Nossa América é hoje um laboratório de mudanças políticas. A instituição Igreja quer intervir nestes processos e não para apoiar as mudanças, mas para freá-las. A disputa é pelas consciências. É uma batalha de ideias, pela mudança ou pelo retrocesso.
Francisco I vem para disputar consenso social
Por Julio Gambina#
A Igreja é parte do poder mundial e não só do poder econômico. A
Igreja disputa historicamente o consenso da sociedade. É uma realidade a
considerar em tempos de crise capitalista, considerada também uma crise
de civilização, já que esta civilização contemporânea está organizada
pelo regime do capital, ou seja, pela exploração do homem pelo homem,
pela depredação da Natureza.
Quando o sistema mundial estava desafiado pelo avanço dos povos e
pelo socialismo (como forma que tentava ser alternativa da ordem
mundial), se abriu caminho à Teologia da Libertação, em aberta
confrontação com o poder institucional de uma Igreja retrógrada. Assim, a
Igreja dos pobres se mostrava desde o Sul do mundo, mais precisamente
de Nossa América. A Igreja oficial não podia negar esse rumo que se
sustentava entre os padres de base e que causou um grande debate mundial
no seio da Igreja.
Os rumos da ofensiva popular tocavam à porta da Instituição. A
resposta contemporânea da Instituição Igreja foi acompanhada pela
ofensiva capitalista para recuperar o poder do regime do capital. Esta
ofensiva se materializou nos anos 80, contra o socialismo e os povos,
abrindo o caminho ao poder reacionário dos Ratzinger e Bergoglio.
Faz 40 anos que o neoliberalismo foi ensaiado em nossos territórios,
com as ditaduras e o terrorismo de Estado, para em seguida se estender
para todo o mundo. A Igreja na Argentina, salvo honrosas e escassas
exceções, acompanhou a ditadura genocida desde o parto neoliberal, ainda
que agora fale contra a pobreza e pela ética.
Um papa polonês chegou à Igreja para acompanhar o começo do fim da
experiência socialista, ainda que se discuta o caráter em si daquela
experiência. O capitalismo mundial necessitava do Leste europeu. Assim
entendeu a Alemanha. Os Estados Unidos também. Sem o leste europeu, já
abandonado o projeto socialista original, o mundo deixou de ser bipolar e
se constituiu o rumo unipolar do capitalismo transnacional e
neoliberal.
O rumo unipolar está sendo desafiado pelas mudanças políticas em
Nossa América e o ressurgir do socialismo, seja pelas mãos da revolução
cubana ou por processos específicos que emergem em alguns países
(Venezuela ou Bolívia), inclusive em variados movimentos políticos,
sociais, intelectuais e culturais em nossa região.
Com a morte de Chávez e milhões mobilizados para constituir-se em
sujeitos pelo cumprimento do legado revolucionário e socialista de Hugo
Chávez, a Igreja lança em cena o símbolo de um chefe nascido no Sul, mas
comprometido com o projeto do Norte.
O papa argentino, Francisco I, vem cumprir o projeto mundial para
disputar o consenso da sociedade, especialmente dos povos. Não se trata
apenas de sustentar posições contrárias ao matrimônio igualitário ou
contra o aborto, amplamente difundidas pelo bispo Bergoglio, mas de
gestar uma consciência de disciplina em defesa da ordem contemporânea,
reacionária, de dominação transnacional.
Nossa América é hoje um laboratório de mudanças políticas. A
instituição Igreja quer intervir nestes processos e não para apoiar as
mudanças, mas para freá-las. A disputa é pelas consciências. É uma
batalha de ideias, pela mudança ou pelo retrocesso. Preocupa a eles o
efeito Chávez na região. Preocupa a eles a sucessão política na
Venezuela e a capacidade de estender o rumo socialista. Precisam
disputar o consenso.
Mas, por maiores que sejam os objetivos institucionais de acompanhar a
ofensiva do capital contra o trabalho, os trabalhadores e os setores
populares — inclusive a igreja dos pobres, o movimento religioso popular
— persistem na busca de organizar a sociedade do bem viver (Bolívia), o
bom viver (Equador), o socialismo cubano ou a luta pela emancipação
social de grande parte das classes baixas da Nossa América.
O papa Francisco I veio por esse motivo. Os povos devemos continuar
nossa busca e experimentação por uma nova sociedade, por outro mundo
possível, este que se constrói na luta contínua contra a exploração,
pela emancipação social, contra o capitalismo e o imperialismo, pelo
socialismo.
*Doutor em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires. Julio es Doctor en Ciencias Sociales de la Facultad de Ciencias Sociales
de la UBA. Es Profesor de Economía Política en la Facultad de Derecho de
la Universidad Nacional de Rosario, Presidente de la Fundación de
Investigaciones Sociales y Políticas, FISYP, e Integrante del Comité
Directivo del consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, CLACSO
(2006-2012). También participa como miembro del Consejo Académico de
ATTAC-Argentina y dirige el Centro de Estudios Formación de la
Federación Judicial Argentina. También participa como columnista sobre
Economía y Cooperativismo en medios periodísticos de Capital Federal y
del interior del país.
Fonte Vi o Mundo
Fonte Vi o Mundo
Saiba mais
Os Segredos do Santo Padre
Este foi conivente com a ditadura argentina
Por Carlos Alberto
Lungarzo
Não é um segredo para ninguém o fato
de que a totalidade das hierarquias católicas são inimigas da homossexualidade
(alheia), condenam o aborto até de fetos anencefálicos (o aborto voluntário é admitido
por todos os países Europeus, salvo Espanha), advogam pelo celibato sacerdotal,
proíbem o sexo por prazer, consideram a mulher um ser inferior, etc.
Inclusive o aborto e o homoerotismo
são criticados pela assim chamada “Teologia da Libertação”, tida como minoria
progressista da Igreja.
Tampouco é novidade a histórica
aliança de 1700 anos entre a Igreja e as grandes ordens de Cavalheiros e,
depois, dos exércitos regulares, o que culminou no século XX com o apoio ao
fascismo e a sua versão mais truculenta, o sangrento franquismo espanhol.
Dizer que o novo papa, Francisco,
compartilha esses valores seria uma redundância.
Mas há alguns “segredos” na vida do
pontífice que nem todos conhecem fora de seu país de origem. De fato, quando
ele foi proclamado Papa, milhões de pessoas no mundo devem ter comprado um mapa
para saber onde tinha nascido aquele homem de aspecto simpático e humilde, e biótipo
de italiano do Norte. É natural que alguns desses detalhes não se conheçam.
