A lógica que fundiu a repressão
militar ao crime comum em 1964 e a simbiose atual entre as operações de
Veja e bandidos liderados por bicheiros e políticos graúdos da direita
precisa ser passada a limpo.
Por Saul Leblon/Carta Maior
A lista de sordidez e atrocidades incluída no livro 'Memórias de uma
guerra suja', do ex-delegado do DOPS, Claudio Guerra, converge para um
denominador normalmente pouco pesquisado e menos ainda divulgado pela
mídia conservadora: a absoluta ausência de escrúpulos da direita nativa
em recorrer à expertise do crime comum para perseguir, atacar e, se
possível, eliminar fisicamente, sem pistas, a militância de esquerda
que resistiu à ditadura militar.
Em entrevista a Carta Maior, nesta pág., o escritor e jornalista Bernardo Kucinski chama a atenção para esse matrimônio macabro, na sua opinião um dos elementos relevantes do livro a explicar uma dimensão da engrenagem repressiva e sua inaudita violência. A irmã e o cunhado de Kucinski, Ana Rosa e Wilson Silva, presos e desaparecidos desde 1974, foram, segundo a versão do próprio ex-delegado Guerra, vítimas desse moedor de carne, tendo seus corpos incinerados.
Em entrevista a Carta Maior, nesta pág., o escritor e jornalista Bernardo Kucinski chama a atenção para esse matrimônio macabro, na sua opinião um dos elementos relevantes do livro a explicar uma dimensão da engrenagem repressiva e sua inaudita violência. A irmã e o cunhado de Kucinski, Ana Rosa e Wilson Silva, presos e desaparecidos desde 1974, foram, segundo a versão do próprio ex-delegado Guerra, vítimas desse moedor de carne, tendo seus corpos incinerados.
O casamento da direita com o submundo do
crime trouxe a violência e os métodos dos meliantes para dentro das
Forças Armadas, que se apropriaram assim das habilidades de matadores de
aluguel, esquadrões da morte, narcotraficantes e bicheiros para fazer o
serviço sujo, lembra Kucinski, do qual - acreditavam - não dariam
conta pelos métodos convencionais.
Ao permanecer resguardada da opinião pública, essa simbiose criou raízes e se reciclou no ambiente democrático. A truculência assumiu novas formas para persistir no mesmo objetivo de eliminar adversários e suas idéias. A principal revista semanal brasileira, por exemplo, cuja especialidade editorial é articular campanhas difamatórias contra movimentos sociais, partidos e lideranças populares, ademais de ter sido o auto-falante da tentativa de transformar o obscuro episódio denominado de 'mensalão' em clamor pelo impeachment do Presidente Lula, agora se sabe, arrendou uma quadrilha criminosa para 'apurar' pautas de seu interesse político.
Conforme revelou o repórter de Carta Maior, em Brasília, Vinicius Mansur, Veja, através de seu editor, Policarpo Jr, pautava meliantes da quadrilha de Cachoeira e Demósteres Torres para obter ou produzir 'flagrantes' que sustentassem capas e matérias pré-prontas. A reportagem de Carta Maior constatou o método no apenso 1 do inquérito contra o senador Demóstenes.
Estão lá diálogos reveladores da forja por trás do denuncismo que envenena o discernimento da sociedade brasileira contra as agendas progressistas há anos. Num dos episódios - existem outros apensos e milhares de escutas ainda não degravadas - o editor de Veja encomenda a bandidos da escuderia de Cachoeira e Demóstenes um 'flagrante' que sustentasse a 'denúncia' de envolvimento do ex-ministro José Dirceu com a construtora Delta. Frustrado, reclama.
Depreende-se das interceptações da PF que o editor de Veja sabia dos crimes da Delta, conhecia o vínculo umbilical entre a empresa e a quadrilha. Mas nada disso importava: não era o crime o seu foco. Tanto assim que em troca dos serviços, a revista incorporava ao seu menu matérias do interesse do esquema criminoso associado.
A lógica que fundiu a repressão militar ao crime comum em 1964 e a simbiose atual entre as operações de Veja e bandidos liderados por bicheiros e políticos graúdos da direita precisa ser passada a limpo. A oportunidade para isso está nas mãos dos integrantes da CPI do Cachoeira e daqueles da recém-criada Comissão da Verdade. Sem concessões a novos e velhos protagonistas da mesma cepa, cabe à Comissão da Verdade ir a fundo, por exemplo, na investigação de empresas privadas que azeitaram o intercurso entre o crime comum e a repressão política, abastecendo regiamente o caixa destinado a algozes não pagos pelo Estado.
