quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O horror e a opção preferencial contra os pobres

Até quando?




Bomba.A Procuradoria Federal , vinculada ao Ministério Público Federal,considera reintegração de posse do Pinheirinho grave violação de direitos humanos.





O horror e a opção preferencial contra os pobres.A marca da brutalidade.O Massacre de Pinheirinho. Carta Maior


Por Maria Inês Nassif*

É o horror. Nada mais precisa ser dito para descrever a operação de despejo de Pinheirinho, em São José dos Campos, e a ação policial contra os usuários de crack no centro da capital, na chamada Cracolândia. Mas existem muitas explicações para a truculência, a desumanidade, a destituição do direito de cidadania aos pobres pelo poder público paulista.

A primeira delas é tão clara que até enrubesce. Nos dois casos, trata-se de espantar o rebotalho urbano de terrenos cobiçados pela especulação imobiliária. O Projeto Nova Luz do prefeito Kassab, que vem a ser a privatização do centro para grandes incorporadoras, vai ser construído sob os escombros da Cracolândia, sem que nenhuma política social tenha sido feita para minorar a miséria ou dar uma opção séria para crianças, adolescentes e adultos que se consomem na droga.

O terreno desocupado com requintes de crueldade em São José dos Campos, de propriedade da massa falida do ex-mega-investidor Naji Nahas, que já era de fato um bairro, vai ser destinado a um grande investimento, certamente. O presente de Natal atrasado para essas populações pobres libera esses territórios antes que terminem os mandatos dos atuais prefeitos, e o mais longe possível do calendário eleitoral. Rapidamente, a prefeitura de São Paulo está derrubando imóveis; a prefeitura de São José não deve demorar para limpar o terrreno de Pinheirinho das casas - inclusive de alvernaria - das quais os moradores foram expulsos.

Até outubro, no mínimo devem ter feito uma limpeza na paisagem, o que atenua nas urnas, pelo menos para a classe média, a ação da polícia. A higienização justifica a truculência policial. A "Cidade Limpa" de Kassab, que começou com a proibição de layouts na cidade, termina com a proibição de exposição da pobreza e da miséria humana.

A segunda é de ordem ideológica. Desde a morte de Mário Covas, que ainda conseguia erguer um muro de contenção para o PSDB paulista não guinar completamente à direita, não existe dentro do partido nenhuma resistência ao conservadorismo. Quando Geraldo Alckmin reassumiu o governo do Estado, em janeiro de 2011, muitas análises foram feitas sobre se ele, por força da briga por espaço político com José Serra dentro do partido, iria trazer o seu governo mais para o centro. A referência tomada foi o comando da Segurança Pública, já que em seu mandato anterior a truculência do então secretário, Saulo de Castro Abreu Filho, virou até denúncia contra o governo de São Paulo junto à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos.

O fato de ter mantido Castro fora da Segurança e se aproximado do governo federal, incorporando alguns programas sociais federais, e uma relação nada íntima com o prefeito da capital, deram a impressão, no primeiro ano de governo, que Alckmin havia sido empurrado para o centro. O que não deixava de ser uma ironia: um político que nunca escondeu seu conservadorismo foi deslocado dessa posição por um adversário interno no partido, José Serra, que, vindo da esquerda, tornou-se a expressão máxima do conservadorismo nacional.

Isso não deixa de ser uma lição para a história. Superado o embate interno pela derrota incondicional de José Serra, que desde a sua derrota vinha perdendo terreno no partido e foi relegado à geladeira, depois da publicação de "Privataria Tucana", do jornalista Amaury Ribeiro Júnior, Alckmin volta ao leito. O governador é conservador; o PSDB tornou-se orgânicamente conservador, depois de oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) e oito anos de posição neoudenista. A polícia é truculenta - e organicamente truculenta, já que traz o modelo militar da ditadura e foi mais do que estimulada nos últimos governos a manter a lei, a ordem e esconder a miséria debaixo do tapete.

O nome de quem faz a gestão da Segurança Pública não interessa: está mais do que claro que passou pelo governador a ordem das invasões na Cracolândia e em Pinheirinho.

Outra análise que deve ser feita é a da banalização da desumanidade. Conforme a sociedade brasileira foi se polarizando politicamente entre PSDB e PT, a questão dos direitos humanos passou a ser tratada como um assunto partidário. O conservadorismo despiu-se de qualquer prurido de defender a ação policial truculenta, de tomar como justiça um Judiciário que, nos recantos do país, tem reiterado um literal apoio à propriedade privada, um total desprezo ao uso social da propriedade e legitimado a ação da polícia contra populações pobres (com nobres exceções, esclareça-se).

Para os porta-vozes desses setores, a polícia, armada, "reage" com inofensivas balas de borracha à agressão dos moradores que jogam pedras perigosíssimas contra escudos enormes da tropa de choque. No caso de Pinheirinho, a repórter Lúcia Rodrigues, que estava na ocupação, na sexta-feira, foi ela própria alvo de duas balas letais, vindas da pistola de um policial municipal. Ela não foi atingida, mas duvida, pela violência que presenciou, das informações de que tenha saído apenas uma pessoa gravemente ferida daquele cenário de guerra.