Para os que desejem informar-se, há
numerosos artigos na Internet, e até alguns livros, cujo conteúdo o próprio
Francisco tentou rebater num contra-livro, só em 2010, quando sua condição de
um dos grandes favoritos (já insinuada em 2005, quando ganhou o segundo lugar
após Ratzinger) se tornou mais concreta.
Os interessados podem ver, entre
outros muitos, os seguintes links:
O leitor encontrará também outros
textos, alguns escritos por organizações que assinam como católicas.
Eventualmente, como em todos os casos, alguns textos podem não ser 100%
verídicos, mas eu não estou fazendo uma acusação. Estou apenas informando de
acusações feitas por outros, e cabe ao leitor se perguntar: “Qual seria o
interesse dessas pessoas em criticar um humilde servidor de Deus?”
A Argentina voltou à normalidade
democrática em 1983 quando o então padre Bergoglio estava com 47 anos. Nessa
época, o atual papa era reitor do Colégio Máximo San José (da cidade de San
Miguel), o maior seminário de formação de sacerdotes da Argentina (1980-1986)
após ter sido, entre 1973 e 1979, o principal chefe (dito, na gíria eclesial, provincial) da poderosa e influente
ordem dos jesuítas.
Sendo Argentina um país absolutamente
católico, sem qualquer miscigenação com religiões nativas como no resto das
Américas, e tendo como exceção apenas uma comunidade judia que sempre padeceu
perseguição (e alguns evangélicos e islâmicos), tudo o que faz a Igreja foi sempre
claramente percebido pelo resto da sociedade. Aliás, ainda hoje, Argentina
talvez seja o único país (não sei o
que acontece atualmente na Polônia, mas eventualmente poderia ser um de dois
casos), em que a Igreja não está
separada do Estado. Por exemplo, o Estado paga um salário aos bispos
(não sei se Bergoglio o aceita ou o doa), mas já houve um conflito com o
Vaticano quando Nestor Kirchner quis tirar a mensalidade de uns 3.000 dólares a
um bispo que propôs que o ministro Gines, defensor da camisinha, devia ser
linchado.
Em 1983, Jorge Bergoglio, uma figura
austera, silenciosa, alheia a chamar a atenção, não tinha nenhuma influência
política evidente, mas acumulava muita influência invisível. Ele utilizou essa
influência para tentar mostrar um rosto “moderno” da Igreja, modificando a
imagem desta como cúmplice qualificado e ativo dos genocídios e torturas
generalizadas, que foram comuns na Argentina muitas vezes.
Por que fez isto? Muito simples. Apesar
de ter mais de 90% de católicos e da mística medieval que impregna quase todas
as instituições da Argentina (pelo menos, até a última vez que eu estive em meu
país de origem), a Igreja ganhou um enorme número de inimigos combatentes,
muitos dos quais, de maneira paradoxal, continuavam se considerando católicos.
Esses inimigos formavam um grande
grupo de pessoas que eram parentes, amigos ou conhecidos qualificados dos
desaparecidos pela ditadura de 1976. O número de mortos em tortura e depois
desaparecidos foi tradicionalmente fixado em 30.000 no ano de 1978, mas eu
acredito que o número total deve ser muito maior, provavelmente entre 35.000 e
42.000, tendo em conta que a ditadura continuou até 1983.
(Não é este o lugar para justificar
esta afirmação que surge de documentação dispersa, e de documentos
internacionais parcialmente desclassificados.)
Unidos aos parentes dos 1.200.000
exilados, refugiados e asilados pelo mundo (ou seja, 3% dos habitantes do país
nesse momento), os familiares e amigos dos desaparecidos deviam somar algo como
6 milhões, o que significa 20% da população. Calculo que, embora muitas pessoas
não tivessem parentes nem amigos, é razoável considerar que a média de afetos
por cada exilado ou desaparecido seja de 5 pessoas.
Como é bem conhecido, a Igreja
Católica apoiou intensa e devotadamente os crimes da ditadura, não apenas encobrindo
ou justificando-os, mas também dando apoio psicológico e propagandístico,
colocando a seu serviço seu aparato internacional (incluída a máfia italiana e
o grupo P2), abençoando as máquinas de choque e os instrumentos usados para
mutilação, e até, em vários casos, aplicando tortura com suas próprias mãos.
Há pelo menos 40 livros em espanhol e
pelo menos 15 em inglês, dedicados de maneira total ou parcial à cumplicidade
da Igreja Católica com os crimes de Estado na Argentina nos anos 1976-1983, e
milhares de páginas de Internet.
De todos os casos de católicos
aliados da ditadura, o mais espantoso é o do padre Christian Wernich, condenado
em 2007 a prisão perpétua. Os que sobreviveram a seu sacerdócio afirmam que, de
todos os torturadores civis e militares, ninguém era tão temido como o santo
confessor. Ele chamava “fazer a barba” a passar a máquina elétrica, mas esta
não era a máquina de barbear, mas de aplicar choque.
Com seu estilo discreto, Bergoglio
tentou jogar um manto de esquecimento nos fatos protagonizados por uma das mais
poderosas e compactas igrejas do planeta, num dos países mais católicos do
mundo, junto com a Polônia e a Irlanda. Não sabemos se ele conseguiu refrear a
saída de fieis da Igreja, já que no ano 2000, menos de 10% do país assistia
regularmente a missa. Mas, ele fez grandes esforços e até permitiu a
jornalistas estrangeiros que redigissem biografias sobre ele, e escreveu sua
própria versão de sua vida, tentando refutar algumas dúzias de testemunhos que
o acusavam de ter participado ativamente na ditadura. Ele fez um trabalho
similar ao de Pio XII, quando, depois da guerra, tentou disfarçar, sem nenhum
sucesso, a estreita colaboração do Vaticano com o nazismo.
Mas, antes
de 1983, como era a relação de Francisco com a ditadura?
Jesuítas e Crianças
Como em muitos outros países, uma
minoria de padres apoiou a causa dos direitos humanos e teve certa militância
no que foi chamado “Teologia da Libertação”.
Dois deles foram os jesuítas Orlando Dorio and Francisco Jalic que
propagavam uma visão social do cristianismo em favelas e bairros populares.
Estes padres foram capturados pelos esquadrões da morte dos militares e
submetidos a tortura, mas conseguiram sobreviver. Enquanto Jalic se fechou num
mosteiro alemão e nunca mais falou de seu passado (e possivelmente, nunca
voltou a Argentina), Dorio acusou explicitamente a Bergoglio, que era a máxima
autoridade de jesuítas, de ter negado proteção, e ter permitido que ele fosse
capturado.