À base do governo na CPI do Cachoeira cabe indagar: quando, senhores, finalmente, a Polícia Federal será acionada para enviar à comissão todas - repita-se, todas - as interceptações que envolvem a participação do editor de Veja em Brasília, Policarpo Jr, ou fazem menção a ele nos negócios do bando Cachoeira?
Ao permanecer resguardada da opinião pública, essa simbiose criou raízes e se reciclou no ambiente democrático. A truculência assumiu novas formas para persistir no mesmo objetivo de eliminar adversários e suas idéias. A principal revista semanal brasileira, por exemplo, cuja especialidade editorial é articular campanhas difamatórias contra movimentos sociais, partidos e lideranças populares, ademais de ter sido o auto-falante da tentativa de transformar o obscuro episódio denominado de 'mensalão' em clamor pelo impeachment do Presidente Lula, agora se sabe, arrendou uma quadrilha criminosa para 'apurar' pautas de seu interesse político.
Conforme revelou o repórter de Carta Maior, em Brasília, Vinicius Mansur, Veja, através de seu editor, Policarpo Jr, pautava meliantes da quadrilha de Cachoeira e Demósteres Torres para obter ou produzir 'flagrantes' que sustentassem capas e matérias pré-prontas. A reportagem de Carta Maior constatou o método no apenso 1 do inquérito contra o senador Demóstenes.
Estão lá diálogos reveladores da forja por trás do denuncismo que envenena o discernimento da sociedade brasileira contra as agendas progressistas há anos. Num dos episódios - existem outros apensos e milhares de escutas ainda não degravadas - o editor de Veja encomenda a bandidos da escuderia de Cachoeira e Demóstenes um 'flagrante' que sustentasse a 'denúncia' de envolvimento do ex-ministro José Dirceu com a construtora Delta. Frustrado, reclama.
Depreende-se das interceptações da PF que o editor de Veja sabia dos crimes da Delta, conhecia o vínculo umbilical entre a empresa e a quadrilha. Mas nada disso importava: não era o crime o seu foco. Tanto assim que em troca dos serviços, a revista incorporava ao seu menu matérias do interesse do esquema criminoso associado.
A lógica que fundiu a repressão militar ao crime comum em 1964 e a simbiose atual entre as operações de Veja e bandidos liderados por bicheiros e políticos graúdos da direita precisa ser passada a limpo. A oportunidade para isso está nas mãos dos integrantes da CPI do Cachoeira e daqueles da recém-criada Comissão da Verdade. Sem concessões a novos e velhos protagonistas da mesma cepa, cabe à Comissão da Verdade ir a fundo, por exemplo, na investigação de empresas privadas que azeitaram o intercurso entre o crime comum e a repressão política, abastecendo regiamente o caixa destinado a algozes não pagos pelo Estado.
À base do governo na CPI do Cachoeira cabe indagar: quando, senhores, finalmente, a Polícia Federal será acionada para enviar à comissão todas - repita-se, todas - as interceptações que envolvem a participação do editor de Veja em Brasília, Policarpo Jr, ou fazem menção a ele nos negócios do bando Cachoeira?
Saiba mais:
Kucinski: 'Jorrou dinheiro empresarial à repressão política'
O depoimento de Claudio Guerra, em "Memórias de uma guerra suja", detalha o envolvimento de empresários com a ditadura. Esse é o aspecto que mais impressionou ao escritor e jornalista Bernardo Kucinski. Sua irmã, Ana Rosa Kucinski, e o cunhado, Wilson Silva, foram sequestrados em 1974 e integram a lista dos desaparecidos. Bernardo atesta: "Está tudo lá: empresas como Gasbras, White Martins, Itapemirim, grupo Folha e o banco Sudameris; o dinheiro dos empresários jorrava para custear as operações clandestinas e premiar bandidos com bonificações generosas".
Por Saul Leblon/Carta Maior
São Paulo - O livro 'Memórias de uma
guerra suja', depoimento do ex-delegado do DOPS, Claudio Guerra, a
Marcelo Netto e Rogério Medeiros, foi recebido inicialmente com certa
incredulidade até por setores progressistas. Há revelações ali que
causam uma rejeição visceral de auto-defesa. Repugna imaginar que em
troca de créditos e facilidades junto à ditadura, uma usina de açúcar do
Rio de Janeiro tenha cedido seu forno para incinerar cadáveres de
presos políticos mortos nas mãos do aparato repressivo.
