Para obter recursos, uma Reforma Tributária de emergência. Talvez um imposto extraordinário sobre os lucros dos bancos e as grandes fortunas. O fim da ideia obtusa segundo a qual os Estados não podem emitir moeda para custear o Comum, embora possam fazê-lo para salvar os bancos e a aristocracia financeira.
Por Antonio Martins
É comovente a empáfia dos larápios, quando ainda não desmascarados.
Em todo o mundo, diante dos terremotos nos mercados financeiros e da
sombra de recessão, falências e demissões em massa, os governos
apressam-se a adotar medidas que afastam ou reduzem os riscos. A
intensidade varia, mas em quase todos os casos, a sensação de
perigo supera as travas da ideologia. As decisões incluem estímulo do
Estado à economia e, onde há políticas de “austeridade” em vigor, sua
reversão ao menos parcial. Na China, as regiões mais atingidas pelo
vírus estão lançando programas
de dezenas de bilhões de dólares para ampliar a Saúde pública,
recuperar áreas urbanas degradadas e construir ferrovias. No Japão e na
Itália dois pacotes econômicos seguidos oferecem socorro financeiro às
empresas atingidas por circulação e atividade produtiva reduzidas. Na
Alemanha, o Estado oferecerá ajuda financeira aos assalariados obrigados a se afastar do trabalho. Todos se mobilizam – menos o Brasil.
Ao contrário. Nesta terça-feira (10/3), num intervalo de poucas
horas, o governo lançou duas manifestações bizarras. De Miami, onde se
encontrou-se com Trump, Bolsonaro minimizou a crise,
afirmando que “a questão do coronavírus” não é “isso tudo que a mídia
propaga”. À noite, ao se encontrar com os presidentes da Câmara e do
Senado, o ministro Paulo Guedes entregou-lhes ofício em que se limita a relacionar modorrentamente os 19 projetos que já tramitam no
Legislativo e que, segundo ele, poderiam “blindar a economia brasileira
da crise internacional”. Se aprovadas, as propostas conduzirão o país
na caminho oposto ao adotado em todo o mundo. Os estados e municípios
serão estimulados adiminuir ainda mais os recursos que destinam à Saúde (!) e Educação (PEC do “Pacto Federativo”). Os serviços públicos poderão funcionar em horário reduzido (PEC
“Emergencial”). Fundos públicos que estimulam a Educação, a Saúde, a
Ciência e Tecnologia serão extintos (PEC “dos fundos públicos”). Os
empregadores poderão ampliar a precarização – inclusive driblando normas
de Saúde e proteção contra acidades (Carteira Verde-Amarela). A lista é
vasta; o sentido das medidas, sempre o mesmo: cortar o gasto social; impedir o Estado de estimular a economia; eliminar direitos sociais.
Três
fatores – ou uma combinação entre
eles – podem estar por trás de um alheamento tão flagrante à
crise e seus efeitos: a) Bolsonaro e Guedes desconhecem
realmente a gravidade do
problema e o enxergam como uma conspiração (Paul Krugman, Nobel de
Economia, atribui
a este fato a atitude de Donald Trump e
seus assessores econômicos –
quase tão alienada quanto a do governo brasileiro – diante dos
sucessivos sinais de alarme); b)
Como atiradores fanáticos, diante de uma multidão, o
presidente e seu ministro agem
para infligir à economia brasileira o máximo dano possível, antes
de serem parados; c) O
ministro tem consciência de que algo muito grave está por vir. A
queda
abrupta
do preço das commodities
derrubará as exportações
brasileiras, fortemente
primarizadas. A fuga de
capitais já
começou. Há crise
cambial à vista. No plano interno, a recessão
derrubará as receitas do Estado, fará disparar o déficit fiscal e
impedirá até mesmo a adoção de medidas paliativas.
Ao demandar
do Congresso o que sabe ser impossível,
Guedes prepara-se para abandonar o barco.
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Seja como for, a crise já estabeleceu outro cenário político – e a
mudança vai se acentuar rapidamente, nos próximos dias. São duas as
mudanças principais. Como apontou Outras Palavras, há
duas semanas, o esforço de Bolsonaro para criar cortina de fumaça,
atraindo todas as atenções para os atos de ultradireita de 15 de março,
dificilmente se sustentaria. A provocação já saiu das manchetes e é
improvável que retorne. Se for esperto, o presidente cancelará os atos.
Se insistir neles, transmitirá a imagem de alguém indisposto ao trabalho
e ao bem comum, interessado em atiçar os ânimos e em gerar conflitos,
com o país mergulhado em crise. O erro pode ser devastador.
O
segundo efeito é o
surgimento de uma primeira trinca no amplo consenso que havia, até a
semana passada, em favor das (contra-)reformas de Guedes e Bolsonaro.
Algumas vozes dissonantes já
surgem, além dos que defendem o pós-capitalismo. A economista
Monica de Bolle tem se destacado, por sua combatividade. A revista
Piauí deu
espaço a suas críticas. A
gravidade da crise fez balançar políticos conservadores que não
perderam o senso do real. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que
até há pouco procurava credenciar-se junto ao grande poder
econômico, admitiu
timidamente: “A gente não consegue organizar um país apenas
fazendo reformas e cortando, cortando, cortando (…) Os
investimentos públicos são muito importantes também”.
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Surgiu a oportunidade, provavelmente inédita, de tornar claro, para
as maiorias, o caráter do governo; obrigá-lo a retroceder; abrir caminho
para uma retomada. É provável que as crises, tanto a sanitária quanto a
econômico-financeira, prolonguem-se por meses. As condições atuais –
desinvestimento em Saúde e em todas as políticas sociais, ausência de
estímulos relevantes do Estado à Economia; ataque aos direitos sociais –
irão impor, à sociedade, um sofrimento muito maior que o provocado pela
própria pandemia.
Mas
denúncia não basta. Nas emergências, as vozes ouvidas são as que
propõem saídas reais. Está aberta uma larga avenida para
apresentar um conjunto sintético – porém expressivo – de
políticas opostas às atuais. Elas devem ser capazes de, em
conjunto, sinalizar outro horizonte político e outra lógica social,
opostos aos atuais. Nesse sentido serão radicais (e irão muito além
das de Mônica de Bolle e Rodrigo Maia), mas não descoladas das
necessidades concretas da maioria. A recuperação da Saúde pública,
para proteger a população. O resgate do Programa de Saúde da
Família e do Mais Médicos. A concessão de benefícios
previdenciários cruelmente retardados, por uma fila do INSS que o
governo não se empenha em resolver. O auxílio para as pequenas
empresas (e os agricultores familiares) atingidas pela crise.
Para
obter recursos, uma Reforma Tributária de emergência. Talvez um
imposto extraordinário sobre os lucros dos bancos e as grandes
fortunas. O fim da ideia obtusa segundo a qual os Estados não podem
emitir moeda para custear o Comum, embora possam fazê-lo para salvar
os bancos e a aristocracia financeira.
O
Posto Ipiranga não tem mais combustível – e está em chamas. A
oportunidade abriu-se. Haverá, desta vez, quem se disponha a
aproveitá-la?
Fonte Outras Palavras