Em vários dos links citados, especialmente no editado pela
UNISINOS, há numerosos detalhes que descrevem, em total, uma quantidade
apreciável de testemunhas. Embora a mídia brasileira tenha ignorado estas
afirmações e diga que são simples conjecturas, um número tal de testemunhas
seria possivelmente aceito por um tribunal penal.
Bergoglio usou por duas vezes os privilégios de não acatar as
decisões da justiça, privilégio que a Argentina concede aos bispos, que têm um
fórum privilegiado equivalente ao dos deputados, senadores e presidentes. Em função disso, recusou dar depoimento aos
tribunais que julgaram os crimes contra a humanidade na época da ditadura.
Bergoglio aceitou, porém, comparecer a uma terceira intimação,
quando a pressão dos milhares de vítimas se tornou muito intensa.
Segundo a advogada Myriam Bregman que trabalha em direitos
humanos, as afirmações de Bergoglio, quando aceitou ir aos tribunais, mostram
que ele e outros padres eram coniventes com os atos praticados pela ditadura.
Ele, porém, não foi indiciado, também com base na “falta” de provas.
Em 1977, a família De la Cuadra - formada por ativos defensores
do direitos humanos (cuja matriarca Licha, 1915-2008, foi condecorada pelos
governos democráticos posteriores à ditadura) - teve sequestrados cinco de seus membros, dos quais apenas
um reapareceu muito depois.
O padre Bergoglio se recusou a
indagar onde eles estavam e até a ajudar a procurar uma criança recém nascida, filha de uma das mulheres desaparecidas.
Em algumas ocasiões, o Santo Padre
não pode refutar que a ditadura argentina tinha feito numerosas atrocidades,
mas argumentou que isso foi uma resposta provocada pela esquerda, que, segundo
ele, também teria usado o terror. Este infame argumento, como todos sabem, foi
fortemente repudiado em todos os países que tiveram ditaduras recentemente.
Durante o governo de Néstor Kirchner
e, após, o de sua esposa, Cristina Fernández, o atual papa, mantendo seu estilo
“sutil” aproveitou para criticar muitas vezes ao governo (que, como o governo
brasileiro, subiu ao poder pelo voto popular), o acusando de ditatorial, de
gerar o caos, de defender pessoas de vida sexual “abominável”, etc.
Com seu estilo aparentemente
moderado, Bergoglio teve certo sucesso onde outros padres, que pregaram
abertamente a tortura e o genocídio dos ateus e marxistas, fracassaram. Com
efeito, apesar de ser unanimemente repudiado pelos defensores de direitos
humanos, inclusive os católicos, ele nunca foi processado, como aconteceu com o
padre Wernich, e até conseguiu forjar uma máscara de tolerância.
Leia Mais
[Novo Papa] A geopolítica do segredo
Ivone Gebara
Escritora, filósofa e teóloga
Adital
Passadas as primeiras horas do impacto da eleição do
Cardeal Bergoglio de Buenos Aires, das emoções primeiras de termos um papa
latino-americano, com expressão amável e cordial a vida presente nos convida a
refletir.
Apesar de seu valor, os meios de comunicação têm também
o poder de amortizar as mentes e de impedir que perguntas críticas aflorem ao
pensamento das pessoas. Nesses dois
últimos dias que precederam a eleição papal, muitas pessoas no Brasil e no
mundo foram tomadas pelas transmissões em direto de Roma. Sem dúvida um
acontecimento histórico desses não se repete todos os meses! Mas, que
interesses tiveram as grandes empresas de telecomunicações em transmitir os inúmeros
detalhes da escolha do novo Papa? A quem servem os milhões de dólares gastos
nas transmissões ininterruptas até a chegada da fumaça branca? Do lado de quem
se situam esses interesses? Que interesses tem o Vaticano em abrir as
possibilidades para essas transmissões? Essas perguntas talvez inúteis para
muitos, continuam a ser significativas para alguns grupos preocupados com o crescimento
da consciência humanista de muitos/as de nós.
São em grande parte as empresas de telecomunicações as responsáveis pela manutenção do segredo nas políticas eleitorais do Vaticano. O segredo, os juramentos e as penalidades por não respeitá-los são parte integrante do negócio. Criam impactos e fazem notícia. Não se trata de uma tradição secular sem conseqüências para a vida do mundo, mas de comportamentos que acabam viciando a busca de diálogo entre os grupos ou excluindo grupos de um necessário diálogo. Nenhuma crítica a esse sistema perverso que continua usando o Espírito Santo para a manutenção de posturas ultraconservadoras revestidas de ares de religiosidade e bondosa submissão é feito. Nenhum espaço para que vozes dissonantes possam se manifestar mesmo com o risco de serem apedrejadas é aberto na oficialidade das transmissões. Uma ou outra vez se percebe uma pequena ponta crítica se esboçando, mas logo é abafada pelo "status quo” imposto pela ideologia dominante. Do novo papa Francisco se contou que usava transportes públicos, estava próximo dos pobres, fazia sua comida e que a escolha desse nome o assemelhavam ao grande santo de Assis. Foi imediatamente apresentado como uma figura simples, cordial e simpática. Na imprensa católica nada se falou das suspeitas de muitos em relação a sua postura nos tempos da ditadura militar, de suas atuais posturas políticas, de suas posições contrárias ao matrimonio igualitário, ou mesmo contra o aborto legal. Nada se falou de suas conhecidas críticas em relação à teologia da libertação e de seu desinteresse pela teologia feminista. A figura bondosa e sem ostentação eleita pelos cardeais assistidos pelo Espírito Santo encobriu o homem real com suas inúmeras contradições. Hoje os jornais (Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo) delinearam perfis diferentes do novo papa e temos uma percepção mais realista de sua biografia. Além disso, foi possível intuir que sua eleição é sem dúvida parte de uma geopolítica de interesses divididos e de equilíbrio de forças no mundo católico. Um artigo de Julio C. Gambina da Argenpress publicado via internet ontem (13 de março de 2013) assim como outras informações enviadas por grupos alternativos da Nicarágua, Venezuela, Brasil e, sobretudo da Argentina confirmaram minhas suspeitas. A cátedra de Pedro e o Estado do Vaticano devem mover suas pedras no xadrez mundial para favorecer as forças dos projetos políticos do norte e dos seus aliados do sul. O sul foi de certa maneira co-optado pelo norte. Um chefe político da Igreja, vindo do sul vai equilibrar as pedras do xadrez mundial, bastante movimentadas nos últimos anos pelos governos populares da América latina e pelas lutas de muitos movimentos entre eles os movimentos feministas do continente com reivindicações que atormentam o Vaticano. Se, é no sul que alguma coisa nova está acontecendo politicamente nada melhor do que um papa do sul, um latino-americano para enfrentar esse novo momento político e conservar as tradições da família e da propriedade intactas. Sem dúvida uma afirmação desse tipo quebra o encanto do momento da eleição e a emoção de ver a multidão na Praça de São Pedro irrompendo em aplausos e gritos de alegria diante da figura do papa Francisco. Muitos dirão que essas críticas tiram a beleza de um acontecimento tão emocionante quanto a eleição de um papa. Talvez, mas creio que são críticas necessárias.