O acordo que teria sido feito no final de 1973, se comprovado, pode se tornar o símbolo mais abjeto de uma faceta sempre omitida nas investigações sobre a ditadura: a colaboração funcional, direta, não apenas cumplicidade ideológica e política, mas operacional, entre corporações privadas, empresários e a repressão política. Um caso conhecido é o da 'Folha da Tarde', jornal da família Frias, que cedeu viaturas ao aparato repressivo para camuflar operações policiais.
Todavia, o depoimento de Guerra mostra que nem o caso da usina dantesca, nem o repasse de viaturas da Folha foram exceção. Esse é o aspecto do relato que mais impressionou ao escritor e jornalista Bernardo Kucinski, que acaba de ler o livro. Sua irmã, Ana Rosa Kucinski, e o cunhado, Wilson Silva, foram sequestrados em 1974 e desde então integram a lista dos desaparecidos políticos brasileiros. Bernardo atesta:' Esta tudo lá: empresas importantes como a Gasbras, a White Martins, a Itapemirim, o grupo Folha e o banco Sudameris, que era o banco da repressão; o dinheiro dos empresários jorrava para custear as operações clandestinas e premiar os bandidos com bonificações generosas'.
No livro, Claudio Guerra afirma que Ana Rosa e Wilson Campos - a exemplo do que teria ocorrido com mais outros oito ou nove presos políticos -tiveram seus corpos incinerados no imenso forno da Usina Cambahyba, localizada no município fluminense de Campos.
A incredulidade inicial começa a cair por terra. Familiares de desaparecidos políticos tem feito algumas checagens de dados e descrições contidas no livro. Batem com informações e pistas anteriores. Consta ainda que o próprio governo teve acesso antecipado aos relatos e teria conferido algumas versões, confirmando-as. Tampouco o livro seria propriamente uma novidade para militantes dos direitos humanos que trabalham junto ao governo.
O depoimento de Guerra, de acordo com alguns desses militantes, teria sido negociado há mais de dois anos, com a participação direta de ativistas no Espírito Santo. A escolha dos jornalistas que assinam o trabalho - um progressista e Marcelo Netto, ex-Globo simpático ao golpe de 64 - teria sido deliberada para afastar suspeitas de manipulação. Um pedido de proteção para Claudio Guerra já teria sido encaminhado ao governo. Sem dúvida, o teor de suas revelações, e a lista de envolvimentos importantes, recomenda que o ex-delegado seja ouvido o mais rapidamente possível pela Comissão da Verdade.
Bernardo Kucinski, autor de um romance, 'K', - na segunda edição - que narra a angustiante procura de um pai pela filha engolida no sumidouro do aparato de repressão, respondeu a quatro perguntas de Carta Maior sobre as "Memórias de uma Guerra Suja":
Carta Maior - Depois de ler a obra na íntegra, qual é a sua avaliação sobre a veracidade dos relatos?
Kucinski - As confissões são congruentes e não contradizem informações isoladas que já possuíamos. Considero o relato basicamente veraz, embora claramente incompleto e talvez prejudicado pelos mecanismos da rememoração, já que se trata da confissão de uma pessoa diretamente envolvida nas atrocidades que relata.
CM - Por que um depoimento com tal gravidade continua a receber uma cobertura tão rala da mídia? Por exemplo, não mereceu capa em nenhuma revista semanal 'investigativa'.
Kucinski - Pelo mesmo motivo de não termos até hoje um Museu da Escravatura , não termos um memorial nacional aos mortos e desaparecidos da ditadura militar, e ainda ensinarmos nas escolas que os bandeirantes foram heróis; uma questão de hegemonia de uma elite de formação escravocrata.
CM - Do conjunto dos relatos contidos no livro, quais lhe chamaram mais a atenção?
Kucinski - O episódio específico que mais me chamou a atenção foi a participação direta do mesmo grupo de extermínio no golpe organizado pela CIA para derrubar o governo do MPLA em Angola, com viagem secreta em avião da FAB.
CM - O que mais ele revela de novo sobre a natureza da estrutura repressiva montada no país, depois de 64?
