagnóstico: as milícias não seriam mais uma
exclusividade carioca e estariam se espalhando pelo país. E é
exatamente este ponto que discordo e gostaria de explorar neste
texto.
As
milícias cariocas não são uma ação ou um movimento. São um
verdadeiro sistema. Um capitalismo distópico que confunde público e
privado e mercantiliza tudo através da força. Apesar de,
esteticamente, as ações no Ceará terem sido parecidas com outras
já vistas no Rio de Janeiro, a construção deste sistema não
pareceu ser o objetivo dos policiais no estado do Nordeste. Não foi
algo territorial, foi algo mais com caráter de pressão política.
Colocar todo e qualquer tipo de violência policial na caixinha do
“milicianismo” é uma simplificação rasa e perigosa que pode
nos impedir de enxergar riscos ainda maiores do que as próprias
milícias.
O
que se viu em Sobral talvez seja mais comparável ao que ocorreu no
recente golpe contra o Governo de Evo Morales na Bolívia do que com
o que presenciamos todos os dias no Rio de Janeiro. Por lá, para
além do histórico papel central das Forças Armadas no golpismo
direitista latino-americano, viu-se uma importância inédita das
forças policiais no apoio político (e não só de força bruta) ao
golpe.
Lembremos
que 2018 representou, eleitoralmente, um salto inédito da Bancada da
Bala nas Casas Legislativas do país. Uma bancada que reúne membros
das altas cúpulas das forças de segurança pública, delegados e
coronéis, um grupo com interesses próprios e o privilégio do
monopólio da violência. É o perigoso crescimento das instituições
policiais como força política no país, e não só como uma força
repressiva à serviço de um Governo elitista. Instituições falando
por si.
E,
apesar deste claramente ser um movimento de Comando, o uso de pautas
legítimas, como foi no caso cearense, pode facilmente atrair as
baixas patentes para tal movimento, ainda que existam atritos
frequentes destes com as altas patentes, que nem sempre possuem os
mesmos interesses políticos. Neste ponto, retorno ao papel da
esquerda e sua histórica negligência com o tema da segurança
pública. Tais pautas legítimas podem e devem ser disputadas pelo
campo da esquerda, atreladas a propostas como a desmilitarização e
a carreira única, que, ao contrário do que se pensa, têm grande
aceitação entre os trabalhadores das bases das polícias.
Não
se trata, aqui, de colocar a culpa na esquerda pelo perigo que o país
corre. Trata-se de apontar um caminho para uma luta que não pode
mais ser negligenciada. A segurança púbica é uma realidade, um
direito e um serviço do Estado para o povo. A esquerda não pode
fingir que a segurança pública não existe e deve disputá-la, até
mesmo para travar o risco de um acirramento do golpe que vivemos
desde 2016. O temor é de que 2020 já possa ser tarde demais para
essa disputa.
Fonte Outras Palavras