A tão badalada preservação da evangelização como prioridade da Igreja parece ser a preservação de uma ordem hierárquica do mundo onde as elites governam e os povos aplaudem nas grandes praças públicas, se emocionam, rezam e cantam para que as bênçãos divinas caiam sobre as cabeças dos novos governantes político-religiosos. O mesmo catecismo com poucas variações continua a ser reproduzido. Não há reflexão, não se despertam as consciências, não se convida ao pensamento, mas a conservação de uma doutrina quase mágica. Por um lado é a sociedade do espetáculo que nos invade para que entremos na disciplina da ordem/desordem contemporânea com certa dose de romantismo e por outro a sociedade assistencialista identificada à evangelização. Sair às ruas para dar de comer aos pobres e rezar com os prisioneiros embora tenha algo de humanitário não resolve o problema da exclusão social presente nos muitos países do mundo.
Escrever sobre a "geopolítica do segredo” em tempos de euforia mediática é como estragar a festa dos vendilhões do Templo felizes com suas barracas cheias de terços, escapulários, vidros de água benta e imagens grandes e pequenas de muitos santos. O problema é que se abrimos o segredo desmancha-se o charme da fumaça branca, se quebra o suspense de um conclave secreto que fecha ao povo católico o acesso às informações às quais temos direito, se desnudam os corpos purpurados com suas histórias tortuosas.
Quebrar o segredo é quebrar a falsidade do sistema político-religioso que governa a Igreja Católica Romana. É tirar as máscaras que nos sustentam para afinal abrir nossos corações para a real interdependência e responsabilidade entre todos nós. Os jogos de poder são cheios de astúcias, ilusões e até de boa fé. Somos capazes de nos impressionar com um gesto público de carinho ou de simpatia sem nos perguntarmos sobre o que de fato constituiu a história dessa pessoa. Nem nos perguntamos sobre as ações de seu passado, de seu presente e suas perspectivas de futuro. É apenas o momento da aparição da figura simpática vestida de branco que nos impressiona. Somos capazes de nos emocionarmos frente a um carinhoso "bona cerra” papal (boa noite) e irmos para cama como crianças bem comportadas abençoadas pelo bondoso papai. Já não somos mais órfãos visto que a orfandade paterna numa sociedade patriarcal é insuportável mesmo por poucos dias.
Nós somos cúmplices da manutenção desses poderes tenebrosos que nos encantam e nos oprimem ao mesmo tempo. Nós, sobretudo os que têm mais lucidez nos processos políticos e religiosos, somos responsáveis pela ilusão que esses poderes criam na vida de milhares de pessoas, sobretudo veiculadas pelos meios de comunicação religiosos. Somos capazes de nos enternecer de tal forma que nos esquecemos dos jogos do poder, das manipulações invisíveis, da arte teatral cultivada e tão importante nessas ocasiões.
Não podemos fazer previsões sobre os rumos do futuro da governança da Igreja Católica Romana. Mas à primeira vista não parece que podemos esperar grandes mudanças nas estruturas e políticas atuais. As mudanças significativas virão se as comunidades cristãs católicas assumirem de fato a direção do presente do cristianismo, ou seja, se elas forem capazes de dizer a partir das necessidades de suas vidas como o Evangelho de Jesus poderá ser traduzido e vivido em nossas vidas hoje.
A geopolítica do segredo tem interesses altíssimos a defender. É parte de um projeto mundial de poder aonde as forças da ordem se vêm ameaçadas pelas revoluções sociais e culturais em curso em nosso mundo. Manter o segredo é justificar que há forças superiores às forças históricas da vida e que estas são mais decisivas que os rumos que podemos dar à nossa luta coletiva por dignidade, pão, justiça e misericórdia em meio aos muitos reveses e tristezas que nos acometem em meio do caminho.
Termino essa breve reflexão na esperança de que possamos não apagar a luz da liberdade que vive em nós e seguirmos bebendo das fontes de nossos sonhos de dignidade com lucidez sem nos impressionarmos com as surpresas que podem parecer grandes novidades. Afinal é apenas mais um papa que inscreve seu nome nessa instituição que apesar de sua história de altos e baixos mereceria ser transformada e repensada para os dias de hoje.
Mudanças podem sempre acontecer e é preciso estar abertos aos pequenos sinais de esperança que irrompem por todos os lados mesmo das instituições as mais anacrônicas de nosso mundo.
14 de Março de 2013.
São em grande parte as empresas de telecomunicações as responsáveis pela manutenção do segredo nas políticas eleitorais do Vaticano. O segredo, os juramentos e as penalidades por não respeitá-los são parte integrante do negócio. Criam impactos e fazem notícia. Não se trata de uma tradição secular sem conseqüências para a vida do mundo, mas de comportamentos que acabam viciando a busca de diálogo entre os grupos ou excluindo grupos de um necessário diálogo. Nenhuma crítica a esse sistema perverso que continua usando o Espírito Santo para a manutenção de posturas ultraconservadoras revestidas de ares de religiosidade e bondosa submissão é feito. Nenhum espaço para que vozes dissonantes possam se manifestar mesmo com o risco de serem apedrejadas é aberto na oficialidade das transmissões. Uma ou outra vez se percebe uma pequena ponta crítica se esboçando, mas logo é abafada pelo "status quo” imposto pela ideologia dominante. Do novo papa Francisco se contou que usava transportes públicos, estava próximo dos pobres, fazia sua comida e que a escolha desse nome o assemelhavam ao grande santo de Assis. Foi imediatamente apresentado como uma figura simples, cordial e simpática. Na imprensa católica nada se falou das suspeitas de muitos em relação a sua postura nos tempos da ditadura militar, de suas atuais posturas políticas, de suas posições contrárias ao matrimonio igualitário, ou mesmo contra o aborto legal. Nada se falou de suas conhecidas críticas em relação à teologia da libertação e de seu desinteresse pela teologia feminista. A figura bondosa e sem ostentação eleita pelos cardeais assistidos pelo Espírito Santo encobriu o homem real com suas inúmeras contradições. Hoje os jornais (Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo) delinearam perfis diferentes do novo papa e temos uma percepção mais realista de sua biografia. Além disso, foi possível intuir que sua eleição é sem dúvida parte de uma geopolítica de interesses divididos e de equilíbrio de forças no mundo católico. Um artigo de Julio C. Gambina da Argenpress publicado via internet ontem (13 de março de 2013) assim como outras informações enviadas por grupos alternativos da Nicarágua, Venezuela, Brasil e, sobretudo da Argentina confirmaram minhas suspeitas. A cátedra de Pedro e o Estado do Vaticano devem mover suas pedras no xadrez mundial para favorecer as forças dos projetos políticos do norte e dos seus aliados do sul. O sul foi de certa maneira co-optado pelo norte. Um chefe político da Igreja, vindo do sul vai equilibrar as pedras do xadrez mundial, bastante movimentadas nos últimos anos pelos governos populares da América latina e pelas lutas de muitos movimentos entre eles os movimentos feministas do continente com reivindicações que atormentam o Vaticano. Se, é no sul que alguma coisa nova está acontecendo politicamente nada melhor do que um papa do sul, um latino-americano para enfrentar esse novo momento político e conservar as tradições da família e da propriedade intactas. Sem dúvida uma afirmação desse tipo quebra o encanto do momento da eleição e a emoção de ver a multidão na Praça de São Pedro irrompendo em aplausos e gritos de alegria diante da figura do papa Francisco. Muitos dirão que essas críticas tiram a beleza de um acontecimento tão emocionante quanto a eleição de um papa. Talvez, mas creio que são críticas necessárias.