Kucinski - Fica claro que as Forças Armadas montaram grupos de captura e extermínio reunindo matadores de aluguel, chefes de esquadrões da morte, banqueiros do jogo do bicho, contrabandistas e narcotraficantes. Chamaram esses bandidos e seus métodos para dentro de si. Esses criminosos, muitos já condenados pela justiça, dirigidos e controlados por oficiais das Forças Armadas, a partir de uma estratégia traçada em nível de Estado Maior, executavam operações de liquidação e desaparecimento dos presos políticos, o que talvez explique o barbarismo das ações. Também me chamou a atenção a participação ampla de empresários no financiamento dessa repressão, empresas importantes como a Gasbras, a White Martins, a Itapemirim, o grupo Folha - que emprestou suas peruas de entrega para seqüestro de ativistas políticos -, e o banco Sudameris, que era o banco da repressão; dinheiro dos empresários jorrava para custear as operações clandestinas e premiar os bandidos com bonificações generosas . Está tudo lá no livro.
O acordo que teria sido feito no final de 1973, se comprovado, pode se tornar o símbolo mais abjeto de uma faceta sempre omitida nas investigações sobre a ditadura: a colaboração funcional, direta, não apenas cumplicidade ideológica e política, mas operacional, entre corporações privadas, empresários e a repressão política. Um caso conhecido é o da 'Folha da Tarde', jornal da família Frias, que cedeu viaturas ao aparato repressivo para camuflar operações policiais.
Todavia, o depoimento de Guerra mostra que nem o caso da usina dantesca, nem o repasse de viaturas da Folha foram exceção. Esse é o aspecto do relato que mais impressionou ao escritor e jornalista Bernardo Kucinski, que acaba de ler o livro. Sua irmã, Ana Rosa Kucinski, e o cunhado, Wilson Silva, foram sequestrados em 1974 e desde então integram a lista dos desaparecidos políticos brasileiros. Bernardo atesta:' Esta tudo lá: empresas importantes como a Gasbras, a White Martins, a Itapemirim, o grupo Folha e o banco Sudameris, que era o banco da repressão; o dinheiro dos empresários jorrava para custear as operações clandestinas e premiar os bandidos com bonificações generosas'.
No livro, Claudio Guerra afirma que Ana Rosa e Wilson Campos - a exemplo do que teria ocorrido com mais outros oito ou nove presos políticos -tiveram seus corpos incinerados no imenso forno da Usina Cambahyba, localizada no município fluminense de Campos.
A incredulidade inicial começa a cair por terra. Familiares de desaparecidos políticos tem feito algumas checagens de dados e descrições contidas no livro. Batem com informações e pistas anteriores. Consta ainda que o próprio governo teve acesso antecipado aos relatos e teria conferido algumas versões, confirmando-as. Tampouco o livro seria propriamente uma novidade para militantes dos direitos humanos que trabalham junto ao governo.
O depoimento de Guerra, de acordo com alguns desses militantes, teria sido negociado há mais de dois anos, com a participação direta de ativistas no Espírito Santo. A escolha dos jornalistas que assinam o trabalho - um progressista e Marcelo Netto, ex-Globo simpático ao golpe de 64 - teria sido deliberada para afastar suspeitas de manipulação. Um pedido de proteção para Claudio Guerra já teria sido encaminhado ao governo. Sem dúvida, o teor de suas revelações, e a lista de envolvimentos importantes, recomenda que o ex-delegado seja ouvido o mais rapidamente possível pela Comissão da Verdade.
Bernardo Kucinski, autor de um romance, 'K', - na segunda edição - que narra a angustiante procura de um pai pela filha engolida no sumidouro do aparato de repressão, respondeu a quatro perguntas de Carta Maior sobre as "Memórias de uma Guerra Suja":
Carta Maior - Depois de ler a obra na íntegra, qual é a sua avaliação sobre a veracidade dos relatos?
Kucinski - As confissões são congruentes e não contradizem informações isoladas que já possuíamos. Considero o relato basicamente veraz, embora claramente incompleto e talvez prejudicado pelos mecanismos da rememoração, já que se trata da confissão de uma pessoa diretamente envolvida nas atrocidades que relata.
CM - Por que um depoimento com tal gravidade continua a receber uma cobertura tão rala da mídia? Por exemplo, não mereceu capa em nenhuma revista semanal 'investigativa'.
Kucinski - Pelo mesmo motivo de não termos até hoje um Museu da Escravatura , não termos um memorial nacional aos mortos e desaparecidos da ditadura militar, e ainda ensinarmos nas escolas que os bandeirantes foram heróis; uma questão de hegemonia de uma elite de formação escravocrata.
CM - Do conjunto dos relatos contidos no livro, quais lhe chamaram mais a atenção?
