Cada um lembra o Ulysses que lhe interessa. Eu o recordo como o último político liberal-social de uma escola que se acabou, com a degradação da classe política. Ele, que idealizava o Parlamento, onde fez toda sua carreira, lamentaria a pobreza do atual Congresso, reduzido a uma casa de homens de negócios sem pudor.
Por Tereza Cruvinel
A memória de Ulysses Guimarães merece as honrosas lembranças do
centenário de seu nascimento, neste 6 de outubro. Devemos lembra-lo
agora e sempre, por sua integridade, por seu destemor diante da
ditadura, por seu papel na transição e pelo empenho na produção de uma
Constituição comprometida com a transformação do Brasil, que lhe custou o
sacrifício da própria saúde, a presidência da Constituinte o exauriu
fisicamente, seu vigor balançou mas logo ele soergueu-se para novas
batalhas. Faltam porém duas perguntas nos depoimentos, artigos e
reflexões sobre o legado de Ulysses. A primeira: 28 anos depois da
promulgação, por um Ulysses trêmulo de emoção, mas com a voz firme
trovejante de sempre, o que restou da Constituição Cidadã? A segunda: se
vivo estivesse, o que diria Ulysses das feridas que vêm sendo abertas
na democracia pela qual se bateu com energia e coragem, enfrentando até
mesmo os cães da ditadura? O que diria ele sobre os ensaios em curso
para um novo Estado de exceção, em que parcelas do Judiciário, do
Ministério Público, da Polícia Federal e da mídia substituem as
baionetas e os tanques da ditadura para impor suas convicções?
Da Constituição de 1988, que não é obra individual de
Ulysses mas é fruto de sua liderança e de seu compromisso nas praças,
durante as lutas pela redemocratização, muito já foi descartado nestes
28 anos. Sem Ulysses, a Carta teria sido outra, e o processo
Constituinte talvez não tivesse sido o que foi: um pacto entre de todos
os brasileiros, que através de corporações, sindicatos, associações,
movimentos sociais, capital e trabalho, índios, brancos e negros,
minorias e maiorias, acorreram ao Congresso para apresentar demandas e
negociar os termos dos artigos que inscreveriam direitos, garantias e
deveres na Carta estava sendo escrita. Vivi profissionalmente aqueles
quase dois anos singulares e posso assegurar que nunca o Congresso
mereceu tanto, como naquele período, ser chamado de “a casa do povo”. E
tudo acontecia porque o presidente permitia. Mais que isso, fazia
questão que houvesse participação popular no processo, e que de tudo a
população fosse informada através do “Diário da Constituinte”, que ia ao
ar todos os dias e era também impresso. “A participação foi também pela
presença, pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam
livremente as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do
Parlamento, à procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões”,
lembrou ele no discurso da promulgação.
Mas o que restou da “Constituição Cidadã”, que no dizer dele
era a “constituição peregrina”, destinada a unir e incluir? A última
proposta de emenda constitucional proposta pelo Governo Temer tem o
número 241. É a PEC que limita o gasto público ao índice da inflação do
ano anterior, sacrificando políticas de educação e saúde, que a
Constituição entronizou como direitos de todos e dever do Estado. Salvo
algum erro em minhas atualizações, a Constituição já sofreu 93 emendas.
Muitas foram necessárias, muitos foram desconstruções do espírito da
Constituinte que surgiu da urnas de 1986. Urnas que, por sinal, deram
maioria absoluta ao PMDB de Ulysses. Outro PMDB o sucedeu, e este
contribuiu para muitas alterações e agora patrocina uma que ofenderia
Ulysses: a PEC 241 não apenas engessa o gasto público, comprometendo
direitos constitucionais, como também legisla para o futuro, invadindo
competências de futuros presidentes, que terão de obedecer aos limites
que agora serão impostos. Logo, a emenda alcança a vontade dos eleitores
do futuro. Continuamos tendo uma Constituição admirável em sua
preocupação com o cidadão mas é exatamente este o ponto que vem sendo
mutilado por sucessivas emendas. Tenho certeza de que Ulysses
discordaria de muitas destas alterações dos anos recentes.
Antes de passar ao segundo ponto, os danos ao legado da
democracia, transcrevo para os mais jovens a parte que, para mim, é a
mais relevante de seu discurso na promulgação da Constituição, em 5 de
outubro de 1988.
“A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo.
A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.
Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o Estatuto do Homem, da Liberdade e da Democracia, bradamos por imposição de sua honra.
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.”
A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.
Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o Estatuto do Homem, da Liberdade e da Democracia, bradamos por imposição de sua honra.
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.”
Quem conheceu seu sincero compromisso com a democracia
liberal e o Estado de Direito sabe que ele não aprovaria muito do que
vem sendo feito pelas instituições que a Constituinte empoderou para que
fizessem justiça e não justiçamentos. Para defenderem o interesse
público e vigiarem os governantes, não para legitimarem conspirações.
Ulysses demorou a se convencer de que era preciso fazer o impeachment de
Collor. Não temia retrocesso, a volta do “caminho maldito”. Temia
rasgar a Constituição, associar-se a um processo que poderia fugir a
seus regramentos. Acabou se rendendo porque os crimes eram evidentes, o
povo estava unido pedindo afastamento do presidente e o rito era
legalmente inatacável. Mas a torsão na interpretação do artigo sobre o
impeachment para afastar Dilma Rousseff por pedaladas fiscais e decretos
orçamentários, forçando um crime de responsabilidade inconvincente, ele
não aprovaria.