(*) Colunista política, editora da Carta Maior em São Paulo.

Saiba mais:

 Excelente crítica do jornalista Ricardo Boechat (TV Bandeirantes) sobre a desocupação da Favela Pinheirinho, em São José dos Campos, em 21/01/2012. A desocupação foi ordenada pela Justiça Paulista, com a colaboração do Governador Geraldo Alckmin.

Denúncias - execução, corrupção e ocultação de cadáver. Pinheirinho (vídeo de moradora denunciando o desaparecimento de corpos)

" Não filmei seu rosto nem pedi identidade, pois ela estava apavorada."



Mortes obscuras, gente sem chão: a barbárie instalada

Será que alguém é ingênuo o suficiente para acreditar que isso não terminou em mortes? (Foto: Reuters)


Por Ana Helena Tavares(*)

“A luta continua aqui! A queda de braço entre a lei, o povo, e um homem que pode derrubar metade da República.” O homem é o megaespeculador Naji Nahas – e a bolsa de valores do RJ ele já derrubou – o local é São José dos Campos e quem relata é quem gravou lá o vídeo acima (ele gravou também outros, clique aqui e confira mais um). “Todos os agentes legais cabíveis sabem exatamente o que acontece”, garante Pedro Rios Leão, um jovem que, como eu, acredita num mundo bem diferente deste e resolveu ir até Pinheirinho ver de perto a realidade contra a qual lutamos.

“As casas de Pinheirinho estão no chão. Não existe mais democracia no Brasil. Pena da menina que aos 22 anos foi presa e torturada por um mundo melhor. Afinal porque mesmo com a Polícia Federal, acompanhada de uma juíza, sendo recebida a tiros pela PM (vide vídeo), na frente de uma Igreja. Mesmo com um assessor da presidência baleado, um senador da República, um presidente de partido, e um deputado federal mantidos em cárcere privado. Por que, nesse cenário, o ministro Gilberto Carvalho (que definiu a ação da PM paulista como “praça de guerra”) diz que o ministério das cidades vai realocar essas pessoas? E as denúncias de assassinato, sequestro e ocultação de cadáver? O Governador Geraldo Alckmin quebrou o pacto federativo para promover uma chacina! É mais importante derrubar a casa dessas pessoas do que investigar? Quem preside esse País? A Dilma? Eu acho que somos todos propriedade de algumas empresas e bancos, e que no momento em que eles quiserem tirar a nossa pele para fazer sapato eles fazem. Um brinde à vitória do Imperador Nahas!!!”, desabafa Pedro.

Segundo ele, “casas foram saqueadas e pessoas foram assassinadas, inclusive depois da ocupação.” O sequestro e ocultamento de corpos, denunciado no vídeo em destaque, ocorreu “na frente de todo mundo”, conta. “Incluindo duas crianças, uma de quatro anos e outra de meses.” A denúncia é gravíssima, mas ele assegura: “Sobre tudo isso não existe nenhuma dúvida. E eu me ponho como fiador dessas provas. Prefiro correr o risco do que deixar isso acontecer calado.”

Há outros fiadores. O jornalista Pedro Nogueira escreveu desesperado relato na revista Caros Amigos, onde garante: “Gente morreu, viu? A PM, o Estado, em conluio com os hospitais da cidade, estão fazendo agora uma operação para desaparecer com os corpos de pelo menos quatro pessoas. Militantes se agonizam, se agilizam, se juntam na cidade para investigar o que aconteceu, já que não se pode mais contar com a imprensa e com o governo. Existe uma guerra não-declarada e o principal mérito dos capangas do Estado é fingir que ela não existe, é contar que seremos sempre uma pacífica massa de revoltados.” (aqui a íntegra)

Até agora, nenhum corpo apareceu. Essa é uma conta que não fecha e exige apuração rigorosa pelos órgãos competentes. Um especialista da ONU declarou que houve “violação drástica dos direitos humanos” (vide BBC) e lideranças políticas já se manifestaram dizendo que levarão o caso à Corte Internacional de Direitos Humanos da OEA. Embora não tenha sido autorizado a falar em nome da instituição, o advogado e presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB de São José dos Campos, Aristeu César Pinto Neto, chegou a afirmar na segunda-feira que houve mortos na operação de reintegração de posse do terreno conhecido como Pinheirinho, ocorrida no domingo, 22 de Janeiro. Deu até número exato: sete (vide). Na terça, porém, ele desmentiu. Coisa mais suspeita!

Quem cruza todos os dados, incluindo imagens, vídeos e relatos só pode concluir que houve, sim, mortos. Há até um áudio em que uma moradora despejada diz que viu “o inferno no hospital, pessoas baleadas, esfaqueadas, gritando de dor”. Ela chega a falar sobre uma criança, possivelmente falecida, e que “a junta médica se reuniu para abafar o caso” (clique aqui para ouvir).