Kucinski - O episódio específico que mais me chamou a atenção foi a participação direta do mesmo grupo de extermínio no golpe organizado pela CIA para derrubar o governo do MPLA em Angola, com viagem secreta em avião da FAB.
CM - O que mais ele revela de novo sobre a natureza da estrutura repressiva montada no país, depois de 64?
Kucinski - Fica claro que as Forças Armadas montaram grupos de captura e extermínio reunindo matadores de aluguel, chefes de esquadrões da morte, banqueiros do jogo do bicho, contrabandistas e narcotraficantes. Chamaram esses bandidos e seus métodos para dentro de si. Esses criminosos, muitos já condenados pela justiça, dirigidos e controlados por oficiais das Forças Armadas, a partir de uma estratégia traçada em nível de Estado Maior, executavam operações de liquidação e desaparecimento dos presos políticos, o que talvez explique o barbarismo das ações. Também me chamou a atenção a participação ampla de empresários no financiamento dessa repressão, empresas importantes como a Gasbras, a White Martins, a Itapemirim, o grupo Folha - que emprestou suas peruas de entrega para seqüestro de ativistas políticos -, e o banco Sudameris, que era o banco da repressão; dinheiro dos empresários jorrava para custear as operações clandestinas e premiar os bandidos com bonificações generosas . Está tudo lá no livro.
Fonte Carta Maior
Saiba mais:
O autor revela os bastidores do livro "Memorias de uma Guerra Suja"
À Carta Maior, Rogério Medeiros relembra o primeiro contato com o ex-delegado do Dops do Espírito Santo, que culminou na publicação de “Memórias de uma Guerra Suja”, em parceria com Marcelo Netto. O livro é composto por uma série de depoimentos em primeira pessoa, nos quais Cláudio Antônio Guerra, hoje com 71 anos, admite participação em crimes na ditadura, além de revelar nomes que compunham os órgãos responsáveis pela repressão.
Por Isabel Harari/Carta Maior
São Paulo - “Ele estava muito magro,
esquelético. Na maca do hospital, vestindo o uniforme presidiário me
disse que queria falar tudo. Contou que era outro homem, um novo Cláudio
Guerra, e queria entregar sua vida pra eu escrever. Tomei um susto”. O
jornalista Rogério Medeiros relembra o primeiro contato com o
ex-delegado do Departamento de Ordem Política Social (DOPS) do Espírito
Santo, que culminou na publicação do livro “Memórias de uma Guerra Suja”
(Editora Topbooks, R$ 44), em parceria com Marcelo Netto.
O livro é composto por uma série de depoimentos em primeira pessoa nos quais Cláudio Antônio Guerra, hoje com 71 anos, admite participação em crimes cometidos nas décadas de 70 e 80, além de revelar nomes que compunham os órgãos de repressão no período militar. O ex-delegado confessa, por exemplo, que incinerou 11 corpos de militantes políticos em uma usina de cana-de-açúcar no norte do Rio de Janeiro em 1973, entre eles o de Ana Rosa Kucinski e David Capistrano. Admite que esteve na reunião em que foi determinada a morte do delegado do Dops de São Paulo, Sérgio Fleury em 1979, e sua participação no atentado contra o show de 1º de maio no Pavilhão do Riocentro, dois anos depois. Também revela sua participação no assassinato do jornalista Alexandre Von Boungarten e denuncia outros projetos que visavam a implantação definitiva da ditadura militar no Brasil.
Ainda na década de 70, Rogério Medeiros fez uma vasta investigação sobre Cláudio Guerra: desde sua trajetória como oficial de justiça no interior do Espírito Santo até a entrada na polícia e sua consolidação com um dos mais importantes homens do Dops. Foram publicadas uma série de reportagens no Jornal do Brasil que desmistificaram a imagem de Guerra, que até então era visto como “defensor da ordem e dos bons costumes”. Foi revelada sua ligação com o crime organizado, a participação em uma ação que culminou na morte de 43 pessoas, entre trabalhadores e lideranças rurais, e acusações de queima de arquivos públicos. “A matéria que escrevi para o JB colocava em jogo essa imagem de justiceiro, combatente do crime. E aí ele cai na esparrela. O governador Max Mauro fez o inquérito e entregou à polícia federal. Ele [Guerra] surge como chefe do crime organizado e em seguida vai preso”, conta Medeiros.
