Ângela Carrato: Assim, enquanto a elite brasileira tenta “ganhar tempo” em função dos
seus interesses, aqueles que “não têm tempo a perder”, sabem que a
questão para eles é de vida ou morte. Para esses, não cabem mais adiamentos. A hora é agora.
Vi o Mundo
Por Ângela Carrato*, especial para o Viomundo
Com uma morte por covid-19 a cada minuto, o Brasil já assumiu o triste posto de um dos líderes mundiais em mortos e infectados.
Mesmo assim, o ministério da Saúde, que deveria implementar e
coordenar a agenda nacional de combate à pandemia, está sem titular
desde o pedido de demissão de Nelson Teich.
Milhares de vidas de brasileiros já foram perdidas e outros tantos
ainda morrerão, mas nada é feito para se conter esse genocídio.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) continua guardando a sete chaves 35 pedidos de impeachment de Bolsonaro.
Pedidos formulados por partidos políticos, entidades da sociedade
civil e até cidadãos comuns. Quando questionado sobre as razões de não
pautar essa discussão, Maia escorrega e diz que o momento não é
adequado.
O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto
Barroso, agendou, para a próxima terça-feira, o julgamento de duas ações
que pedem a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão, por irregularidades na
campanha eleitoral de 2018.
Dificilmente essas ações levarão à condenação da chapa, pois não dizem respeito às fake news
e sim a um ataque cibernético que um grupo de mulheres que criticava
Bolsonaro durante a campanha foi alvo. Nesse caso, não há provas
consistentes que liguem Bolsonaro ao ataque.
Provas mais do que suficientes de uso de fake news por parte do governo Bolsonaro, no entanto, existem.
Relatório produzido a pedido da Comissão Mista Parlamentar de Inquérito (CPMI) das Fake News
identificou que 653.378 anúncios em 47 canais de notícias falsas foram
pagos com verba da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da
República (Secom) em apenas 38 dias, entre 6 de junho e 13 de julho de
2019.
Entre os canais recordistas de veiculações pela Secom estão o site
“Sempre Questione”, que traz matérias sobre “múmias alienígenas
escondidas em pirâmides do Egito” e os dedicados a promover a imagem de
Bolsonaro, como o canal do YouTube Terça Livre TV, pertencente ao
blogueiro Allan dos Santos, que recebeu farta publicidade oficial.
Allan dos Santos é também um dos 29 suspeitos de divulgar fake news
contra o Supremo Tribunal Federal (STF) que foi alvo de busca e
apreensão, além de ter tido seus sigilos fiscal e telefônico quebrados
há pouco mais de uma semana, por determinação do ministro Alexandre de
Morais.
A tomada de depoimentos está em andamento, mas não deixa de ser
sintomático que os filhos de Bolsonaro tenham recrudescido nas críticas
que fazem ao STF e o próprio Bolsonaro tenha dito que estão querendo
criminalizar “a imprensa que me apóia”.
O problema é que essa imprensa que o apóia tem divulgado mentiras e
está sendo paga com dinheiro público. O que caracteriza duplo crime.
Mesmo assim, até o momento, o ministro Alexandre de Morais reluta em tomar medidas mais duras contra esses blogueiros.
SITUAÇÃO EXPLOSIVA
No plano econômico, a situação do Brasil não poderia estar pior.
Os dados do IBGE indicam uma queda de 18,8% na atividade industrial,
na passagem de março para abril desde ano, a maior registrada desde o
início dessa série histórica, em 2002.
Entre os setores mais atingidos estão a indústria automobilística e a
de tecidos e confecções. O resultado é que novos milhares de pessoas
perderam seus postos de trabalho e agora se somam aos 12 milhões de
desempregados e aos mais de 40 milhões que vivem na informalidade.
As ruas dos grandes e médios centros urbanos brasileiros são testemunhas do aumento visível da pobreza e da miséria.
Na política externa, a situação do governo Bolsonaro também é muito ruim.
Os democratas, que são maioria na Câmara dos Deputados dos Estados
Unidos, se opõem a que o governo Trump amplie a parceria econômica com o
Brasil.
Os legisladores estadunidenses citam “o desrespeito aos direitos
humanos, aos direitos dos trabalhadores e ao meio ambiente” como as
razões pelas quais não deve haver qualquer ampliação da parceria.
Apesar da insistência de Bolsonaro em se aproximar cada vez mais de
Trump, o próprio Trump está cada dia mais complicado e vendo as chances
de ser reeleito, em novembro próximo, encolherem.
A demora de Trump em reagir e tomar providências em relação ao
covid-19 fez com que a pandemia se alastrasse pelos Estados Unidos.
