Não pode ser cristã uma Páscoa celebrada por quem se omitiu
e fechou os olhos diante de ditaduras, de torturadores, de injustiçados, com
medo de sofrer e de morrer como Jesus morreu. Não celebra a Páscoa cristã quem
se tornou insensível aos sofrimentos humanos e nada fez para denunciar a
exploração dos mais pobres pelos ricos e poderosos deste mundo (Tg 5,1-6).
De acordo com o Cimi, "em plena Semana Santa, Cristo segue seu calvário e
é crucificado junto com os Munduruku"; na foto, Adenilson Kirixi
assassinado pela PF.
"Celebrar a Páscoa cristã é trilhar o caminho perigoso de Jesus, tornar-se subversivo com ele e como ele, aceitando pagar o preço da perseguição, da calúnia e até mesmo da morte para ficar do lado dos pobres e dos excluídos".
"Celebrar a Páscoa cristã é trilhar o caminho perigoso de Jesus, tornar-se subversivo com ele e como ele, aceitando pagar o preço da perseguição, da calúnia e até mesmo da morte para ficar do lado dos pobres e dos excluídos".
Por José Lisboa Moreira de Oliveira*
Adital
A Páscoa é uma festa típica
do hemisfério norte do nosso planeta. Suas origens remontam a antigas culturas
agrárias e pastoris que celebravam a chegada da primavera, a estação das
flores. Com a chegada da primavera no hemisfério norte o ambiente muda: o frio
aos poucos vai diminuindo, os dias se tornam mais longos, o calor aumenta, a
terra começa a brotar, produzindo flores e alimentos.
Neste contexto o movimento
de povos nômades, que deu origem ao Israel bíblico, associou a festa da Páscoa a
uma experiência de libertação. Tribos
atravessaram o rio Jordão e se instalaram na região de Canaã, a "terra
prometida” a Abraão (Ex 13,3-10). A chegada até a tão sonhada terra onde
"corria leite e mel” (Ex 3,8) foi precedida de muitas lutas contra poderes
opressores, representados pelo Egito, que pretendiam escravizar esses povos.
Nesta luta as pessoas fizeram a experiência profunda de um Deus libertador que
ouviu seus clamores, desceu, se compadeceu, tomou conhecimento de seus
sofrimentos, tomou partido e decidiu tirá-los da opressão, dando as estes
"sem-terra” um terreno fértil e espaçoso (Ex 3,7-10). Assim a festa da chegada
da primavera se tornou para estas tribos o memorialda intervenção divina, que deveria ser celebrado "como um rito permanente, de
geração em geração” (Ex 12,14).
De acordo com o
cristianismo, há cerca de dois mil anos atrás a Páscoa foi enriquecida e plenificada. Jesus, o Filho de Deus Pai,
é enviado ao mundo para trazer a boa notícia de que a libertação dos pobres e
oprimidos finalmente ia se tornar uma realidade definitiva (Lc 4,18-19). Porém,
esta sua ousadia de anunciar uma boa notícia para os pobres e oprimidos, de
anunciar a chegada definitiva do reinado de Deus, não foi bem acolhida pelo
poder religioso e político. Por esta razão Jesus foi acusado de ser subversivo (Lc 23,2), perseguido,
torturado, assassinado e colocado num túmulo. Mas, para surpresa geral de
todos, inclusive dos membros do seu grupo de discípulos e de discípulas, o
profeta Jesus não permaneceu na tumba: ressuscitou e venceu a morte. Seus
seguidores, aos poucos, foram se convertendo e se convencendo de que ele
continuava vivo no meio deles. Passaram a senti-lo bem presente e atuante na
pequena comunidade. Tal experiência deu-lhes força para perder todo e qualquer
medo e retomar a missão do Mestre, continuando a anunciar a Boa Notícia da
libertação "até os extremos da terra” (At 1,8). Aos poucos esta experiência
fantástica foi sendo associada à celebração da Páscoa, de modo que, já no tempo
das comunidades cristãs do Novo Testamento, a Páscoa passou a ser o memorial da paixão, morte e ressurreiçãode Jesus.
Esta rápida memória
histórica da Páscoa nos permite perceber que por trás deste grande evento estão
alguns elementos significativos. Em primeiro lugar a primavera, com a chegada das flores, da luz, do calor e com o
preanúncio de uma possível boa colheita. Em segundo lugar, a experiência da libertação realizada por Javé e vivida
pelas tribos que se uniram para caminhar na direção de uma terra prometida.
