sexta-feira, 6 de julho de 2012

O julgamento do mensalão e a felicidade


O recesso dos trabalhos no Supremo Tribunal Federal (STF) durante o mês de julho é o rufar dos tambores anunciando o que a partir de agosto deve se tornar um dos mais importantes julgamentos do século, nada obstante o ministro Marco Aurélio afirme se tratar de "um julgamento como qualquer outro".

 Foto escolhida do Blog do Rubens Brasil

por Saul Tourinho Leal
Valor Econômico

Em agosto, teremos a apreciação, pela Corte, da Ação Penal 470, de relatoria do ministro Joaquim Barbosa, o “caso do mensalão”, cuja logística necessária à deliberação tem desafiado a criatividade do presidente Ayres Britto.

Na ação, 38 das mais importantes figuras políticas da República alçadas ao poder durante a “era Lula” são acusadas de crimes que variam de formação de quadrilha, passando por lavagem de dinheiro, corrupção ativa e passiva, evasão de divisas e gestão fraudulenta. O pano de fundo da discussão, muito mais do que tipificações penais, diz respeito aos valores que conduzem a vida política brasileira nesse início de século. É uma discussão com vieses jurídicos, políticos, filosóficos e, principalmente, éticos.

Há ainda outro fator que deve gozar da maior atenção. Falo da consequência dessa discussão para a felicidade dos brasileiros. Segundo pesquisa Gallup realizada pela Forbes em 155 países entre 2005 e 2009, o Brasil é o 12º país mais feliz do mundo. Todavia, há fatores que causam infelicidade tremenda. Um deles é a corrupção.

A corrupção estabelece tratamento desigual entre aqueles que deveriam gozar da mesma consideração e respeito nas suas relações com o Estado. Além disso, consolida uma perniciosa cultura de incredulidade quanto a valores importantes para uma sociedade.

O mero fato de o Supremo apreciar o caso do mensalão, numa sessão pública transmitida ao vivo para todo o Brasil por meio de um canal de televisão, contribui para a ampliação das sensações de felicidade dos brasileiros e insere o tribunal, mais uma vez, numa das mais fascinantes ciências atuais: a identificação, análise e mensuração da felicidade da sociedade nas suas relações com o Estado.

Há fatores que causam infelicidade tremenda e um deles é a corrupção

A professora Carol Graham é uma importante pesquisadora que tem estudado a felicidade ao redor do mundo. Envolta num cachecol vermelho, com óculos de aros arredondados, camisa branca de gola alta sobre o corpo esguio e um colar de pérolas combinando com os brincos, a peruana de Lima radicada nos Estados Unidos discorreu, em sua sala de trabalho no coração de Washington, sobre como é possível mensurar o bem-estar dos povos e, com isso, abrir espaço para dirigir as decisões públicas em busca da felicidade coletiva.

Segundo ela, quando níveis elevados de corrupção são a norma, as pessoas se adaptam e passam a contar com níveis ainda superiores de corrupção. Diante da situação, é “mais difícil conquistar o apoio sócio-político necessário para as difíceis medidas políticas visando alcançar um índice mais baixo de corrupção”. A corrupção passa a fazer parte do código de funcionamento do próprio aparelho estatal e, no caso do mensalão, da vida política-partidária, tornando difícil a apuração das irregularidades pelas pessoas imersas em um ambiente no qual o desrespeito às leis passa a ser a regra. Diante da dificuldade desse autoexercício, o Supremo Tribunal Federal aparece como instância adequada a realizar o julgamento da questão.

Graham alerta para o fato de que, embora a adaptação “possa ser benéfica para o bem-estar individual e, porventura, para a sobrevivência, poderá também ser negativa num sentido coletivo, pois leva as sociedades a resvalar em equilíbrios perigosos e assim permanecer – como é o caso do prolongamento de regimes muito corruptos e/ou violentos – por longos períodos”. É que a adaptação anestesia a sociedade e desestimula-a a confrontar o que se coloca como algo que atrai cada vez menos o repúdio social.

A associação World Values Survey, uma das mais influentes em pesquisas sobre políticas públicas, indagou: “Em geral, você diria que pode confiar na maioria das pessoas ou que nunca é demais ter cuidado com elas?” A proporção de quem diz “sim, posso confiar na maioria das pessoas” varia de 5% no Brasil a 64% na Noruega. Como serei feliz num ambiente de desconfiança recíproca?

O que o STF faz ao pautar o julgamento do caso do mensalão é introduzir na agenda nacional um importante debate acerca dos valores cívicos que devem conduzir a nossa sociedade. Com isso, ele tem a chance de ampliar a felicidade dos brasileiros ao possibilitar que repudiemos coletivamente a prática da corrupção, que é um dos fatores que enfraquecem as nossas sensações de bem-estar.

Não se está defendendo que devemos condenar os acusados para que, com isso, saciemos a sede de justiça dos brasileiros. Esse perigoso utilitarismo é bem contraposto pelo filósofo norte-americano Michael Sandel, com exemplos como o êxtase causado nas pessoas quando a Roma antiga atirava cristãos aos leões, no Coliseu. Fazer as maiorias felizes nem sempre é fazer a coisa certa.

O que se diz aqui é que a corrupção como elemento central da relação mantida pelos cidadãos com o Estado constitui um elemento nocivo ao desenvolvimento de uma sociedade crente nos valores cívicos importantes como o compromisso público, a solidariedade coletiva e o envolvimento sincero com as decisões políticas acerca da nossa vida.

Além disso, o ambiente de descrença decorrente da corrupção desenfreada empurra a sociedade para uma adaptação promíscua, pois elimina o nosso choque com a prática, minimizando as sensações de infelicidade diante do fenômeno.

Pesquisas apontam que tolerância às minorias, exercício pleno da democracia direta e o combate à corrupção ampliam a felicidade coletiva. O STF se inseriu na primeira temática ao decidir questões como a demarcação da reserva índígena Raposa Serra do Sol, as uniões homoafetivas e as políticas de cotas. Ao decidir pela participação de todos os cidadãos do Pará no plebiscito de divisão do Estado, a Corte ampliou os partícipes da democracia direta. Agora, chegou a hora de se inserir na derradeira temática, que é o incitamento a uma cultura de intolerância à corrupção. Essa postura já tem sido tomada pela Corte, a exemplo do que ocorreu com a negativa de habeas corpus ao então governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, à declaração de constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa e garantia de amplos poderes ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Chegou a hora do mensalão.

Saul Tourinho Leal é pesquisador-visitante na Universidade Georgetown, doutorando em direito constitucional na PUC-SP e professor da pós-graduação do UniCeub

Fonte: Valor Econômico
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