Some-se a isso que a morte de um homem negro, George Floyd, por
policiais brancos em Minneapolis, trouxe à tona todos os problemas
ligados ao racismo estrutural e à desigualdade naquele país que se
considera “a maior democracia do mundo”.
O resultado é que o candidato democrata, Joe Biden, segundo pesquisa
da CNN, já está oito pontos à frente de Trump na corrida presidencial.
Bolsonaro e seus apoiadores obviamente estão de olho no que acontece nos Estados Unidos.
Além de Bolsonaro procurar se espelhar em Trump, ele sabe que a
situação dos negros no Brasil é tão ou mais explosiva que a dos Estados
Unidos, especialmente num momento que tanto aqui como lá, são os negros e
os pobres, moradores de aglomerados e da periferia, os mais atingidos
pelo covid-19.
Mas, ao contrário de Trump, Bolsonaro parece disposto a pagar para
ver. Tanto que vetou o repasse de R$ 8,6 bilhões a governos estaduais e
municipais para o uso no combate à pandemia.
Atitudes assim indicam que ele, mesmo acreditando na existência de
“complôs” contra seu governo, parece seguro o suficiente de que não
interessa à elite que o levou ao poder, retirá-lo de lá.
ESTÁ RUIM E VAI PIORAR
A eleição de Bolsonaro, marcada por fraudes, não foi algo que surpreendeu à elite brasileira.
Ao contrário, foi uma opção. Cansada de perder eleições democráticas,
essa elite foi quem derrubou do poder, sem crime de responsabilidade,
Dilma Rousseff, apoiou a condenação, sem provas, e prisão do
ex-presidente Lula e a proibição para que disputasse as eleições de
2018.
Foi essa mesma elite que entre a vitória do candidato Fernando
Haddad, do PT, um professor e um humanista, e Bolsonaro, então no PSL,
um militar reformado, truculento e fascista, preferiu o segundo.
Preferência que diz muito. Significa que essa elite queria dar um
basta nas políticas de inclusão social, no combate às desigualdades e na
política externa soberana, vigentes nos governos petistas.
E o resultado do golpe está aí. Enquanto há 10 anos o Brasil estava
prestes a ultrapassar a França como quinta maior potência do mundo,
agora o país não fabrica mais nem respiradores e vê seu mercado interno
encolher de forma drástica.
Some-se a isso que, com o governo atual, as chances de retomada do crescimento no pós-pandemia são inexistentes.
O capital externo não investirá aqui, porque não há ambiente seguro
para negócios e o capital interno continuará recolhido, pois não é sua
característica arriscar em situações incertas.
Uma possível retomada do crescimento teria que ser puxada pelo
Estado, mas isso o ministro da Economia, Paulo Guedes, um ultraliberal
convicto, não quer nem ouvir falar. Aliás, sua intenção é aproveitar a
pandemia para continuar promovendo novos ajustes, na contramão de tudo o
que está sendo feito no mundo.
Em outras palavras, se a situação está ruim, ela tende a piorar, com
os níveis de empobrecimento passando a atingir, em cheio, também a
classe média.
Daí a pergunta: por que Bolsonaro continua no poder?
O RISCO DE SE PEGAR O PRIMEIRO ÔNIBUS
Existe uma expressão inglesa “buying time” cuja tradução literal é “tempo comprado” ou “dar tempo ao tempo”.
Ela significa adiar um acontecimento iminente, na tentativa de ainda o impedir.
É exatamente isso o que a elite brasileira está fazendo em relação ao
governo Bolsonaro. Ela sabe que Bolsonaro não tem mais condição de
permanecer no cargo, pelo “conjunto da obra” e a incapacidade de propor
algum projeto viável para o Brasil, mas está tentando adiar ao máximo a
sua queda, porque ainda não encontrou uma solução que a satisfaça.
Vale dizer: uma solução que mantenha a aparência democrática e que exclua a oposição, em especial o PT, de retorno ao poder.
É dentro desse contexto que se pode entender as críticas pontuais de
políticos como o governador de São Paulo, o tucano, João Dória, ou
Rodrigo Maia a Bolsonaro.
É dentro desse contexto que se deve entender a profusão de manifestos
e abaixo-assinados que tomou conta da cena política nacional nos
últimos dias e mesmo a oposição conservadora que parte da mídia, Grupo
Globo à frente, vem fazendo a Bolsonaro.
Qual o ponto que une todas essas “críticas”?
