Náufrago da utopia
Por Celso Lungaretti
Eu tinha 13 anos em 31 de março de 1964.
Puxando pela memória, só consigo me lembrar de que a TV vendia o golpe
de estado em grande estilo, insuflando tamanha euforia patrioteira que
os cordeirinhos faziam fila para atender ao apelo "dê ouro para o bem do
Brasil!".
Matronas iam orgulhosamente tirar suas alianças e oferecê-las aos salvadores da Pátria, torcendo para que as câmeras as estivessem focalizando naquele momento solene.
Desde muito cedo eu peguei bronca dessas situações em que a multidão se
move segundo uma coreografia traçada por alguém acima dela, com cada
pessoa tanto esforçando-se para representar bem seu papel... que acaba
parecendo, isto sim, artificial e canhestra.
De paradas de 7 de setembro a procissões, eu não suportava a falsa
uniformidade. Gostava de ver cada indivíduo sendo ele próprio, igual a
todos e diferente de todos ao mesmo tempo.
E, na preparação do clima para a quartelada, houvera a Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade. Aquelas senhoras embonecadas e aqueles senhores engravatados me pareceram sumamente ridículos.
Aqui cabe uma explicação: duas fortes influências me indispunham contra o
patético desfile daquela classe média abasta(rda)da, que detestava
tanto o comunismo quanto o samba, talvez porque fosse ruim da cabeça e doente do pé.
Minha família era kardecista e, quando
eu tinha oito, nove anos, me levava num centro espírita cujo orador
falava muito bem... e era exacerbadamente anticatólico.
Da mesma forma, o dia que mudou todo meu futuro -- seja o 31 de março do
calendário dos tiranos, seja o 1º de abril em que a mentira tomou conta
da Nação -- não teve nada de mais.
A cada semana recriminava a riqueza e a falta de caridade da Igreja,
contrastando-a com a miséria do seu rebanho. Cansava de repetir que
Cristo expulsara os vendilhões do tempo, mas estes estavam todos
encastelados no Vaticano.
Vai daí que, cabeça feita por esse devoto tardio do cristianismo das
catacumbas, eu jamais poderia aplaudir um movimento de católicos
opulentos.
E devorara a obra infantil de Monteiro Lobato inteira. Com ele aprendera
a prezar a simplicidade, desprezando a ostentação e o luxo; a respeitar
os sábios e artistas, de preferência aos ganhadores de dinheiro.
Mas, afora essa rejeição, digamos, estética, eu não tinha opinião sobre a tal da Redentora.
Escutava meu avô dizendo que, se viesse o comunismo, ele teria de dividir sua casa com uma família de baianos (o termo pejorativo com que os paulistas designavam os excluídos da época, predominantemente nordestinos).
Registrava a informação, que me parecia um tanto fantasiosa, mas não tinha certeza de que Vovô estivesse errado.
O certo é que os grandes acontecimentos nacionais me interessavam muito pouco, pois pertenciam à realidade ainda distante do mundo adulto.
O certo é que os grandes acontecimentos nacionais me interessavam muito pouco, pois pertenciam à realidade ainda distante do mundo adulto.
Na canção em que Caetano descreveu sua partida de Santo Amaro da
Purificação para tentar a sorte na cidade grande, ele disse que "no dia
que eu vim-me embora/ não teve nada de mais", afora um detalhe prosaico:
"senti apenas que a mala/ de couro que eu carregava/ embora estando
forrada/ fedia, cheirava mal".
Gostaria de poder afirmar que, logo no
primeiro momento, percebi a tragédia que se abatera sobre nós: estávamos
começando a carregar uma fedorenta mala sem alça, da qual não nos
livraríamos por 21 longos anos.
Os mentirosos eram os outros. Os fardados, as embonecadas e os engravatados.
Mas, seria abusar da licença poética e eu não minto, nem para tornar mais charmosas as minhas crônicas.
Fonte Náufrago da Utopia
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