Pesquisador da USP suspeita: ao radicalizar política de “imunização do
rebanho”, proposta pela ultra-direita, presidente pode visar eliminação
de pobres, idosos e adoecidos. Leia também: verbas da Saúde na barganha
com Centrão
Por Maíra Mathias e Raquel Torres
POLÍTICA DE EXTERMÍNIO
Dois meses atrás, um dos líderes mundiais mais criticados pela sua
resposta à crise do coronavírus era Boris Johnson, primeiro-ministro do
Reino Unido. Naquela época a covid-19 ainda engatinhava por lá: havia
dois mil casos confirmados e 50 mortes. A Itália,
já com mais de cinco mil óbitos, tinha o pior cenário e era a prova do
potencial destruidor desse vírus, que se alastrava exponencialmente.
Mesmo assim, a estratégia britânica, como sabemos, era deixar boa parte
da população se infectar para promover imunidade de rebanho.
No dia 16 de março um estudo científico mudou tudo:
foi o famoso trabalho do Imperial College de Londres que previa no
mínimo 260 mil mortes caso nada fosse feito para impedir o avanço do
coronavírus. Diante disso, em 23 de março Johnson foi à TV anunciar o lockdown (pouco
depois, ele próprio testou positivo para o vírus). O governo britânico
demorou a acordar. Com esse atraso, as infecções cresceram
desgovernadamente, o sistema de saúde colapsou e o Reino Unido passou a
ter o maior número de mortes da Europa. Ainda assim, o enfrentamento
tardio foi melhor do que teria sido a negação absoluta, e a crise parece
enfim controlada. Um plano de reabertura foi anunciado, mas a tentativa
do governo de manter a economia girando no começo das infecções foi um
tiro que saiu pela culatra. Agora, o Reino Unido deve ter uma reabertura
mais tardia e lenta do que o resto do continente.
Por que falar no Reino Unido quando o que nos
interessa nesse momento é o Brasil? Porque, por aqui, não há ciência que
dê conta de trazer seriedade ao discurso do presidente Jair Bolsonaro.
Ainda em março, na mesma semana em que Johnson anunciava o confinamento
geral, Bolsonaro dizia em vídeo que a ‘previsão’ era não se chegar a 800 mortes por covid-19 no Brasil.
Pois é. Agora esse foi um número atingido em menos de 24 horas: o Ministério da Saúde registrou nada menos que 881 óbitos entre
segunda e terça-feira. É um ‘novo recorde’ (expressão que,
infelizmente, anda devemos usar bastante), e já há ao todo 12,4 mil
mortes confirmadas e 177,5 mil casos. Mais de duas mil óbitos estão em
investigação, aguardando testes. São Paulo ainda é o pior estado em
número de casos e mortes (tem quase quatro mil óbitos), seguido pelo Rio (que tem quase dois mil). Porém, hoje metade dos casos já estão nas regiões Norte e Nordeste. Mais de mil municípios já registraram mortes, e o vírus está se interiorizando.
Mesmo assim, Bolsonaro promove ad eternum o
discurso da imunidade de rebanho, afirmando que 70% das pessoas vão se
contaminar de qualquer jeito. Acontece que, se isso ocorrer num período
curto de tempo, o país pode ter 1,8 milhão de mortos, segundo estimam pesquisadores da USP e da UnB.
A insistência não é apenas por um negacionismo da
ciência, diz o médico e diretor do Hospital das Clínicas, Arnaldo
Lichtenstein. “O que vai acontecer, quando as pessoas não defendem o
isolamento? Não se fecha comércio, a economia não para, o governo não
precisa colocar dinheiro na economia. Muitas das pessoas que vão morrer
são os idosos – aí tem a fala de ‘já ia morrer mesmo’ – ou as pessoas
que já têm doenças. E vão ficar os ‘jovens e atletas’. Então se a gente
pegar pedaços da fala tem uma lógica intensa. Isso se chama eugenia;
lembre-se de que sistema político mundial usava isso (…). Quando você
fala que ‘morram os vulneráveis para a gente ter uma geração saudável’,
pode ser que esteja permeando essa história de ‘vamos acabar logo com
essa tortura, não vamos ter o derretimento da economia’. É uma coisa
muito mais perversa do que simplesmente não acreditar na ciência, é um
outro tipo de teoria que pode ser muito pior do que isso”.
Acrescentamos: não se trata apenas de deixar que morram os idosos e os
que têm doenças, mas a população pobre e vulnerável – os mais afetados
pela covid-19 e pela crise econômica que não vai passar tão cedo.
A reprovação ao governo bateu recorde, segundo uma
pesquisa da Confederação Nacional de Transporte com o Instituto MDA.
Chegou a 43%, 12 pontos acima do percentual registrado no levantamento
anterior, de janeiro. A avaliação pessoal do
presidente também é pior: 55,4% dos entrevistados o desaprovam, contra
47% em janeiro. A mesma pesquisa mostra que 67,3% querem distanciamento
social praticado por todas as pessoas, enquanto 29,3% acham que só
idosos e pessoas com doenças crônicas devem se isolar.
