O preço da impunidade: corrupção cresce, mas a Justiça é lenta. Brasil só recupera 15% do dinheiro público desviado em operações fraudulentas
JOSÉ CASADO - O GLOBO
RIO - Cada vez mais curtas, as tangas vermelhas e azuis incomodavam o prefeito. Ele tentou proibir as "cunhãs" da Ópera do Boi. Fracassou. E resolveu insistir na guerrilha por outros meios: "Promiscuidade!", "Devassidão!" — protestou em cartazes espalhados pelas esquinas ao final de cada junho, quando turistas e nativos fazem coro aos levantadores de toadas no Bumbódromo de Parintins, na ilha fluvial de Tupinambarana, sobre o Rio Amazonas.
Empreiteiro de profissão, Carlos Alberto Barros da Silva, o prefeito "Carlinhos da Carbrás", desaparecia nos dias de festa, deixando saudações ao "Senhor dos Exércitos" como único provedor do erário municipal. E só prestaria contas a "Ele" — anunciava. Acabou apeado da prefeitura, por impeachment, quando faltou merenda nas escolas e descobriu-se que o caixa municipal estava zerado. Uma investigação do Tribunal de Contas revelou: "Carlinhos" havia transferido todo o dinheiro da merenda dos alunos para contas privadas. Isso aconteceu em 1998.
Na segunda-feira passada, depois de 13 anos, a promotoria do Amazonas resolveu processá-lo e tentar recuperar R$ 4,3 milhões subtraídos dos cofres de Parintins — dinheiro suficiente para alimentar 16 mil alunos durante dois anos. Os promotores sabem que chances são mínimas. Aos 67 anos, o ex-prefeito não corre risco de prisão. Pode envelhecer confortavelmente batalhando nos tribunais, se usar o arsenal de recursos judiciais disponível para a defesa.
Existem 15 mil casos similares em andamento no Judiciário (7.607 nos tribunais federais e superiores e outros oito mil nas cortes estaduais). São ações cíveis para reparação ao Estado por conduta desonesta na função pública, com enriquecimento ilícito. Processos por "improbidade administrativa", no jargão jurídico.
São poucos os julgamentos desse tipo de crime: no ano passado foram 1,1 mil casos com sentenças definitivas. Os juízes ficaram mais tempo analisando recursos e apelações — 28 mil nos demais processos por improbidade, informa o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com base em dados fornecidos pelos tribunais até agosto.
Muito mais difíceis de concluir são os casos de corrupção e lavagem de dinheiro, em geral indissociáveis quando a fraude é contra o Estado. Raros são os processos encerrados em menos de uma década, com sentença definitiva. É o oposto do que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, onde a sentença de um caso de fraude contra o Estado e o sistema financeiro pode sair em menos de um ano. Aconteceu com o ex-banqueiro Bernard Madoff. Aos 71 anos, ele foi condenado a um século e meio de prisão por lavar dinheiro e falsear balanços numa pirâmide financeira de US$ 63 bilhões, na qual tinha sócios no mundo todo, incluindo investidores cariocas (no fundo Fairfield Greenwich).
No ano passado os tribunais brasileiros produziram apenas 416 sentenças definitivas em crimes de corrupção e 547 em casos de lavagem de dinheiro — cerca de 10% da média anual da Justiça americana.
As estatísticas judiciais confirmam o senso comum sobre a impunidade no país, captada em pesquisas de opinião como as da Transparência Internacional. Da última, o Brasil emergiu mais parecido com Ruanda, nos Grande Lagos africanos, e Vanatu, na Melanésia, do que com os vizinhos Chile e Uruguai.
Corrupção é mito na Justiça de Brasília
Existem 5.354 processos criminais por corrupção em andamento nos tribunais superiores, federais e estaduais. Num país com mais de dez milhões inscritos na folha da União, de estados e prefeituras, significa um processo por grupo de mil servidores. Na média, foram abertos 15 novos casos por dia durante o ano passado. A maior parte (60%) começou na Justiça estadual e teve como réus ocupantes de cargos médios da administração pública.
Políticos e altos burocratas são absoluta minoria —- reflexo do predomínio de influência das elites estaduais. Em Rondônia, por exemplo, um ex-senador do PMDB, Mário Calixto, coleciona 146 processos e várias condenações, inclusive por corrupção. Certa vez foi preso. Por 45 dias.
Juntos, os tribunais dos estados mais ricos (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro) têm apenas 801 processos por corrupção em andamento. Em contraste, o Rio Grande do Sul sozinho mantém 579, o que sugere menor tolerância com a impunidade. Em São Paulo, os casos em tramitação são poucos (17) e os julgamentos raros (houve um no ano passado). Em compensação, proliferam recursos: média de 315 para cada processo.
