quarta-feira, 13 de maio de 2020

A POSSÍVE EUGENIA BOLSONARISTA


Pesquisador da USP suspeita: ao radicalizar política de “imunização do rebanho”, proposta pela ultra-direita, presidente pode visar eliminação de pobres, idosos e adoecidos. Leia também: verbas da Saúde na barganha com Centrão






Por Maíra Mathias e Raquel Torres

POLÍTICA DE EXTERMÍNIO

Dois meses atrás, um dos líderes mundiais mais criticados pela sua resposta à crise do coronavírus era Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido. Naquela época a covid-19 ainda engatinhava por lá: havia dois mil casos confirmados e 50 mortes. A Itália, já com mais de cinco mil óbitos, tinha o pior cenário e era a prova do potencial destruidor desse vírus, que se alastrava exponencialmente. Mesmo assim, a estratégia britânica, como sabemos, era deixar boa parte da população se infectar para promover imunidade de rebanho.

No dia 16 de março um estudo científico mudou tudo: foi o famoso trabalho do Imperial College de Londres que previa no mínimo 260 mil mortes caso nada fosse feito para impedir o avanço do coronavírus. Diante disso, em 23 de março Johnson foi à TV anunciar o lockdown (pouco depois, ele próprio testou positivo para o vírus). O governo britânico demorou a acordar. Com esse atraso, as infecções cresceram desgovernadamente, o sistema de saúde colapsou e o Reino Unido passou a ter o maior número de mortes da Europa. Ainda assim, o enfrentamento tardio foi melhor do que teria sido a negação absoluta, e a crise parece enfim controlada. Um plano de reabertura foi anunciado, mas a tentativa do governo de manter a economia girando no começo das infecções foi um tiro que saiu pela culatra. Agora, o Reino Unido deve ter uma reabertura mais tardia e lenta do que o resto do continente.

Por que falar no Reino Unido quando o que nos interessa nesse momento é o Brasil? Porque, por aqui, não há ciência que dê conta de trazer seriedade ao discurso do presidente Jair Bolsonaro. Ainda em março, na mesma semana em que Johnson anunciava o confinamento geral, Bolsonaro dizia em vídeo que a ‘previsão’ era não se chegar a 800 mortes por covid-19 no Brasil.

Pois é. Agora esse foi um número atingido em menos de 24 horas: o Ministério da Saúde registrou nada menos que 881 óbitos entre segunda e terça-feira. É um ‘novo recorde’ (expressão que, infelizmente, anda devemos usar bastante), e já há ao todo 12,4 mil mortes confirmadas e 177,5 mil casos. Mais de duas mil óbitos estão em investigação, aguardando testes. São Paulo ainda é o pior estado em número de casos e mortes (tem quase quatro mil óbitos), seguido pelo Rio (que tem quase dois mil). Porém, hoje metade dos casos já estão nas regiões Norte e Nordeste. Mais de mil municípios já registraram mortes, e o vírus está se interiorizando.

Mesmo assim, Bolsonaro promove ad eternum o discurso da imunidade de rebanho, afirmando que 70% das pessoas vão se contaminar de qualquer jeito. Acontece que, se isso ocorrer num período curto de tempo, o país pode ter 1,8 milhão de mortos, segundo estimam pesquisadores da USP e da UnB.

A insistência não é apenas por um negacionismo da ciência, diz o médico e diretor do Hospital das Clínicas, Arnaldo Lichtenstein. “O que vai acontecer, quando as pessoas não defendem o isolamento? Não se fecha comércio, a economia não para, o governo não precisa colocar dinheiro na economia. Muitas das pessoas que vão morrer são os idosos – aí tem a fala de ‘já ia morrer mesmo’ – ou as pessoas que já têm doenças. E vão ficar os ‘jovens e atletas’. Então se a gente pegar pedaços da fala tem uma lógica intensa. Isso se chama eugenia; lembre-se de que sistema político mundial usava isso (…). Quando você fala que ‘morram os vulneráveis para a gente ter uma geração saudável’, pode ser que esteja permeando essa história de ‘vamos acabar logo com essa tortura, não vamos ter o derretimento da economia’. É uma coisa muito mais perversa do que simplesmente não acreditar na ciência, é um outro tipo de teoria que pode ser muito pior do que isso”. Acrescentamos: não se trata apenas de deixar que morram os idosos e os que têm doenças, mas a população pobre e vulnerável – os mais afetados pela covid-19 e pela crise econômica que não vai passar tão cedo.

A reprovação ao governo bateu recorde, segundo uma pesquisa da Confederação Nacional de Transporte com o Instituto MDA. Chegou a 43%, 12 pontos acima do percentual registrado no levantamento anterior, de janeiro. A avaliação pessoal do presidente também é pior: 55,4% dos entrevistados o desaprovam, contra 47% em janeiro. A mesma pesquisa mostra que 67,3% querem distanciamento social praticado por todas as pessoas, enquanto 29,3% acham que só idosos e pessoas com doenças crônicas devem se isolar.