A busca por uma solução que retire Bolsonaro do poder, mas mantenha
intacta a sua agenda econômica ultraliberal (retirada de direitos da
maioria da população, venda do patrimônio público, perda da soberania
nacional).
Dito de outra forma, a elite brasileira ganha tempo, com o objetivo
de impedir que os interesses dos setores populares sejam ouvidos.
“Juntos pela Democracia e pela Vida” é um desses manifestos que critica a situação atual.
O texto é de responsabilidade de uma organização chamada Pacto pela
Democracia, que tem como patronos alguns bilionários, como a Fundação
Leman, de Jorge Paulo Leman, homem mais rico do Brasil, Maria Alice
Setúbal, herdeira do banco Itaú, e Beatriz Bracher, mãe de Cândido
Bracher, presidente do Itaú.
Estão também entre os apoiadores do movimento uma ONG dos Estados
Unidos ligada às chamadas guerras híbridas, a National Endownment for
Democracy.
Outro manifesto, o “Estamos Juntos”, que mereceu amplos espaços de
divulgação na mídia corporativa, teve, segundo seus organizadores, esses
anúncios pagos por pessoas físicas e não por empresas. Figuram entre
seus signatários também Maria Alice Setúbal e Beatriz Bracher.
Em que pese esses manifestos falarem em democracia, não se referem de
forma concreta aos interesses dos trabalhadores e da maioria dos
brasileiros.
Razão pela qual o ex-presidente Lula, em uma sequência de tweets que
publicou, deixou claro que não dá para aceitar a ideia, como querem
alguns, de que Bolsonaro é resultado de um processo amplamente
democrático e, mais ainda, alertou as pessoas para o risco de “pegarem o
primeiro ônibus que tá passando”.
De acordo com Lula, “estão querendo reeducar o Bolsonaro, mas não
querem reeducar o Guedes. Tem pouca coisa do interesse da classe
trabalhadora nesses manifestos”.
Lula estava se referindo também ao editorial publicado pelo jornal O Globo,
em 31/05, sob o título “Os democratas precisam conversar”, no qual a
publicação líder do Grupo Globo defende o entendimento entre as diversas
forças políticas, incluindo o próprio Bolsonaro.
OS QUERIDINHOS DA ELITE
Por experiência política, Lula sabe do que está falando. A história
recente do Brasil encontra-se repleta de exemplos de como a elite
liberal, agora ultraliberal, sob o guarda-chuva de “democrata” confundiu
a opinião pública e “buying time” no que diz respeito aos seus
interesses.
Foi assim, por exemplo, com o fim da ditadura civil-militar de 1964.
Era para as décadas de autoritarismo terem sido concluídas com a
realização de eleições diretas para presidente da República.
Mas o que fez a elite braseira? Derrotou a emenda das diretas-já no
Congresso Nacional e a sucessão do último general-presidente se deu de
forma indireta, via Colégio Eleitoral.
O vitorioso, Tancredo Neves, integrante da oposição moderada, representava uma solução de compromisso.
Diante de sua morte, antes mesmo de assumir, a solução encontrada
pelas elites, ao arrepio da lei, foi empossar o seu vice, José Sarney
que, até pouco antes, era nada menos do que o presidente do partido
situacionista.
Em tais circunstâncias, o que a lei determinava era a realização de
novas eleições. Mas sobre esse assunto a elite não quis nem ouvir falar.
A passagem da ditadura para a democracia se deu assim, sem que os
responsáveis por arbítrios e violências de toda ordem fossem
responsabilizados. O resultado está sendo sentido ainda hoje, com as
defesas, por parte de alienados ou oportunistas, da “intervenção
militar”.
O governo de Sarney nada mais foi do que a continuação, em trajes
civis, dos 21 anos de militares no poder. E mesmo que a Constituinte,
por ele convocada, tenha avançado em vários aspectos importantes para a
maioria da população, ela só saiu do papel efetivamente nos governos
petistas.
É importante ressaltar que na eleição de 1991, a primeira pelo voto
direito para presidente desde 1960, o vencedor foi um jovem, porém
representante da velha oligarquia nordestina, Fernando Collor, com o
apoio da mídia corporativa brasileira, TV Globo à frente.
O Grupo Globo, aliás, teve participação fundamental contra candidatos como Lula, Leonel Brizola ou mesmo Ulysses Guimarães.
E se o Grupo Globo foi importante no processo que culminou com a
renúncia de Collor, para se livrar do impeachment, seu vice, Itamar
Franco, que não era exatamente um liberal, encontrou um caos tamanho no
governo que não teve tempo para avançar em qualquer outra pauta que não
fosse o combate à inflação.