Corrupção é mito em Brasília, se a referência for o Judiciário local: somente 50 casos estão em andamento. E não existe em Roraima, onde há apenas dois processos. Amazonas tem seis; Acre, nove; e Goiás, 34.
O Rio mantém 106 inquéritos judiciais e ações penais por crime de corrupção. É pouco, admite Manoel Rebêlo, presidente do Tribunal de Justiça, que explica:
— Reduzimos para 80 dias o tempo médio entre o início e o julgamento de um processo. É a melhor média do país. Em São Paulo leva-se dois a três anos entre o protocolo e a chegada à mesa do juiz.
Acrescenta: — A verdade é que temos uma quantidade infindável de recursos processuais. E, é bom lembrar, foi o Legislativo que permitiu isso.
É uma visão realista, para aqueles que trabalham no resgate do dinheiro público desviado. Jorge Hage, ministro-chefe da Controladoria Geral da União, anda comemorando um recorde: nos últimos 12 meses, a média de êxito nas ações de recuperação foi de 15% dos casos julgados, somando R$ 330 milhões — há quatro anos, era de apenas 1%. A cada discurso, faz o mesmo desabafo:
— É quase impossível, hoje, ver um processo condenatório chegar ao fim no Brasil. Um bom advogado pode impedir, por dez ou vinte anos, uma sentença condenatória. E são justamente os criminosos engravatados — não é o criminoso comum — que podem pagar os melhores advogados.
Os registros da Controladoria são eloquentes. A corrupção foi motivo de 56% das demissões punitivas realizadas pelo governo federal nos últimos oito anos. De janeiro a novembro foram expulsos 311 servidores — um por dia —, a maioria nos ministérios da Previdência, Educação, Justiça, Fazenda e Saúde.
Esforços de depuração são perceptíveis no Judiciário. Semana passada, o Conselho Nacional de Justiça afastou o juiz Francisco Betti, do Tribunal Regional Federal da 1 Região (Brasília), por suspeita de receber propina. E determinou inspeções extraordinárias em tribunais de 22 estados para apurar "movimentações financeiras atípicas de magistrados e servidores" detectadas pelo serviço federal de inteligência financeira. Certamente vai ser necessário muito mais para mudar a percepção coletiva de impunidade.
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Mensalão. Impunidade anunciada: a articulação do PT para absolver a quadrilha do mensalão. Ministro diz que, como o julgamento dos mensaleiros só deve acontecer em 2013, muitos dos crimes podem prescrever. A afirmação preocupante criou um enorme mal-estar entre os colegas no Supremo Tribunal Federal
Paulo Celso Pereira e Laura Diniz - VEJA ONLINE
Bem Devagar: Indicado por Lula, amigo da família do ex-presidente e próximo aos petistas, o ministro Ricardo Lewandowski está no centro de várias celeumas envolvendo o julgamento do mensalão. Na semana passada, o ministro Cezar Peluso mandou liberar cópias do processo para não atrasar ainda mais o desfecho do caso (Celso Junior/AE e Alan Marques/Folhapress )
Desde que foi oferecida a denúncia contra os réus, em 2006, Lewandowski protagonizou as principais celeumas em torno do caso. As duas primeiras ocorreram durante a aceitação da denúncia, em 2007. A princípio, o ministro foi flagrado no dia do julgamento trocando mensagens de computador com a ministra Cármen Lúcia sobre os votos dos colegas
Em fevereiro de 2006, o desembargador Ricardo Lewandowski foi indicado pelo presidente Lula para ocupar uma cadeira na mais alta corte do país, o Supremo Tribunal Federal. Era o primeiro ministro nomeado pelo petista desde a descoberta, no ano anterior, do escândalo do mensalão, o maior esquema de corrupção da história do país. Ao ser entrevistado por emissários do Planalto e conversar com Lula antes da indicação, Lewandowski já tinha plena consciência de que teria, nos anos seguintes, a missão de julgar o processo que resultaria da revelação de que o governo do PT pagara mesada a parlamentares em troca de apoio político. O ministro não só conhecia essa realidade como era próximo a figuras de proa do partido. Formado na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, berço sindical do petismo, e professor com mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo, ele conhecia a família Lula desde jovem. Sua mãe, por exemplo, era vizinha da ex-primeira-dama Marisa Letícia. Relações pessoais com poderosos não impedem ninguém de assumir cargos públicos de relevo. Para assentos no STF, são exigidos notório saber jurídico e reputação ilibada. Além desses dois requisitos constitucionais, espera-se de um ministro da suprema corte independência com relação ao presidente da República que o indicou. É nessa seara que a movimentação de Lewandowski tem causado apreensão.