Nesta experiência é significativa a decisão de um deus de ficar do lado de
escravos e de sem-terra, coisa impensável no contexto de então, uma vez que
naquela época os deuses sempre estavam do lado dos grandes e poderosos. Por
fim, na plenificação da Páscoa, Jesus
se apresenta como o libertador definitivo que anuncia o projeto de Deus,
voltado de modo particular para os pobres, os oprimidos, os excluídos e os rejeitados
pela sociedade. Por esse motivo é assassinado, mas, pelo poder de Deus Pai,
rompe os laços da morte e permanece vivo, animando seus discípulos e discípulas
e convidando-os a continuarem a sua missão (Mt 28,16-20).
A Carta aos Colossenses
afirma que a pessoa cristã já vive como ressuscitada e, como tal, é convidada a
comprometer-se com ações que expressem o essencial dessa condição que é a
prática do amor ao próximo (Cl 3,1-17). Isso nos autoriza a dizer que a
celebração da páscoa cristã, enquanto memorial da paixão, morte e ressurreição
de Jesus, precisa ser traduzida em atos e gestos concretos de amor ao próximo,
distintivo único e fundamental da identidade do discípulo e da discípula de
Jesus (Jo 13,15).
Assim sendo, a celebração
da Páscoa deve ser uma verdadeira primaveraque expulse todo e qualquer mofo e frieza da Igreja e a faça pulsar de
vitalidade e de acolhida da vida. Não cabe celebrar a Páscoa num contexto de
rigidez e de falta de misericórdia, num ambiente em que as leis e as normas
estão acima da vida das pessoas (Mc 3,1-5). Não haverá Páscoa de Jesus numa
Igreja que condena e discrimina certos filhos e certas filhas de Deus; que
reserva os bancos de seus templos para aqueles que se autoproclamam perfeitos e
merecedores do céu. Além disso, a Páscoa deve ser a festa da libertação dos pobres e dos oprimidos. E não se trata
apenas de uma falsa libertação "espiritual”, cuja recompensa é uma vida futura,
programada para depois da morte. Trata-se, como nos mostra a experiência do
Êxodo, de uma libertação a ser realizada aqui nesta terra. Uma libertação que
inclui terra, casa, comida, emprego, saúde, escola etc. E para celebrar esta
Páscoa os cristãos e as cristãs precisam, como Javé, ver a opressão, descer até
o submundo dos pobres, sentir o cheiro da pobreza, tocar com os pés e as mãos
os sofrimentos dos injustiçados e excluídos e permanecer comprometidos com as suas lutas por dias melhores (Ex
3,7-10).
Celebrar a Páscoa cristã é
trilhar o caminho perigoso de Jesus, tornar-se subversivo com ele e como ele,
aceitando pagar o preço da perseguição, da calúnia e até mesmo da morte para
ficar do lado dos pobres e dos excluídos. Para celebrar a Páscoa verdadeira de
Jesus não é suficiente ficar repetindo a doutrina abstrata do Catecismo da
Igreja Católica. É preciso que o ensinamento dessa doutrina crie "a revolta
entre o povo” (Lc 23,5), ou seja, incomode tanto o poder religioso como o poder
civil, devolvendo às pessoas a consciência crítica para enxergar as coisas como
elas realmente são. Não pode ser cristã uma Páscoa celebrada por quem se omitiu
e fechou os olhos diante de ditaduras, de torturadores, de injustiçados, com
medo de sofrer e de morrer como Jesus morreu. Não celebra a Páscoa cristã quem
se tornou insensível aos sofrimentos humanos e nada fez para denunciar a
exploração dos mais pobres pelos ricos e poderosos deste mundo (Tg 5,1-6).
Para os cristãos e as
cristãs a Páscoa é a festa da vida, a celebração da vitória de Jesus sobre o
sofrimento e a morte. Por isso é a festa por excelência da alegria e da
esperança. Mas toda alegria, toda festa, toda aleluia, toda exultação é
mentirosa e falsa se primeiro não for purificação do mofo eclesiástico,
compromisso com a libertação dos pobres, subversão da ordem estabelecida, tomada
de partido em favor dos pequenos e simples. Neste momento em que ainda pairam muitas
nuvens carregadas sobre a Igreja Católica, em que faltam respostas para tantas
perguntas inquietantes, torna-se urgentíssimo celebrar a Páscoa nos moldes
verdadeiramente cristãos. Se não seguirmos a trilha da Páscoa bíblica teremos
apenas a páscoa consumista, mesmo que
ela seja celebrada em templos religiosos e regada de muito incenso, de muitos
gritos de aleluias e de glórias. "Já que vocês aceitaram Jesus Cristo como
Senhor, vivam como cristãos”, ou seja, "vistam-se com o amor, que é o laço da
perfeição” (Cl 2,6; 3,14).
[*José Lisboa Moreira de Oliveira é Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor
do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past.
Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e
Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de BrasíliaAutor de Viver em comunidade para a missão. Um chamado
à Vida Consagrada Religiosa, por Paulus Editora].
Fonte Adital
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