A tão badalada preservação da evangelização como prioridade da Igreja parece ser a preservação de uma ordem hierárquica do mundo onde as elites governam e os povos aplaudem nas grandes praças públicas, se emocionam, rezam e cantam para que as bênçãos divinas caiam sobre as cabeças dos novos governantes político-religiosos. O mesmo catecismo com poucas variações continua a ser reproduzido. Não há reflexão, não se despertam as consciências, não se convida ao pensamento, mas a conservação de uma doutrina quase mágica. Por um lado é a sociedade do espetáculo que nos invade para que entremos na disciplina da ordem/desordem contemporânea com certa dose de romantismo e por outro a sociedade assistencialista identificada à evangelização. Sair às ruas para dar de comer aos pobres e rezar com os prisioneiros embora tenha algo de humanitário não resolve o problema da exclusão social presente nos muitos países do mundo.
Escrever sobre a "geopolítica do segredo” em tempos de euforia mediática é como estragar a festa dos vendilhões do Templo felizes com suas barracas cheias de terços, escapulários, vidros de água benta e imagens grandes e pequenas de muitos santos. O problema é que se abrimos o segredo desmancha-se o charme da fumaça branca, se quebra o suspense de um conclave secreto que fecha ao povo católico o acesso às informações às quais temos direito, se desnudam os corpos purpurados com suas histórias tortuosas.
Quebrar o segredo é quebrar a falsidade do sistema político-religioso que governa a Igreja Católica Romana. É tirar as máscaras que nos sustentam para afinal abrir nossos corações para a real interdependência e responsabilidade entre todos nós. Os jogos de poder são cheios de astúcias, ilusões e até de boa fé. Somos capazes de nos impressionar com um gesto público de carinho ou de simpatia sem nos perguntarmos sobre o que de fato constituiu a história dessa pessoa. Nem nos perguntamos sobre as ações de seu passado, de seu presente e suas perspectivas de futuro. É apenas o momento da aparição da figura simpática vestida de branco que nos impressiona. Somos capazes de nos emocionarmos frente a um carinhoso "bona cerra” papal (boa noite) e irmos para cama como crianças bem comportadas abençoadas pelo bondoso papai. Já não somos mais órfãos visto que a orfandade paterna numa sociedade patriarcal é insuportável mesmo por poucos dias.
Nós somos cúmplices da manutenção desses poderes tenebrosos que nos encantam e nos oprimem ao mesmo tempo. Nós, sobretudo os que têm mais lucidez nos processos políticos e religiosos, somos responsáveis pela ilusão que esses poderes criam na vida de milhares de pessoas, sobretudo veiculadas pelos meios de comunicação religiosos. Somos capazes de nos enternecer de tal forma que nos esquecemos dos jogos do poder, das manipulações invisíveis, da arte teatral cultivada e tão importante nessas ocasiões.
Não podemos fazer previsões sobre os rumos do futuro da governança da Igreja Católica Romana. Mas à primeira vista não parece que podemos esperar grandes mudanças nas estruturas e políticas atuais. As mudanças significativas virão se as comunidades cristãs católicas assumirem de fato a direção do presente do cristianismo, ou seja, se elas forem capazes de dizer a partir das necessidades de suas vidas como o Evangelho de Jesus poderá ser traduzido e vivido em nossas vidas hoje.
A geopolítica do segredo tem interesses altíssimos a defender. É parte de um projeto mundial de poder aonde as forças da ordem se vêm ameaçadas pelas revoluções sociais e culturais em curso em nosso mundo. Manter o segredo é justificar que há forças superiores às forças históricas da vida e que estas são mais decisivas que os rumos que podemos dar à nossa luta coletiva por dignidade, pão, justiça e misericórdia em meio aos muitos reveses e tristezas que nos acometem em meio do caminho.
Termino essa breve reflexão na esperança de que possamos não apagar a luz da liberdade que vive em nós e seguirmos bebendo das fontes de nossos sonhos de dignidade com lucidez sem nos impressionarmos com as surpresas que podem parecer grandes novidades. Afinal é apenas mais um papa que inscreve seu nome nessa instituição que apesar de sua história de altos e baixos mereceria ser transformada e repensada para os dias de hoje.
Mudanças podem sempre acontecer e é preciso estar abertos aos pequenos sinais de esperança que irrompem por todos os lados mesmo das instituições as mais anacrônicas de nosso mundo.
14 de Março de 2013.
Fonte Adital
Carta Maior
Saiba mais
O jornal que incomoda fardas e batinas
Carta Maior
Na manhã seguinte ao anúncio de um Papa argentino, o jornal ‘Página 12’ sacudiu Buenos Aires com a manchete: ‘!Dio, Mio!’
Na 6ª feira, dois dias depois, como relata o correspondente de Carta Maior, Eduardo Febbro, direto do Vaticano, o porta-voz da Santa Sé reclamou do que classificaria como ‘acusações caluniosas e difamatórias’ envolvendo o passado do Sumo Pontífice.
Em seguida atribui-as a ‘elementos da esquerda anticlerical’.
Alvo: o ‘Página 12’ .
Com ele, seu diretor, o jornalista, Horácio Verbitsky, que tem um livro sobre o as suspeitas que ensombrecem a trajetória do cardeal Jorge Mário Bergoglio, durante a ditadura argentina.
