A páscoa é a inauguração do homem novo, plenamente realizado. Vale para todos os humanos. Portanto, tal evento bem-aventurado não é exclusivo de Jesus. São Paulo nos assegura que nós participamos desta ressurreição:”ele é as primícias (a antecipação) dos que morrem” (1Cor 5,20), “o primeiro entre muitos irmãos e irmãs”(Rom 8,29).
Por Leonardo Boff
Como celebrar a páscoa, a vitória da vida sobre a morte, mais ainda, a
irrupção do homem novo, no contexto de uma sexta-feira santa de paixão,
dor e morte, que não sabemos quando acaba, sob o ataque do coronavírus,
indistintamente, à toda a humanidade?
Pesarosos, mesmo dentro desta pandemia, cabe celebrar a páscoa com
reservada alegria. Ela não é apenas uma festa cristã mas responde a uma
das mais ancestrais utopias humanas: a irrupção do homem novo.
Sempre houve em todas as culturas conhecidas, desde a antiga epopeia
mesopotâmica de Gilgamés, passando pelo mito grego de Pandora e chegando
à utopia da Terra sem Males dos tupi-guarani, a percepção de que o ser
humano assim como o conhecemos deve ser ser superado. Ele não está
pronto. Ainda não acabou de nascer. O verdadeiro homem está latente
dentro dos dinamismos da cosmogênese e da antropogênese. Comparece como
um projeto infinito, portador de potencialidades incontáveis que
forcejam por irromper. Intui que só será plenamente homem, então, o
homem novo, quando tais potencialidades se realizarem em plenitude.
Todos os seus esforços, por maiores que sejam, esbarraram numa
barreira intransponível: a morte. Mesmo o mais velho, chega o dia em que
também vai morrer. Alcançar uma imortalidade biológica, conservadas as
atuais condições espacio-temporais, como alguns propõem, seria um
verdadeiro inferno: buscar realizar o infinito dentro de si e encontrar
apenas finitos que nunca o saciam. Sempre está na espera. Talvez o
espírito mataria o corpo para poder realizar o infinito de seu desejo.
Mas eis que um homem se levanta na Galileia, Jesus de Nazaré e
proclama: “O tempo da espera se esgotou. Aproximou-se a nova ordem a se
introduzida por Deus. Revolucionai-vos em vosso modo de pensar e de
agir. Crede nessa alvissareira notícia”(cf. Mc 1,15: Mt 4,17).
Conhecemos a saga trágica do profético Pregador:”veio para o que era
seu e os seus não o receberam”(Jo 1.11). Ele que “passou pelo mundo
fazendo o bem”(At 10,39) foi rejeitado e acabou pregado na cruz.
Mas eis que três dias após, mulheres foram, bem de madrugada, ao
sepulcro e ouviram uma voz:”Por que procurais entre os mortos, quem está
vivo? Jesus não está aqui. Ressuscitou”(Lc 24,5;Mc 16,6).
Eis o fato novo e sempre esperado:a alvissareira notícia se realizou.
De um morto emergiu um ressuscitado, um ser novo. É o sentido da
páscoa, a festa central do Cristianismo. Seus seguidores logo entenderam
que o Ressuscitado era a realização do sonho ancestral da humanidade:
acabou a espera. Agora é o tempo da vida plena sem a morte. Liberto do
espaço e do tempo e dos condicionamentos humanos o Ressuscitado aparece,
desaparece, está presente com os andantes de Emaus,se apresenta na
praia e come com os apóstolos e é reconhecido ao partir o pão.
Os Apóstolos não sabem como defini-lo. São Paulo, o maior gênio do
pensamento cristão, escolheu a palavra certa: “Ele é o Adão novíssimo”(1
Cor 15,45). O Adão não mais submetido à morte mas aquele que deixou
para trás o velho Adão mortal.
Como que zombando, provoca São Paulo:”Ó morte,onde está a tua
vitória? Onde está o espantalho com o qual amedrontavas os homens? A
morte foi tragada pela vitória de Cristo (1Cor 15,55). Define-o como
sendo “um corpo espiritual” (1 Cor 15,44), vale dizer, é concreto e
reconhecível como o corpo humano, mas de forma diferente, com as
qualidades do espírito. O espírito possui uma dimensão cósmica. Está no
corpo,mas também nas estrelas mais distantes e no coração de Deus. O
espiritual é entendido também como a maneira de ser própria do Espírito
Santo. Ele está em tudo,move todas as coisas e enche o universo.
Um texto antigo, dos anos 50, do evangelho de São Tomé, diz
belamente:”levante a pedra e eu estou debaixo dela, rache a lenha e eu
estou dentro dela, pois estarei convosco todos os dias até a plenitude
dos tempos”. Levantar uma pedra exige força, cortar lenha demanda
esforço. Mesmo ai, está o Ressuscitado, nas coisas mais comezinhas do
cotidiano.
Em suas epístolas, especialmente aos Efésios e aos Colossenses, São
Paulo desenvolve uma verdadeira cristologia cósmica. Ele “é tudo em
todas as coisas”(Col 3,12); “a cabeça de todas as coisas” (Ef 1,10). O
mesmo dirá, no século XX, na linguagem da moderna cosmologia, o
palentólogo e pensador Pierre Teilhard de Chardin.
Devemos compreender corretamente a ressurreição. Não se trata da
reanimação de um cadáver, como aquele de Lázaro que voltou ao que era
antes e acabou morrendo. Ressurreição é a realização plena de todas as
potencialidades abscoditas dentro da realidade humana. A morte não
possui nenhum domínio mais sobre ele. Efetivamente é o nascimento
terminal do ser humano, como se ele tivesse chegado na culminância do
processo evolutivo ou o tivesse antecipado. Na forte expressão de
Teilhard de Chardin, o Ressuscitado explodiu e implodiu para dentro de
Deus.
A páscoa é a inauguração do homem novo, plenamente realizado. Vale
para todos os humanos. Portanto, tal evento bem-aventurado não é
exclusivo de Jesus. São Paulo nos assegura que nós participamos desta
ressurreição:”ele é as primícias (a antecipação) dos que morrem” (1Cor
5,20), “o primeiro entre muitos irmãos e irmãs”(Rom 8,29).
À luz desta festa pascal podemos dizer que a alternativa cristã é
esta: ou a vida ou a ressurreição. Alegremente afirmamos e reafirmamos:
não vivemos para morrer; morremos para ressuscitar
Leonardo Boff é teólogo e escreveu A ressurreição de Cristo e a nossa ressurreição na morte, Vozes,muitas edição 2012.
Fonte LeonardoBOFF.com
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