PERIGO PARA A REGIÃO

Puxado pelo Brasil e pelos Estados Unidos, o continente americano ultrapassou a Europa em número de casos (com 1,74 dos 4,2 milhões registrados no mundo inteiro). “Estamos profundamente preocupados com a rapidez com que a pandemia está se expandindo. Nossa região levou três meses para atingir um milhão de casos, mas menos de três semanas para quase o dobro desse número. (…) O Brasil tem um dos maiores números de casos hoje, tem transmissão comunitária, as fronteiras são porosas (…) O aumento dos casos (de covid-19) no Brasil nos últimos dias é uma preocupação”, afirmou ontem a diretora-geral da Opas, Carissa Etienne. O resto da América do Sul está em alerta, com cuidados redobrados em relação ao Brasil. Marcos Espinal, também da Opas, ressaltou o perigo que o país representa. “Nossas fronteiras em muitos países são porosas”, disse.

PEQUENAS DIFERENÇAS

Beirando as 180 mil infecções confirmadas pelo novo coronavírus, o Brasil se tornou o sétimo país com mais casos registrados no mundo, ultrapassando a Alemanha. Mas, na verdade, está fora de cogitação confiar nessa colocação no ranking quando se sabe que o Brasil é um dos países do mundo que faz menos testes: até agora, foram 482.743 exames do tipo PCR, só 2% do total prometido pelo Ministério da Saúde (como já dissemos aqui, a Pasta renovou o compromisso de fazer 46 milhões de testes no total, sendo 24 milhões PCR, com resultados mais precisos). Outra promessa era a de zerar rapidamente a fila de amostras aguardando análise ou a divulgação dos resultados, mas isso não aconteceu. Na semana passada havia cerca de 95 mil amostras aguardando análise, e esse número segue estável. Além dessas, há outras 50 mil esperando a divulgação dos resultados. Ou seja, 145 mil testes ainda não revelados.

Para ter uma ideia de como são poucos os menos de 500 mil testes feitos no Brasil: na Alemanha, só na semana passada foram mais de 330 mil, e o país tem capacidade de fazer semanalmente 838 mil.

Mas nenhum lugar, no mundo todo, se compara nesse momento a Wuhan, na China. Depois de se ver livre do coronavírus por algum tempo e de descobrir novamente um pequeno surto (seis casos), foi anunciada uma campanha que deve durar dez dias para testar simplesmente a população inteira: 11 milhões de pessoas, segundo a imprensa estatal. É uma forma de pegar todos os casos, inclusive os assintomáticos, e isolá-los para eliminar qualquer chance de transmissão. Só não se sabe se essa vai ser a solução sempre que um novo conjunto de casos for observado, já que a cidade não ficará fechada.

O ÚLTIMO A SABER

O Ministério da Saúde protagonizou outro episódio inacreditável. Ontem, o secretário substituto de Vigilância em Saúde, Eduardo Macário, disse que a pasta identificou 39 casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) confirmados para o novo coronavírus antes de 26 de fevereiro, data do primeiro caso de covid-19 reconhecido oficialmente. Sim, é isso mesmo: os casos estavam todo esse tempo registrados no sistema

Para despistar, Macário afirmou que os casos registrados como coronavírus podem ser apenas “erros de digitação”. Questionado na coletiva de imprensa se não seria improvável 39 erros do gênero, ele retrucou que “são milhares e milhares de dados que são digitados e coletados diariamente”. Além disso, o secretário não soube precisar quando teria ocorrido o caso mais antigo, mas disse que “tem alguns de janeiro”. Mas só ontem, cinco meses depois, o Ministério enviou ofícios para os estados onde os registros foram feitos para que os casos sejam investigados. 

CABO DE GUERRA

Logo que Bolsonaro anunciou a tresloucada inclusão de barbearias, salões de beleza e academias de ginástica como serviços essenciais durante a pandemia, governadores de todo o país se opuseram e avisaram que não cumpririam. Têm autonomia para isso, como lembramos ontem. Mas o presidente promete dificultar as coisas: “Se por ventura o governador falar que não vai cumprir, a AGU e o Ministério da Justiça vão tomar a devida medida. Já falei para vocês. Quando qualquer um de nós achar que um decreto está exagerado, tem dois caminhos: a Justiça e o Parlamento. No caso de decreto, chama-se projeto de decreto legislativo, para tornar sem efeito o decreto”, ameaçou ontem, em frente ao Palácio da Alvorada.

A propósito, depois que o ministro da Saúde Nelson Teich soube do decreto pela imprensa, começaram a circular rumores sobre sua fritura, menos de um mês depois da posse. Bolsonaro minimizou o problema: “Não é porque faltou um contato que vamos desclassificar esse novo decreto que trata de mais algumas profissões. Quantas vezes você chega em casa com um colega para almoçar e não avisa a sua esposa? Vai acabar o casamento por causa disso?”, indagou o presidente, usando sua metáfora preferida.

Leia matéria completa aqui: A Possível Eugenia Bolsonarista.  

Fonte Outra Saúde 


O Brasil de hoje é um exemplo para o mundo de como a ignorância política de um povo é capaz de destruir um país