PERIGO PARA A REGIÃO
Puxado pelo Brasil e pelos Estados Unidos, o continente americano
ultrapassou a Europa em número de casos (com 1,74 dos 4,2 milhões
registrados no mundo inteiro). “Estamos profundamente preocupados com a
rapidez com que a pandemia está se expandindo. Nossa região levou três
meses para atingir um milhão de casos, mas menos de três semanas para quase o dobro desse
número. (…) O Brasil tem um dos maiores números de casos hoje, tem
transmissão comunitária, as fronteiras são porosas (…) O aumento dos
casos (de covid-19) no Brasil nos últimos dias é uma preocupação”,
afirmou ontem a diretora-geral da Opas, Carissa Etienne. O resto da
América do Sul está em alerta, com cuidados redobrados em relação ao Brasil. Marcos Espinal, também da Opas, ressaltou o perigo que o país representa. “Nossas fronteiras em muitos países são porosas”, disse.
PEQUENAS DIFERENÇAS
Beirando as 180 mil infecções confirmadas pelo novo coronavírus, o
Brasil se tornou o sétimo país com mais casos registrados no mundo,
ultrapassando a Alemanha. Mas, na verdade, está fora de cogitação
confiar nessa colocação no ranking quando se sabe que o Brasil é um dos países do mundo que faz menos testes: até agora, foram 482.743 exames do tipo PCR, só 2% do total prometido pelo
Ministério da Saúde (como já dissemos aqui, a Pasta renovou o
compromisso de fazer 46 milhões de testes no total, sendo 24 milhões
PCR, com resultados mais precisos). Outra promessa era a de zerar
rapidamente a fila de amostras aguardando análise ou a divulgação dos
resultados, mas isso não aconteceu. Na semana passada havia cerca de 95
mil amostras aguardando análise, e esse número segue estável. Além
dessas, há outras 50 mil esperando a divulgação dos resultados. Ou seja,
145 mil testes ainda não revelados.
Para ter uma ideia de como são poucos os menos de
500 mil testes feitos no Brasil: na Alemanha, só na semana passada foram
mais de 330 mil, e o país tem capacidade de fazer semanalmente 838 mil.
Mas nenhum lugar, no mundo todo, se compara nesse
momento a Wuhan, na China. Depois de se ver livre do coronavírus por
algum tempo e de descobrir novamente um pequeno surto (seis casos), foi
anunciada uma campanha que deve durar dez dias para testar simplesmente a população inteira:
11 milhões de pessoas, segundo a imprensa estatal. É uma forma de pegar
todos os casos, inclusive os assintomáticos, e isolá-los para eliminar
qualquer chance de transmissão. Só não se sabe se essa vai ser a solução
sempre que um novo conjunto de casos for observado, já que a cidade não
ficará fechada.
O ÚLTIMO A SABER
O Ministério da Saúde protagonizou outro episódio inacreditável.
Ontem, o secretário substituto de Vigilância em Saúde, Eduardo Macário,
disse que a pasta identificou 39 casos de Síndrome Respiratória Aguda
Grave (SRAG) confirmados para o novo coronavírus antes de 26 de
fevereiro, data do primeiro caso de covid-19 reconhecido oficialmente.
Sim, é isso mesmo: os casos estavam todo esse tempo registrados no sistema.
Para despistar, Macário afirmou que os casos
registrados como coronavírus podem ser apenas “erros de digitação”.
Questionado na coletiva de imprensa se não seria improvável 39 erros do
gênero, ele retrucou que “são milhares e milhares de dados que são
digitados e coletados diariamente”. Além disso, o secretário não soube
precisar quando teria ocorrido o caso mais antigo, mas disse que “tem
alguns de janeiro”. Mas só ontem, cinco meses depois, o Ministério
enviou ofícios para os estados onde os registros foram feitos para que
os casos sejam investigados.
CABO DE GUERRA
Logo que Bolsonaro anunciou a tresloucada inclusão de barbearias,
salões de beleza e academias de ginástica como serviços essenciais
durante a pandemia, governadores de todo o país se opuseram e
avisaram que não cumpririam. Têm autonomia para isso, como lembramos
ontem. Mas o presidente promete dificultar as coisas: “Se por ventura o
governador falar que não vai cumprir, a AGU e o Ministério da Justiça vão tomar a devida medida.
Já falei para vocês. Quando qualquer um de nós achar que um decreto
está exagerado, tem dois caminhos: a Justiça e o Parlamento. No caso de
decreto, chama-se projeto de decreto legislativo, para tornar sem efeito
o decreto”, ameaçou ontem, em frente ao Palácio da Alvorada.
A propósito, depois que o ministro da Saúde Nelson Teich soube do decreto pela imprensa, começaram a circular rumores sobre sua fritura,
menos de um mês depois da posse. Bolsonaro minimizou o problema: “Não é
porque faltou um contato que vamos desclassificar esse novo decreto que
trata de mais algumas profissões. Quantas vezes você chega em casa com
um colega para almoçar e não avisa a sua esposa? Vai acabar o casamento por causa disso?”, indagou o presidente, usando sua metáfora preferida.
Leia matéria completa aqui: A Possível Eugenia Bolsonarista.
Fonte Outra Saúde
O Brasil de hoje é um exemplo para o mundo de como a ignorância política de um povo é capaz de destruir um país