Desde que foi empossado, sua atuação só chamou atenção quando foi portadora de maus presságios — para a opinião pública e as instituições — sobre o caso do mensalão. Na semana passada, essa situação chegou ao paroxismo. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, ele informou que só pretende concluir seu voto no processo em 2013 — o que prorrogaria ainda mais o desfecho do caso, cuja conclusão está prevista para o primeiro semestre de 2012. Por trás de uma questão meramente temporal há uma série de desdobramentos políticos, todos eles favoráveis ao PT e à camarilha que figura como ré no processo. O próprio Lewandowski admite que, com o adiamento, poderá haver prescrição de boa parte dos crimes imputados aos mensaleiros. Entre os quais, o de formação de quadrilha, acusação que pesa sobre os ombros do comissário José Dirceu, ex-chefe da Casa Civil.
Outro possível desdobramento tende a influir no mapa dos votos. No próximo ano, os ministros Cezar Peluso e Carlos Ayres Britto terão de se aposentar. Os dois fazem parte de um grupo de cinco ministros apontados como defensores da condenação dos réus. Se Lewandowski consumar o adiamento para 2013, Britto e Peluso não participarão do julgamento. Darão lugar a substitutos indicados pela presidente Dilma Rousseff. Se depender do PT, tais substitutos serão camaradas exemplares e, obviamente, pró-absolvição. Desde 2006, o partido conseguiu emplacar ministros com esse perfil mais amigável. Dilma manteve a toada com a recente nomeação de Rosa Maria Weber, uma juíza do Trabalho de carreira, com pouca intimidade com questões criminais. Ou seja: se o julgamento ocorrer após a aposentadoria de Britto e Peluso, o PT terá mais chance de conseguir formar uma maioria segura na corte que impeça a condenação de seus líderes. Assim, poderá evitar que o maior caso de corrupção da história do Brasil prejudique os projetos eleitorais do partido. Essa estratégia ardilosa, obviamente, não passa despercebida no plenário do Supremo.
Atentos à movimentação, ministros do STF já reagiram. Lewandowski justificou a possibilidade de adiamento com um argumento sólido como as nuvens: só leria todos os volumes do processo depois de receber uma espécie de resumo do caso elaborado pelo relator do processo, Joaquim Barbosa. No papel de revisor, Lewandowski teria de começar tudo do zero, como afirmou. Uma heresia jurídica devidamente rechaçada. Logo após a entrevista ter sido publicada, o presidente do STF, Cezar Peluso, enviou um ofício a Joaquim Barbosa pedindo que ele disponibilizasse imediatamente a íntegra do processo para todos os ministros, a fim de que eles já pudessem estudar o caso a fundo e, se quisessem, preparar os votos. A medida não era necessária. Há anos todos os autos do processo do mensalão estão disponíveis na internet para os advogados dos réus, os integrantes do Ministério Público e, obviamente, os ministros da corte. O ofício de Peluso era, na verdade, apenas um gesto para deixar claro o incômodo com a ameaça de adiamento. “Não vou deixar a presidência do Supremo sem colocar esse processo em pauta. Quero fazer isso em agosto, no máximo”, diz ele.
Ayres Britto, o outro ministro ameaçado de não participar do julgamento, também manifestou sua insatisfação. Questionado sobre a possibilidade de não julgar o mensalão, foi sucinto e irônico: “Não trabalho com essa hipótese. Quem sabe o ministro (Lewandowski) recebendo fisicamente o processo não facilite”. Lewandowski tem uma posição particularmente privilegiada para atravancar o processo. Ele exerce o papel de revisor da ação. Em ações penais, como a do mensalão, dois magistrados têm o dever de avaliar o processo antes dos demais: primeiro, o relator; depois, o revisor. Mas é o segundo que fica responsável por pedir que seja marcada a data do julgamento, depois de analisar o caso e preparar seu voto. Não existe legalmente um prazo para que ele cumpra essa tarefa, mas ministros ouvidos por VEJA estimam que três meses seriam suficientes para analisar o caso do mensalão. Na prática, tudo dependerá do embate entre a pressão do PT em favor do adiamento e a pressão de integrantes do Supremo e da sociedade em defesa do bom andamento das instituições. O próprio Dirceu já disse que acredita em sua absolvição no voto, por falta de provas, e não por prescrição. Portanto, que ocorra a votação em tempo hábil.