A cúpula da Igreja acerta ao qualificar o ‘Página 12’ como ‘de esquerda’ – algo que ostenta e do qual se orgulha praticando um jornalismo analítico, crítico, ancorado em fatos.
Mas erra esfericamente ao espetá-lo como ‘anticlerical’.
O destaque que o jornal dispensa ao tema dos direitos humanos não se restringe ao caso Bergoglio.
Fundado ao final da ditadura, em maio de 1987, o ‘Página 12’ é reconhecido como o grande ponto de encontro da luta pelo direito à memória na Argentina.
Não foi algo premeditado.
No crepúsculo da ditadura militar, um grupo de jornalistas de esquerda vislumbrou a oportunidade de criar um veículo enxuto, no máximo 12 páginas (daí o nome), mas dotado de densa capacidade analítica.
E, sobretudo, radicalmente comprometido com a redemocratização e com os seus desafios.
A receita das 12 páginas baseava-se num cálculo curioso.
Era o máximo que se conseguiria produzir com qualidade naquele momento; e o suficiente para a sociedade reaprender a refletir sobre ela mesma.
A fidelidade a essa diretriz (hoje o total de páginas cresceu e a edição digital tem mais de 500 mil acessos/dia) levou-o, naturalmente, a investigar os crimes da ditadura.
Seu jornalismo tornou-se um acelerador da transição que os interesses favorecidos pelo regime militar gostariam de maquiar.
Não apenas interesses econômicos.
Lá, como cá, existe um núcleo de poderosas empresas de comunicação, alvo agora da ‘Ley de Medios’, no caso da Argentina, que, por interesse financeiro, identidade ideológica ou simples covardia integrou-se ao aparato repressivo.
Usufruiu e desfruta vantagens dessa intimidade. Até hoje. O quase monopólio das comunicações é uma delas – combatida agora pelo governo de lá.
Naturalmente, a pauta dos direitos humanos dispunha de um espaço acanhado e ambíguo nessa engrenagem.
Não por falta de familiaridade com o assunto.
Mais de uma centena de jornalistas foram presos e muitos desapareceram na ditadura argentina.
A principal fábrica de papel de imprensa do país foi praticamente expropriada de seus donos.
Eles estavam presos, foram torturados. E então a transferência de propriedade se deu.
A sociedade compradora tinha como participantes o próprio governo militar e os principais jornais apoiadores do regime. Entre eles o ‘El Clarín’, de oposição frontal ao governo Cristina, atualmente.
O ‘Página 12’ não se deteve diante das conveniências. E vasculhou esses impérios sombrios.
Fez o equivalente em relação aos direitos humanos em outros países. Não raro, com a mesma mordacidade que incomoda agora o Vaticano.
Quando Pinochet morreu em 2006, a manchete indagava: ‘Que terá feito o inferno para merecer isso?’
A condenação do ditador Videla à prisão perpétua, em 2010, mereceu letras garrafais: ‘Deus existe!’
Foi com essa ironia cortante, às vezes, mas sempre intransigente em defesa dos direitos humano, que o ‘Página 12’ tornou-se um espaço apropriado pelos familiares dos desaparecidos políticos.
Por solicitação de Estela Carlotto, atual dirigente das Abuelas de Plaza de Mayo, passou a publicar, desde 1988, pequenas atualizações da trajetória familiar de vítimas da ditadura.
Os anúncios sugerem uma espécie de prosseguimento da vida dos que foram precoce e violentamente apartados dela.
Filhos que perderam os pais ainda crianças, mencionam os netos que esses avós jamais viram; avós falam dos bisnetos.
O efeito é tocante. Ao se deparar com a foto de um jovem desaparecido, sabe-se que hoje ele poderia estar brincando com os netinhos, filhos dos filho que agora tem a idade com a qual ele morreu.
Em 2007, o ‘Página 12’ recebeu na Espanha o prêmio da Liberdade de Imprensa, instituído pela Casa da América, junto com a Chancelaria espanhola e o governo da Catalunha.
Motivo: a seriedade na defesa dos direitos humanos e o compromisso com o rigor da informação, requisito da liberdade de expressão.
No momento em que pairam sombras sobre o Vaticano, o que deve fazer essa cepa de jornalismo?
O ‘Página 12’ faz o que, em geral, desagrada aos poderes terrenos e celestiais: investiga, pergunta, rememora.
Ao contrário do que sugere o porta-voz da Santa Sé, não se trata de um cacoete anticlerical.
O assunto extravasa o campo religioso e envolve uma questão de interesse político de toda a sociedade.
O tema de interesse ecumênico universal, do qual o ‘Página 12’ não abre mão: o dever que todos, sobretudo as autoridades, tem de respeitar e fazer respeitar os direitos humanos e democráticos dos cidadãos.
Sob quaisquer circunstancias; mas principalmente quando são ameaçados. Como na ditadura dos anos 70/80.
Há dúvidas se o passado do cardeal Mario Jorge Bergoglio nesse campo honra o manto santo que agora envolve Francisco, o desenvolto sucessor do atormentado Bento XVI.
As dúvidas estão marmorizadas em um lusco-fusco de pejo, silêncios e versões contrastantes.
É preciso esclarecer.
Há nomes, testemunhos, relatos, datas e um cenário dantesco: os anos de chumbo vividos pela sociedade argentina, entre 1976 e 1983.
O país do então líder dos jesuítas, Mario Jorge Bergoglio, vivia o inferno na terra, sob a ação genocida de uma ditadura cujos atos confirmam a indiferença aterrorizante dos aparatos clandestinos em relação à vida e à dor.
O que se ouve ainda arrepia.
A mesma sensação inspira o rosto endurecido e gasto dos líderes militares, julgados e condenados. Um a um; em grande parte, graças a pressão inquebrantável das denúncias e investigações ecoadas nas edições do 'Página 12'
Em sete anos, o aparato militar montou e azeitou uma máquina de torturar, matar e eclipsar corpos que operou de forma infatigável.
Nessa moenda 30 mil pessoas foram liquidadas ou desapareceram.
Mais de 4 mil e duzentos corpos por ano.
Filhos de militantes de esquerda foram sequestrados, entregues a famílias simpáticas ao regime.
Muitos permanecem nesse limbo.
No dia em que a ‘fumata bianca’ do Vaticano anunciou o ‘habemus papam’ e em seguida emergiu a figura do cardeal argentino, no balcão do Vaticano, Graciela Yorio esmurrou as paredes de seu apartamento a 11.200 quilômetros de distancia, em Buenos Aires.
O relato está nos jornais argentinos e também na Folha de São Paulo.
A revolta deve-se a uma certeza guardada há 36 anos na memória dessa sexagenária.