Daí não ter havido tempo hábil para que suas diferenças com a elite brasileira aparecessem.
O primeiro governo do tucano Fernando Henrique Cardoso foi cercado
por aplausos dessa elite e pelos interesses internacionais, porque ele
começou a colocar em pauta a agenda neoliberal já presente em países da
Europa e nos Estados Unidos.
Agenda que foi aprofundada em seu segundo governo (quem se lembra da
reeleição comprada?), quando das privatizações da telefonia, da Cia Vale
do Rio Doce e de centenas de outras empresas estatais.
FHC e os políticos tucanos (Dória que o diga) continuam sendo os queridinhos da elite brasileira e da Globo.
O problema é que no voto, nenhum deles conseguiu vencer Lula ou
Dilma. Daí essa elite ter partido para soluções não democráticas como o
golpe, travestido em impeachment, a eleição fraudada de Bolsonaro e,
agora, a tentativa de “domesticar” Bolsonaro ou mesmo manter sua agenda
através de um grande entendimento que, claro, exclua o PT e demais
partidos de efetiva oposição.
Não é por acaso que os editoriais de O Globo, considerado “a
voz do trono” da família Marinho, começam a insistir nessa tecla. Não é
por acaso que jornais conservadores como os matutinos Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo vêm tentando comparar o ex-presidente Lula com Bolsonaro, como se tivessem alguma semelhança.
A tentativa de compará-los faz sentido quando se percebe que o
objetivo dessa mídia é neutralizar Lula e abrir espaço para um
entendimento que não leve em conta os interesses da maioria dos
brasileiros.
Prova disso é que apenas a oposição conservadora – FHC, Dória, Maia e
até o ex-ministro Moro – são os únicos que têm espaço garantido contra
Bolsonaro nesses jornais e na própria TV Globo.
Você se lembra quando foi a última vez que a Globo entrevistou Lula?
DA POLÍTICA PARA O MERCADO
O Estado de S. Paulo nessa linha, tem ido um pouco além,
publicando artigos do vice-presidente Hamilton Mourão em que ele tenta
se diferençar de Bolsonaro.
Esses artigos, para além da incrível falta de sensibilidade para com
os que sofrem neste momento, têm conseguido apenas deixar mais visível
sua face igualmente autoritária.
Parlamento, grandes empresários e mídia corporativa são apenas algumas faces da elite brasileira.
Essa mesma elite que prefere “buying time”, dar tempo ao tempo, a
Bolsonaro, enquanto não consegue uma solução que seja palatável aos seus
interesses.
O sociólogo alemão Wolfgang Streeck, no livro cujo título é exatamente “Tempo Comprado, a crise adiada do capitalismo democrático”, mesmo sem se referir ao Brasil, faz uma descrição minuciosa do que estamos vivendo na economia e suas implicações na política.
De acordo com Streeck, nas democracias transformadas pelo
neoliberalismo e agora pelo ultraliberalismo, não há nenhuma
incompatibilidade entre o máximo de exploração e mesmo de arbítrio e o
capitalismo.
Para deixar mais claro o ponto de vista do autor, se no período do
pós-Segunda Guerra Mundial acreditava-se no “capitalismo do bem”,
representado pelos estados keynesiasnos, essa possibilitada viu-se
sepultada a partir do fim dos anos 1960.
De lá para cá, o lugar de garantia de apoio para o capitalismo
moderno transferiu-se da política (massas populares, partidos) para o
mercado e, nos dias atuais, atinge o clímax da financeirização.
O que explica muito do teor de alguns dos manifestos que estão circulando e a própria blindagem da mídia corporativa a Guedes.
Sem tempo a perder, pois o que está em jogo é a sua própria vida,
manifestações antifascistas no Brasil começam a surgir em plena
pandemia, a partir de setores que não têm envolvimento
político-partidário: as torcidas organizadas de times de futebol.
A elas estão se seguindo outros setores, como o Povo Sem Medo e o
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) que devem ir às ruas no
próximo domingo (07/6) em São Paulo.
Assim, enquanto a elite brasileira tenta “ganhar tempo” em função dos
seus interesses, aqueles que “não têm tempo a perder”, sabem que a
questão para eles é de vida ou morte.
Para esses, não cabem mais adiamentos. A hora é agora.
*Ângela Carrato é jornalista e pofessora do Departamento de Comunicação Social da UFMG.
Fonte Vi o Mundo
O VERME VETOU OS 8,6 BILHÕES APROVADOS PELO CONGRESSO PARA A COMPRA DE EQUIPAMENTOS HOSPITALARES DO COMBATE AO VÍRUS.