Enquanto o hospital municipal de São José, a PM, o governo de SP e a mídia nativa negam que tenha havido qualquer morte, o jornal britânico The Guardian noticiou que “houve o relato de pelo menos 7 mortes, incluindo um bebê, embora nada tenha sido confirmado oficialmente” (leia em inglês). É preciso que se diga que muitos jornalistas têm sido impedidos de entrar no local – e houve até repórter que levou dois tiros (vide), mas, se até a Al Jazeera conseguiu entrar (clique aqui para assistir, em inglês, à reportagem da TV árabe), a Globo, se quisesse, faria uma cobertura completa.

Como exceções à regra, dentre os que trabalham para a mídia reacionária, há dois jornalistas que cumpriram (e de costume cumprem) um papel digno de nota. Ricardo Boechat deu um “puxão de orelha” no governador de SP Geraldo Alckmin em plena Rádio Band News: ‎”Governador Geraldo Alckmin ! Não adianta ir pra missa todo semana rezar, falar com Deus, ler a Bíblia e ser na prática no mundo dos homens, alguém que faz isso com o semelhante. Procure na Bíblia que o senhor lê a passagem que lhe dá cobertura moral e ética pra fazer o que o senhor fez.” (ouça aqui)

E Paulo Moreira Leite denunciou em sua coluna na revista Época: “A maioria dos antigos moradores do Pinheirinho, expulsos de suas casas a partir das 6h do domingo, não teve tempo nem sequer para pegar os próprios documentos (vide vídeo com as demolições). Sem casa, sem documentos, muitos têm apenas uma muda de roupas. E pulseirinhas coloridas, que identificam quem pode entrar nos abrigos da prefeitura. Na escola Dom Pedro, a cor é azul.”

Azul em inglês significa tristeza. Mas tristeza não define essa situação. Isso é inominável. Como nos calarmos quando sabemos que um homem como Nahas, acusado de vários crimes, dentre eles o de ter grilado as terras em disputa (vide vídeo), está sendo beneficiado em detrimento de gente como a auxiliar de limpeza Marinei de Sousa Rodigues, 42 anos, que deu o desolador depoimento: “A única coisa que quero é tirar minhas coisas da casa, porque lá é onde estão o meu suor e a minha vida. Comprei fiado na loja de material de construção para poder levantar a minha casa com a ajuda do meu marido. Deixei de comprar carne para comprar saco de cimento. Por isso, se for para deixar a casa pra sempre, quero tirar tudo o que eu puder. Quero tirar, porta, janela, tudo! E se não puder eu vou botar fogo na minha casa, porque prefiro fazer isso a ver ela no chão”

Gente como Marinei está tendo que se amontoar em uma igreja, de onde em breve terá que sair, porque o padre que os protegeu diz estar sendo pressionado para tirá-los de lá (vide). E para onde vai essa gente, meu Deus? Como reparar a dignidade desses seres humanos?

O ministro Gilberto de Carvalho, da Secretaria de Habitação do Ministério das Cidades, deu a seguinte declaração: “Nós seguiremos dialogando, não queremos conflito com o governo de São Paulo, respeitamos a autonomia, seguiremos no diálogo. Para nós, o que está em jogo não é a posição desse ou daquele, mas o bem daquele povo, é se buscar uma saída para aquele povo que não pode ficar nessa situação”.

Até militantes tucanos já demonstraram revolta. Uma pessoa, que nunca se acanhou em se definir publicamente como “simpatizante do PSDB”, postou em seu perfil no Facebook o seguinte desabafo: “Ao impedir, pelo uso da força, que pessoas tenham direito a uma casa para morar, condenando-as a vagar sem rumo, sem seus bens adquiridos com tanto sacrifício, feridos, amedrontados e desesperados, o governador de São Paulo está torturando essas pessoas, porque a tortura geralmente é feita para destruir a dignidade do ser humano. Que dignidade pode ter uma pessoa que não tem uma casa para morar? Nesse caso, Alckimin se iguala aos carniceiros que governaram esse país durante a Ditadura Militar. Será que foi para isso que lutamos tanto, pela Democracia? Isso é crime contra a Humanidade e deveria ser punido com Impeachment e com cadeia.”

A pergunta da militante tucana – “Será que foi para isso que lutamos tanto, pela Democracia?” – bate fundo. Nasci em 26/12/1984. Na capa de um jornal da data, havia uma foto do Dr. Ulysses. Por muito tempo, acreditei que eu havia sido presenteada, nascendo junto com o renascimento de um país democrático. Cenas como as de Pinheirinho destroem minha ilusão. Ao velho timoneiro, que descansa no fundo do mar, já não posso reclamar pela fragilidade do presente. Na segunda-feira, 23 de Janeiro de 2012, dia seguinte ao domingo da barbárie, a capa do mesmo jornal deveria trazer, mas não trazia a foto de Geraldo Alckmin. É compreensível. Ulysses falava na volta da democracia no Brasil. Alckmin precisaria falar na volta da ditadura em São Paulo.

*Ana Helena Tavares é editora do site “Quem tem medo da democracia?”

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