Em maio de 1976, seu irmão, já falecido, padre Orlando Yorio, foi delatado à ditadura sedenta e recém-instalada.
Juntamente com o sacerdote Francisco Jalics, este vivo, na Alemanha— Yorio ficou cinco meses nas mãos dos militares.
Incomunicáveis, na temível Escola Mecânica da Marinha, adaptada para ser a a máquina de moer ossos do regime.
O delator dos dois religiosos teria sido o cardeal Bergoglio -- o Papa, então com cerca de 40 anos, líder conservador dos jesuítas.
Essa é a convicção de Graciela, baseada no que ouviu do irmão, falecido em 2000, militante, como Jalics, da Teologia da Libertação.
Jalics não se pronunciou, alegando viagem. Mas emitiu uma nota na Alemanha em que se diz em paz e reconciliado com Bergoglio.
A nota compassiva não nega a dor que leva Graciela ainda a esmurrar paredes.
A estupefação tampouco é apenas dela.
Ainda que setores progressistas argentinos optem por uma certa moderação em público, muitas vozes não se calam.
Estela Carlotto, a dirigente das Abuelas de Mayo, em entrevista ao ‘Página 12’ deste sábado, procura manter a objetividade num relato que adiciona mais nuvens às sombras.
Carlotto afirma que o Cardeal Bergoglio nunca fez um gesto de solidariedade para ajudar a luta mundialmente reconhecida das mães e avós de desaparecidos políticos argentinos.
Poderia, mas não facilitou a reunião do grupo com o Papa. Ao contrário.
O primeiro encontro se deu em 1980, no Brasil, graças à mediação de religiosos brasileiros.
As abuelas só seriam recebidas em Roma três anos mais tarde, graças à contatos alheios ao cardeal Bergoglio.
Prossegue Estela Carlotto.
O cardeal teria sido conivente com o sequestro de pelo menos uma criança nascida na prisão.
Procurado por familiares da desaparecida política, Elena de la Quadra, teria aconselhado: ‘Não busquem mais por essa criança que está em boas mãos’.
E desfechou sentença equivalente em relação às demais.
O ‘Jornal Página 12’ tem sido o principal eco desses relatos e dessa revolta, que muitos relativizam e gostariam de esquecer.
O que o jornal faz ao investigar as dúvidas que pairam sobre Francisco é coerente com o 'manual de redação' sedimentado na prática da democracia argentina nesses 25 anos de existência: não sacrificar a memória ao conforto das conveniências.
Pode soar anticlerical a setores da Igreja que gostariam de esquecer o que já se cometeu neste mundo, em nome de Deus.
Mas é um reducionismo improcedente, que se dissolve na trajetória reconhecidamente qualificada do 'Página 12'.
Na Argentina, graças à persistência de vozes, como a de seus jornalistas, a memória deixou de ser o espaço da formalidade.
Hoje ela é vista como um pedaço do futuro. Um mirante poderoso para se entender o presente e superar o passado.
Carta Maior orgulha-se de ser parceira do jornalismo criterioso e corajoso de ‘Página 12’ no Brasil.
Postado por Saul LeblonNa 6ª feira, dois dias depois, como relata o correspondente de Carta Maior, Eduardo Febbro, direto do Vaticano, o porta-voz da Santa Sé reclamou do que classificaria como ‘acusações caluniosas e difamatórias’ envolvendo o passado do Sumo Pontífice.
Em seguida atribui-as a ‘elementos da esquerda anticlerical’.
Alvo: o ‘Página 12’ .
Com ele, seu diretor, o jornalista, Horácio Verbitsky, que tem um livro sobre o as suspeitas que ensombrecem a trajetória do cardeal Jorge Mário Bergoglio, durante a ditadura argentina.
A cúpula da Igreja acerta ao qualificar o ‘Página 12’ como ‘de esquerda’ – algo que ostenta e do qual se orgulha praticando um jornalismo analítico, crítico, ancorado em fatos.
Mas erra esfericamente ao espetá-lo como ‘anticlerical’.
O destaque que o jornal dispensa ao tema dos direitos humanos não se restringe ao caso Bergoglio.
Fundado ao final da ditadura, em maio de 1987, o ‘Página 12’ é reconhecido como o grande ponto de encontro da luta pelo direito à memória na Argentina.
Não foi algo premeditado.
No crepúsculo da ditadura militar, um grupo de jornalistas de esquerda vislumbrou a oportunidade de criar um veículo enxuto, no máximo 12 páginas (daí o nome), mas dotado de densa capacidade analítica.
E, sobretudo, radicalmente comprometido com a redemocratização e com os seus desafios.
A receita das 12 páginas baseava-se num cálculo curioso.
Era o máximo que se conseguiria produzir com qualidade naquele momento; e o suficiente para a sociedade reaprender a refletir sobre ela mesma.
A fidelidade a essa diretriz (hoje o total de páginas cresceu e a edição digital tem mais de 500 mil acessos/dia) levou-o, naturalmente, a investigar os crimes da ditadura.
Seu jornalismo tornou-se um acelerador da transição que os interesses favorecidos pelo regime militar gostariam de maquiar.
Não apenas interesses econômicos.
Lá, como cá, existe um núcleo de poderosas empresas de comunicação, alvo agora da ‘Ley de Medios’, no caso da Argentina, que, por interesse financeiro, identidade ideológica ou simples covardia integrou-se ao aparato repressivo.
Usufruiu e desfruta vantagens dessa intimidade. Até hoje. O quase monopólio das comunicações é uma delas – combatida agora pelo governo de lá.
Naturalmente, a pauta dos direitos humanos dispunha de um espaço acanhado e ambíguo nessa engrenagem.
Não por falta de familiaridade com o assunto.
Mais de uma centena de jornalistas foram presos e muitos desapareceram na ditadura argentina.
A principal fábrica de papel de imprensa do país foi praticamente expropriada de seus donos.
Eles estavam presos, foram torturados. E então a transferência de propriedade se deu.
A sociedade compradora tinha como participantes o próprio governo militar e os principais jornais apoiadores do regime. Entre eles o ‘El Clarín’, de oposição frontal ao governo Cristina, atualmente.
O ‘Página 12’ não se deteve diante das conveniências. E vasculhou esses impérios sombrios.
Fez o equivalente em relação aos direitos humanos em outros países. Não raro, com a mesma mordacidade que incomoda agora o Vaticano.
Quando Pinochet morreu em 2006, a manchete indagava: ‘Que terá feito o inferno para merecer isso?’
A condenação do ditador Videla à prisão perpétua, em 2010, mereceu letras garrafais: ‘Deus existe!’
