O recesso dos trabalhos no Supremo Tribunal Federal (STF) durante o mês
de julho é o rufar dos tambores anunciando o que a partir de agosto deve
se tornar um dos mais importantes julgamentos do século, nada obstante o
ministro Marco Aurélio afirme se tratar de "um julgamento como qualquer
outro".
Foto escolhida do Blog do Rubens Brasil
por Saul Tourinho Leal
Valor Econômico
Em agosto, teremos a apreciação, pela Corte, da Ação Penal 470, de
relatoria do ministro Joaquim Barbosa, o “caso do mensalão”, cuja
logística necessária à deliberação tem desafiado a criatividade do
presidente Ayres Britto.
Na ação, 38 das mais importantes figuras políticas da República
alçadas ao poder durante a “era Lula” são acusadas de crimes que variam
de formação de quadrilha, passando por lavagem de dinheiro, corrupção
ativa e passiva, evasão de divisas e gestão fraudulenta. O pano de fundo
da discussão, muito mais do que tipificações penais, diz respeito aos
valores que conduzem a vida política brasileira nesse início de século. É
uma discussão com vieses jurídicos, políticos, filosóficos e,
principalmente, éticos.
Há ainda outro fator que deve gozar da maior atenção. Falo da
consequência dessa discussão para a felicidade dos brasileiros. Segundo
pesquisa Gallup realizada pela Forbes em 155 países entre 2005 e 2009, o
Brasil é o 12º país mais feliz do mundo. Todavia, há fatores que causam
infelicidade tremenda. Um deles é a corrupção.
A corrupção estabelece tratamento desigual entre aqueles que deveriam
gozar da mesma consideração e respeito nas suas relações com o Estado.
Além disso, consolida uma perniciosa cultura de incredulidade quanto a
valores importantes para uma sociedade.
O mero fato de o Supremo apreciar o caso do mensalão, numa sessão
pública transmitida ao vivo para todo o Brasil por meio de um canal de
televisão, contribui para a ampliação das sensações de felicidade dos
brasileiros e insere o tribunal, mais uma vez, numa das mais fascinantes
ciências atuais: a identificação, análise e mensuração da felicidade da
sociedade nas suas relações com o Estado.
Há fatores que causam infelicidade tremenda e um deles é a corrupção
A professora Carol Graham é uma importante pesquisadora que tem
estudado a felicidade ao redor do mundo. Envolta num cachecol vermelho,
com óculos de aros arredondados, camisa branca de gola alta sobre o
corpo esguio e um colar de pérolas combinando com os brincos, a peruana
de Lima radicada nos Estados Unidos discorreu, em sua sala de trabalho
no coração de Washington, sobre como é possível mensurar o bem-estar dos
povos e, com isso, abrir espaço para dirigir as decisões públicas em
busca da felicidade coletiva.
Segundo ela, quando níveis elevados de corrupção são a norma, as
pessoas se adaptam e passam a contar com níveis ainda superiores de
corrupção. Diante da situação, é “mais difícil conquistar o apoio
sócio-político necessário para as difíceis medidas políticas visando
alcançar um índice mais baixo de corrupção”. A corrupção passa a fazer
parte do código de funcionamento do próprio aparelho estatal e, no caso
do mensalão, da vida política-partidária, tornando difícil a apuração
das irregularidades pelas pessoas imersas em um ambiente no qual o
desrespeito às leis passa a ser a regra. Diante da dificuldade desse
autoexercício, o Supremo Tribunal Federal aparece como instância
adequada a realizar o julgamento da questão.
Graham alerta para o fato de que, embora a adaptação “possa ser
benéfica para o bem-estar individual e, porventura, para a
sobrevivência, poderá também ser negativa num sentido coletivo, pois
leva as sociedades a resvalar em equilíbrios perigosos e assim
permanecer – como é o caso do prolongamento de regimes muito corruptos
e/ou violentos – por longos períodos”. É que a adaptação anestesia a
sociedade e desestimula-a a confrontar o que se coloca como algo que
atrai cada vez menos o repúdio social.
A associação World Values Survey, uma das mais influentes em
pesquisas sobre políticas públicas, indagou: “Em geral, você diria que
pode confiar na maioria das pessoas ou que nunca é demais ter cuidado
com elas?” A proporção de quem diz “sim, posso confiar na maioria das
pessoas” varia de 5% no Brasil a 64% na Noruega. Como serei feliz num
ambiente de desconfiança recíproca?
O que o STF faz ao pautar o julgamento do caso do mensalão é
introduzir na agenda nacional um importante debate acerca dos valores
cívicos que devem conduzir a nossa sociedade. Com isso, ele tem a chance
de ampliar a felicidade dos brasileiros ao possibilitar que repudiemos
coletivamente a prática da corrupção, que é um dos fatores que
enfraquecem as nossas sensações de bem-estar.
Não se está defendendo que devemos condenar os acusados para que, com
isso, saciemos a sede de justiça dos brasileiros. Esse perigoso
utilitarismo é bem contraposto pelo filósofo norte-americano Michael
Sandel, com exemplos como o êxtase causado nas pessoas quando a Roma
antiga atirava cristãos aos leões, no Coliseu. Fazer as maiorias felizes
nem sempre é fazer a coisa certa.
O que se diz aqui é que a corrupção como elemento central da relação
mantida pelos cidadãos com o Estado constitui um elemento nocivo ao
desenvolvimento de uma sociedade crente nos valores cívicos importantes
como o compromisso público, a solidariedade coletiva e o envolvimento
sincero com as decisões políticas acerca da nossa vida.
Além disso, o ambiente de descrença decorrente da corrupção
desenfreada empurra a sociedade para uma adaptação promíscua, pois
elimina o nosso choque com a prática, minimizando as sensações de
infelicidade diante do fenômeno.
Pesquisas apontam que tolerância às minorias, exercício pleno da
democracia direta e o combate à corrupção ampliam a felicidade coletiva.
O STF se inseriu na primeira temática ao decidir questões como a
demarcação da reserva índígena Raposa Serra do Sol, as uniões
homoafetivas e as políticas de cotas. Ao decidir pela participação de
todos os cidadãos do Pará no plebiscito de divisão do Estado, a Corte
ampliou os partícipes da democracia direta. Agora, chegou a hora de se
inserir na derradeira temática, que é o incitamento a uma cultura de
intolerância à corrupção. Essa postura já tem sido tomada pela Corte, a
exemplo do que ocorreu com a negativa de habeas corpus ao então
governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, à declaração de
constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa e garantia de amplos poderes
ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Chegou a hora do mensalão.
Saul Tourinho Leal é pesquisador-visitante na Universidade
Georgetown, doutorando em direito constitucional na PUC-SP e professor
da pós-graduação do UniCeub
Fonte: Valor Econômico
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