A condenação de Guerra também advém de sua relação estreita com o assassinato do bicheiro Jonathas Borlamarques de Souza em 1982, além de sua ligação com a prática do jogo ilegal. O ex-delegado do Dops é acusado, ainda, de matar sua primeira esposa e ex-cunhada em 1980, crime pelo qual ele alega inocência até hoje e cuja condenação continua em aberto.
Após sete anos na prisão, Guerra é transferido para uma casa de repouso, onde cumpre liberdade condicional. “Na cadeia eu passei a conhecer Jesus. Ao me aprofundar no conhecimento da palavra do Senhor, vi a necessidade de caminhar para além do perdão. E assim resolvi vir a público revelar todos os meus atos quando trabalhei em favor do regime militar. Aquilo que para mim era matar um inimigo ficou claro, com Jesus, não passar de crime hediondo, que a partir de agora todos vão conhecer. (...) Passei a acreditar que poderia ter uma vida nova, na companhia de deus. Agora minha luta é esta: ter uma vida normal. Estou em paz”. Hoje Guerra é pastor da igreja Assembléia de Deus em Vitória (ES).
A confecção do livro levou cerca de três anos. Embates e atritos ocorreram antre os jornalistas e o relator, consequência da dificuldade de apuração dos fatos, da relutância em resgatar uma memória tão antiga e o receio de denunciar nomes ainda em voga no cenário político brasileiro. “Ou diz tudo ou não diz nada”, essa foi a frase proferida por Medeiros diante dos temores de Guerra. O jornalista também comenta o fato de o livro ser narrado em primeira pessoa, foco de discussão entre os profissionais no processo de composição das memórias: “Ele tinha que falar em primeira pessoa, ele tinha que dizer que matou. Não adianta nada nós escrevermos que ele fez isso, fez aquilo... Isso para poder ser coerente até com seu discurso de que está deixando tudo isso pra trás e entrando em outra vida ”.
A ligação entre Guerra e Medeiros embasa-se em critérios estritamente profissionais, diz o jornalista. Ele conta que em todos os encontros manteve uma distância de seu entrevistado, tratando-o como um "criminoso", fato que também foi motivo de impasses durante a organização do livro. “Eu não estou aqui para defender o Cláudio. Eu fiz o meu papel de pegar os fatos e averiguar para ver se eles tinham mesmo acontecido. Eu não tenho uma relação próxima com ele. Eu trabalhei com ele. Depois da publicação do livro nós não mantemos contato”.
Marcelo Netto, que segundo a editora do livro, a Topbooks, recusa-se a dar entrevistas, construiu outro tipo de relação com seu entrevistado. Na apresentação do livro escreve: “Em nossas longas conversas pessoais e pelo Skype tentei entender o que ia dentro da sua cabeça. Fustigava sua memória, mas procurava compreender a sua fé e o que o motivava a falar depois de tanto tempo. (...) Prometi que, na medida do possível, vou estar ao seu lado na caminhada que começa com a publicação do seu depoimento”.
Na mesma apresentação, Netto faz menção ao jornal Folha de S. Paulo e às Organizações Globo, bem como a seus respectivos dirigentes, Paulo Frias e Roberto Marinho, agradecendo-os pela importância que tiveram na sua formação profissional e revelando sua relação íntima com ambos. As duas páginas nas quais o jornalista escreve seu agradecimento também contém trechos em que o autor pede, de certa forma, desculpas pelo conteúdo do livro.
Há, nos relatos de Guerra, partes em que revela a participação da Folha em atentados contra militantes políticos em São Paulo e a presença constante de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, chefe de direção de programação e produção da TV Globo, na sauna em que os militares e simpatizantes do regime se encontravam para planejar ações que visavam a implantação definitiva da ditadura no Brasil.
A quebra do silêncio de Guerra, para Netto, representa um importante passo para a consolidação da democracia no país. “Os militares não devem ter medo de conviver com os erros de um passado que acabou levando, por caminhos tortos, a um Brasil melhor”.
Ex-militares e componentes da Comunidade de Informação, “conjunto de órgãos estatais responsáveis pela segurança interna do país e pelo combate à subversão”, citados por Guerra, alegam que os relatos do ex-delegado são falaciosos. O coronel Juarez e o coronel Ustra anunciaram publicamente que não o conhecem. Mas Guerra respondeu que está disposto a enfrentá-los na Comissão da Verdade.