Deve-se principalmente ao PT e a um grupo de juristas, à
frente Nelson Jobim, além do relator Bernardo Cabral, aos artigos que
garantiram tanto poder e autonomia ao Ministério Público e que
conferiram à Polícia Federal seus poderes de polícia judiciária. O mesmo
vale para as prerrogativas do Judiciário e o grande poder conferido ao
STF como corte constitucional, que pode não apenas dirimir questões
relacionadas com a Carta, mas também interpretar o que ela não disse mas
estaria implícito em sua alma jurídica. Ulysses tudo avalizou,
empenhando-se também para que fossem bem explícita a condenação a
qualquer forma de censura e limitação à liberdade de expressão.
São estes setores que hoje, em nome da moralidade, violentam
garantias da Carta, como a presunção da inocência e o amplo direito de
defesa. Limites vêm sendo quebrados para fazer anda um processo de
“assepesia moral” que é necessário, mas não com o sacrifício das
balizas constitucionais. A democracia concebida por Ulyssses não
compactuava com as práticas de trucidar, perseguir, condenar antes de
provar a culpa. Não pressupunha o primado das convicções sobre a lei e
as garantias individuais e coletivas. Linchamentos morais, massacres
midiáticos e outras barbáries dos tempos correntes fazem parte do
“caminho maldito” do autoritarismo, que vem alargando sua presença no
Brasil de hoje.
E, muito menos, Ulysses compactuaria com o desmonte do
Estado de Bem Estar Social, que lhe inspirou o apelido de “Constituição
Cidadã” para a Constituição que promulgou. Mas desde os primeiros anos
da década de 1990, foram sendo dilapidados os fundamentos da sociedade
mais justa e igualitária que a Constituição projetou. Emendas e mais
emendas foram ajustando o texto às conjunturas, quando o contrário é que
teria de ser feito. Se a Constituição é o legado maior de Ulysses,
muito já foi feito contra ele.
Cada um lembra o Ulysses que lhe interessa. Eu o recordo
como o último político liberal-social de uma escola que se acabou, com a
degradação da classe política. Ele, que idealizava o Parlamento, onde
fez toda sua carreira, lamentaria a pobreza do atual Congresso,
reduzido a uma casa de homens de negócios sem pudor. Mas detestaria mais
ainda esta campanha, liderada pelas mídia, de desqualificação da
política como ação primordial na democracia, apesar dos agentes nefastos
que nela sempre ingressarão em busca de interesses menores. Nos anos
1970, a esquerda pregou o voto nulo em protesto contra a ditadura.
Ulysses bateu-se, em todas as campanhas, pelo que hoje poderíamos
chamar de “voto útil” no MDB. Acreditava no voto e na vontade popular.
Para explicitar a existência de uma alternativa civil aos militares, foi
anti-candidato a presidente contra Geisel. Em 1874, foi recompensado
por uma estrondosa vitória de seu partido. O PMDB elegeu uma grande
safra de senadores, impondo grande derrota à ditadura, além de ampliar
sua bancada na Câmara. O povo entendia que era preciso fortalecer a
oposição para derrotar a ditadura, o que ainda levou dez anos para
acontecer. “Fora da política, não há salvação”, dizia ele,. E aí
estamos, com este oceano de votos nulos e brancos, decorrência da
campanha anti-política e anti-políticos, apesar dos que não merecem o
voto de ninguém.
Eu o recordo com seus olhos sempre úmidos, seu laconismo
cheio de significados que nós, jornalistas, precisávamos decifrar.
Recordo, principalmente, seus discursos insubstituíveis. Ulysses sabia a
hora de falar e a hora de calar. Nem oradores restaram no Parlamento de
hoje.
Pessoalmente, tenho duas grandes lembranças. Uma, quando meu
filho Rodrigo nasceu e ele apareceu, com meu colega, amigo e depois
compadre Jorge Bastos Moreno, para uma visita inesperada. Eram 7 horas
da manhã e eu não tinha sequer um pão de queijo para servi-lhes. Mas o
dia na política seria cheio e ele queria fazer a visita. Isso foi nos
primeiros dias de janeiro de 1992. Disso restou a foto em que segura uma
trouxinha azul, Rodrigo no saco de bebê.
Meses depois, no curso do impeachment, eu e Moreno estávamos
em seu gabinete, falando dos ataques que Collor lhe fizera. Ele os
responderia à noite no programa de Jô Soaes, com tiradas espirituosas.
Fora chamado de velho que vivia às custas de remédios. “Sou velho mas
não sou velhaco. E meu remédio, compro em farmácias”. Naquela tarde,
aniversário da Constituição e véspera do aniversário dele, Ulysses puxou
da gaveta um exemplar da primeira edição da Constituição, dedicou-a e
disse. “Leve para o menino. Entregue quando ele crescer”.
Eu o fiz recentemente, quando o menino ingressou na carreira
diplomática. Ele a guarda com muito orgulho e zelo. Ulysses morreu uma
semana depois, no dia 12. Dia das crianças. Ao contrário de Severo
Gomes, Henriqueta e Dona Mora, que viajavam no mesmo avião, nunca foi
encontrado. Devemos sempre procurar Ulysses, seu legado, seu exemplo.
Fonte Brasil 247
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