Chamado de “chefe de quadrilha” na denúncia do Ministério Público, Dirceu responde por formação de quadrilha e corrupção ativa. A prescrição de tais crimes, se comprovados, depende diretamente da pena aplicada. Como o processo se arrasta há anos, muitos réus só serão punidos se forem condenados a penas de longa duração. Trata-se de algo pouco provável. Como quase todos são primários e não têm antecedentes negativos, dificilmente receberão penas máximas. Isso se prevalecerem aspectos meramente técnicos. Ministros do STF afirmam, no entanto, que a ofensiva petista no processo pode ter um efeito contrário: aumentar a pressão política em defesa da adoção de penas mais severas justamente a fim de impedir a prescrição. “É muito cedo para saber se vai ocorrer a prescrição. Temos de aguardar a conclusão sobre a culpa e a fixação da pena”, diz o ministro Marco Aurélio Mello. “No entanto, é impensável majorar a pena para fugir da prescrição, bem como adiar o julgamento por causa das eleições municipais de 2012.”
Desde que foi oferecida a denúncia contra os réus, em 2006, Lewandowski protagonizou as principais celeumas em torno do caso. As duas primeiras ocorreram durante a aceitação da denúncia, em 2007. A princípio, o ministro foi flagrado no dia do julgamento trocando mensagens de computador com a ministra Cármen Lúcia sobre os votos dos colegas. A revelação das mensagens provocou enorme mal-estar na corte. Dias depois, Lewandowski agravou ainda mais a situação ao afirmar que os ministros haviam votado “com a faca no pescoço” e que a tendência do Supremo seria “amaciar para o Dirceu”. Durante o julgamento que transformou os mensaleiros em réus, foi Lewandowski quem mais divergiu do relatório de Joaquim Barbosa, opondo-se inclusive ao enquadramento de José Dirceu e José Genoíno no crime de formação de quadrilha. Seu alinhamento com a pauta petista é um péssimo sinal para o vigor de uma instituição fundamental como o STF.
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Izabelle Torres e Octávio Costa - REVISTA ISTO É, N° Edição: 2197,
O ministro Joaquim Barbosa, relator do rumoroso processo do mensalão no Supremo Tribunal Federal, passou a última semana nos Estados Unidos para tratar de assuntos pessoais. Mas, na quarta-feira 14, ficou irritadíssimo ao tomar conhecimento de declarações feitas pelo ministro Ricardo Lewandowski, que atua como revisor do processo. Lewandowski afirmou, em entrevista à “Folha de S.Paulo”, que os crimes dos 38 réus devem prescrever antes da conclusão do julgamento. Diante da previsão pessimista de seu colega, que preside o TSE, Barbosa reagiu e avisou aos amigos: “Não pretendo passar à história como coveiro do mensalão.” Ele se prepara para ler seu voto logo após o início do ano do Judiciário, em fevereiro. Lewandowski, porém, afirma que não terá tempo hábil para pronunciar o voto de revisor. O que é estranho. O revisor tem acesso irrestrito às peças do processo, de 130 volumes, e sua tarefa será apenas a de emitir um parecer sobre o voto do relator. Logo, se Joaquim Barbosa cumprir o prazo que se impôs, nada justificaria a prescrição dos crimes.
Lewandowski foi duramente criticado por outros ministros do STF, que interpretaram sua posição como uma tentativa de tirar das costas a pressão pela celeridade no parecer de revisão. Eles explicam que a maioria do Supremo pretende considerar a prescrição dos crimes apenas a partir do recebimento da denúncia, em 2007. Isso faria com que o prazo para extinção do primeiro dos delitos, o de formação de quadrilha, aconteça somente em 2013. Próximo ministro a presidir o STF a partir de abril de 2012, o ministro Carlos Ayres Britto diz que o julgamento do mensalão será prioritário. “Em tese, só correm o risco de prescrever crimes com penas menores. Crimes de penas altas não prescreverão”, diz. A visão de Britto é seguida pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel. “Se o julgamento acontecer no primeiro semestre do ano que vem, dificilmente teremos prescrição, mesmo dos crimes com penas menores”, diz. O ministro Marco Aurélio Mello admite que será preciso correr contra o tempo para julgar o caso, mas pondera: “Se trabalharmos de forma célere, será possível contornar o risco de prescrições.”
Na quarta-feira, o presidente do STF, Cezar Peluso, pediu a Joaquim Barbosa que disponibilize a íntegra dos autos aos ministros. Afinal, deixar o mensalão virar pizza por vencimento de prazos seria uma tragédia para a imagem do STF.
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