A ausência de seu nome em listas de entidades de defesa dos direitos humanos explicaria-se porque ele não era considerado um torturador, e sim um matador. Outro fator que explicaria a inexistência do nome de Guerra nesses documentos é o uso frequente de codinomes como Dr. Reinaldo e Stanislau Meirelles. Muitos afirmam, porém, que o depoimento é fruto de um surto de loucura. Medeiros desmente: “Ele está completamente consciente do que está fazendo. Nos três anos que convivemos isso ficou claro pra nós ”.
Segundo Guerra, foi a fé reavivada na cadeia o motivo pelo qual revelou seu passado publicamente. “Cláudio quer deixar o passado pra trás e entrar em uma vida religiosa. Ele quer fazer isso. Não estou dizendo que é possível”, afirma Medeiros. O jornalista, no entanto, não acredita que o discurso do ex-delegado seja pautado apenas por motivos religiosos: “Por renome. Ele começou a contar tudo porque passou a conviver estritamente com a mídia. De repente resolveu fazer carreira como personalidade, como pastor. Ele quis sair fora do passado. Ele não quer se situar como se fosse um homem em busca de perdão, que tivesse arrependido. É assim: a vida para trás é essa e daqui pra frente eu vou ter outra vida ”.
Guerra saiu da casa de idosos em Vitória, onde estava hospedado, e recusa-se a dar entrevistas. Afirmou que só vai aparecer em público depois que for à Comissão da Verdade.
O livro é composto por uma série de depoimentos em primeira pessoa nos quais Cláudio Antônio Guerra, hoje com 71 anos, admite participação em crimes cometidos nas décadas de 70 e 80, além de revelar nomes que compunham os órgãos de repressão no período militar. O ex-delegado confessa, por exemplo, que incinerou 11 corpos de militantes políticos em uma usina de cana-de-açúcar no norte do Rio de Janeiro em 1973, entre eles o de Ana Rosa Kucinski e David Capistrano. Admite que esteve na reunião em que foi determinada a morte do delegado do Dops de São Paulo, Sérgio Fleury em 1979, e sua participação no atentado contra o show de 1º de maio no Pavilhão do Riocentro, dois anos depois. Também revela sua participação no assassinato do jornalista Alexandre Von Boungarten e denuncia outros projetos que visavam a implantação definitiva da ditadura militar no Brasil.
Ainda na década de 70, Rogério Medeiros fez uma vasta investigação sobre Cláudio Guerra: desde sua trajetória como oficial de justiça no interior do Espírito Santo até a entrada na polícia e sua consolidação com um dos mais importantes homens do Dops. Foram publicadas uma série de reportagens no Jornal do Brasil que desmistificaram a imagem de Guerra, que até então era visto como “defensor da ordem e dos bons costumes”. Foi revelada sua ligação com o crime organizado, a participação em uma ação que culminou na morte de 43 pessoas, entre trabalhadores e lideranças rurais, e acusações de queima de arquivos públicos. “A matéria que escrevi para o JB colocava em jogo essa imagem de justiceiro, combatente do crime. E aí ele cai na esparrela. O governador Max Mauro fez o inquérito e entregou à polícia federal. Ele [Guerra] surge como chefe do crime organizado e em seguida vai preso”, conta Medeiros.
A condenação de Guerra também advém de sua relação estreita com o assassinato do bicheiro Jonathas Borlamarques de Souza em 1982, além de sua ligação com a prática do jogo ilegal. O ex-delegado do Dops é acusado, ainda, de matar sua primeira esposa e ex-cunhada em 1980, crime pelo qual ele alega inocência até hoje e cuja condenação continua em aberto.
Após sete anos na prisão, Guerra é transferido para uma casa de repouso, onde cumpre liberdade condicional. “Na cadeia eu passei a conhecer Jesus. Ao me aprofundar no conhecimento da palavra do Senhor, vi a necessidade de caminhar para além do perdão. E assim resolvi vir a público revelar todos os meus atos quando trabalhei em favor do regime militar. Aquilo que para mim era matar um inimigo ficou claro, com Jesus, não passar de crime hediondo, que a partir de agora todos vão conhecer. (...) Passei a acreditar que poderia ter uma vida nova, na companhia de deus. Agora minha luta é esta: ter uma vida normal. Estou em paz”. Hoje Guerra é pastor da igreja Assembléia de Deus em Vitória (ES).
A confecção do livro levou cerca de três anos. Embates e atritos ocorreram antre os jornalistas e o relator, consequência da dificuldade de apuração dos fatos, da relutância em resgatar uma memória tão antiga e o receio de denunciar nomes ainda em voga no cenário político brasileiro. “Ou diz tudo ou não diz nada”, essa foi a frase proferida por Medeiros diante dos temores de Guerra. O jornalista também comenta o fato de o livro ser narrado em primeira pessoa, foco de discussão entre os profissionais no processo de composição das memórias: “Ele tinha que falar em primeira pessoa, ele tinha que dizer que matou. Não adianta nada nós escrevermos que ele fez isso, fez aquilo... Isso para poder ser coerente até com seu discurso de que está deixando tudo isso pra trás e entrando em outra vida ”.
A ligação entre Guerra e Medeiros embasa-se em critérios estritamente profissionais, diz o jornalista. Ele conta que em todos os encontros manteve uma distância de seu entrevistado, tratando-o como um "criminoso", fato que também foi motivo de impasses durante a organização do livro. “Eu não estou aqui para defender o Cláudio. Eu fiz o meu papel de pegar os fatos e averiguar para ver se eles tinham mesmo acontecido. Eu não tenho uma relação próxima com ele. Eu trabalhei com ele. Depois da publicação do livro nós não mantemos contato”.
Marcelo Netto, que segundo a editora do livro, a Topbooks, recusa-se a dar entrevistas, construiu outro tipo de relação com seu entrevistado. Na apresentação do livro escreve: “Em nossas longas conversas pessoais e pelo Skype tentei entender o que ia dentro da sua cabeça. Fustigava sua memória, mas procurava compreender a sua fé e o que o motivava a falar depois de tanto tempo. (...) Prometi que, na medida do possível, vou estar ao seu lado na caminhada que começa com a publicação do seu depoimento”.
Na mesma apresentação, Netto faz menção ao jornal Folha de S. Paulo e às Organizações Globo, bem como a seus respectivos dirigentes, Paulo Frias e Roberto Marinho, agradecendo-os pela importância que tiveram na sua formação profissional e revelando sua relação íntima com ambos. As duas páginas nas quais o jornalista escreve seu agradecimento também contém trechos em que o autor pede, de certa forma, desculpas pelo conteúdo do livro.
Há, nos relatos de Guerra, partes em que revela a participação da Folha em atentados contra militantes políticos em São Paulo e a presença constante de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, chefe de direção de programação e produção da TV Globo, na sauna em que os militares e simpatizantes do regime se encontravam para planejar ações que visavam a implantação definitiva da ditadura no Brasil.
A quebra do silêncio de Guerra, para Netto, representa um importante passo para a consolidação da democracia no país. “Os militares não devem ter medo de conviver com os erros de um passado que acabou levando, por caminhos tortos, a um Brasil melhor”.
Ex-militares e componentes da Comunidade de Informação, “conjunto de órgãos estatais responsáveis pela segurança interna do país e pelo combate à subversão”, citados por Guerra, alegam que os relatos do ex-delegado são falaciosos. O coronel Juarez e o coronel Ustra anunciaram publicamente que não o conhecem. Mas Guerra respondeu que está disposto a enfrentá-los na Comissão da Verdade.
A ausência de seu nome em listas de entidades de defesa dos direitos humanos explicaria-se porque ele não era considerado um torturador, e sim um matador. Outro fator que explicaria a inexistência do nome de Guerra nesses documentos é o uso frequente de codinomes como Dr. Reinaldo e Stanislau Meirelles. Muitos afirmam, porém, que o depoimento é fruto de um surto de loucura. Medeiros desmente: “Ele está completamente consciente do que está fazendo. Nos três anos que convivemos isso ficou claro pra nós ”.
Segundo Guerra, foi a fé reavivada na cadeia o motivo pelo qual revelou seu passado publicamente. “Cláudio quer deixar o passado pra trás e entrar em uma vida religiosa. Ele quer fazer isso. Não estou dizendo que é possível”, afirma Medeiros. O jornalista, no entanto, não acredita que o discurso do ex-delegado seja pautado apenas por motivos religiosos: “Por renome. Ele começou a contar tudo porque passou a conviver estritamente com a mídia. De repente resolveu fazer carreira como personalidade, como pastor. Ele quis sair fora do passado. Ele não quer se situar como se fosse um homem em busca de perdão, que tivesse arrependido. É assim: a vida para trás é essa e daqui pra frente eu vou ter outra vida ”.
Guerra saiu da casa de idosos em Vitória, onde estava hospedado, e recusa-se a dar entrevistas. Afirmou que só vai aparecer em público depois que for à Comissão da Verdade.
Fotos: Arquivo
Fonte Carta Maior
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