Foi com essa ironia cortante, às vezes, mas sempre intransigente em defesa dos direitos humano, que o ‘Página 12’ tornou-se um espaço apropriado pelos familiares dos desaparecidos políticos.
Por solicitação de Estela Carlotto, atual dirigente das Abuelas de Plaza de Mayo, passou a publicar, desde 1988, pequenas atualizações da trajetória familiar de vítimas da ditadura.
Os anúncios sugerem uma espécie de prosseguimento da vida dos que foram precoce e violentamente apartados dela.
Filhos que perderam os pais ainda crianças, mencionam os netos que esses avós jamais viram; avós falam dos bisnetos.
O efeito é tocante. Ao se deparar com a foto de um jovem desaparecido, sabe-se que hoje ele poderia estar brincando com os netinhos, filhos dos filho que agora tem a idade com a qual ele morreu.
Em 2007, o ‘Página 12’ recebeu na Espanha o prêmio da Liberdade de Imprensa, instituído pela Casa da América, junto com a Chancelaria espanhola e o governo da Catalunha.
Motivo: a seriedade na defesa dos direitos humanos e o compromisso com o rigor da informação, requisito da liberdade de expressão.
No momento em que pairam sombras sobre o Vaticano, o que deve fazer essa cepa de jornalismo?
O ‘Página 12’ faz o que, em geral, desagrada aos poderes terrenos e celestiais: investiga, pergunta, rememora.
Ao contrário do que sugere o porta-voz da Santa Sé, não se trata de um cacoete anticlerical.
O assunto extravasa o campo religioso e envolve uma questão de interesse político de toda a sociedade.
O tema de interesse ecumênico universal, do qual o ‘Página 12’ não abre mão: o dever que todos, sobretudo as autoridades, tem de respeitar e fazer respeitar os direitos humanos e democráticos dos cidadãos.
Sob quaisquer circunstancias; mas principalmente quando são ameaçados. Como na ditadura dos anos 70/80.
Há dúvidas se o passado do cardeal Mario Jorge Bergoglio nesse campo honra o manto santo que agora envolve Francisco, o desenvolto sucessor do atormentado Bento XVI.
As dúvidas estão marmorizadas em um lusco-fusco de pejo, silêncios e versões contrastantes.
É preciso esclarecer.
Há nomes, testemunhos, relatos, datas e um cenário dantesco: os anos de chumbo vividos pela sociedade argentina, entre 1976 e 1983.
O país do então líder dos jesuítas, Mario Jorge Bergoglio, vivia o inferno na terra, sob a ação genocida de uma ditadura cujos atos confirmam a indiferença aterrorizante dos aparatos clandestinos em relação à vida e à dor.
O que se ouve ainda arrepia.
A mesma sensação inspira o rosto endurecido e gasto dos líderes militares, julgados e condenados. Um a um; em grande parte, graças a pressão inquebrantável das denúncias e investigações ecoadas nas edições do 'Página 12'
Em sete anos, o aparato militar montou e azeitou uma máquina de torturar, matar e eclipsar corpos que operou de forma infatigável.
Nessa moenda 30 mil pessoas foram liquidadas ou desapareceram.
Mais de 4 mil e duzentos corpos por ano.
Filhos de militantes de esquerda foram sequestrados, entregues a famílias simpáticas ao regime.
Muitos permanecem nesse limbo.
No dia em que a ‘fumata bianca’ do Vaticano anunciou o ‘habemus papam’ e em seguida emergiu a figura do cardeal argentino, no balcão do Vaticano, Graciela Yorio esmurrou as paredes de seu apartamento a 11.200 quilômetros de distancia, em Buenos Aires.
O relato está nos jornais argentinos e também na Folha de São Paulo.
A revolta deve-se a uma certeza guardada há 36 anos na memória dessa sexagenária.
Em maio de 1976, seu irmão, já falecido, padre Orlando Yorio, foi delatado à ditadura sedenta e recém-instalada.
Juntamente com o sacerdote Francisco Jalics, este vivo, na Alemanha— Yorio ficou cinco meses nas mãos dos militares.
Incomunicáveis, na temível Escola Mecânica da Marinha, adaptada para ser a a máquina de moer ossos do regime.
O delator dos dois religiosos teria sido o cardeal Bergoglio -- o Papa, então com cerca de 40 anos, líder conservador dos jesuítas.
Essa é a convicção de Graciela, baseada no que ouviu do irmão, falecido em 2000, militante, como Jalics, da Teologia da Libertação.
Jalics não se pronunciou, alegando viagem. Mas emitiu uma nota na Alemanha em que se diz em paz e reconciliado com Bergoglio.
A nota compassiva não nega a dor que leva Graciela ainda a esmurrar paredes.
A estupefação tampouco é apenas dela.
Ainda que setores progressistas argentinos optem por uma certa moderação em público, muitas vozes não se calam.
Estela Carlotto, a dirigente das Abuelas de Mayo, em entrevista ao ‘Página 12’ deste sábado, procura manter a objetividade num relato que adiciona mais nuvens às sombras.
Carlotto afirma que o Cardeal Bergoglio nunca fez um gesto de solidariedade para ajudar a luta mundialmente reconhecida das mães e avós de desaparecidos políticos argentinos.
Poderia, mas não facilitou a reunião do grupo com o Papa. Ao contrário.
O primeiro encontro se deu em 1980, no Brasil, graças à mediação de religiosos brasileiros.
As abuelas só seriam recebidas em Roma três anos mais tarde, graças à contatos alheios ao cardeal Bergoglio.
Prossegue Estela Carlotto.
O cardeal teria sido conivente com o sequestro de pelo menos uma criança nascida na prisão.
Procurado por familiares da desaparecida política, Elena de la Quadra, teria aconselhado: ‘Não busquem mais por essa criança que está em boas mãos’.
E desfechou sentença equivalente em relação às demais.
O ‘Jornal Página 12’ tem sido o principal eco desses relatos e dessa revolta, que muitos relativizam e gostariam de esquecer.
O que o jornal faz ao investigar as dúvidas que pairam sobre Francisco é coerente com o 'manual de redação' sedimentado na prática da democracia argentina nesses 25 anos de existência: não sacrificar a memória ao conforto das conveniências.
Pode soar anticlerical a setores da Igreja que gostariam de esquecer o que já se cometeu neste mundo, em nome de Deus.
Mas é um reducionismo improcedente, que se dissolve na trajetória reconhecidamente qualificada do 'Página 12'.
Na Argentina, graças à persistência de vozes, como a de seus jornalistas, a memória deixou de ser o espaço da formalidade.
Hoje ela é vista como um pedaço do futuro. Um mirante poderoso para se entender o presente e superar o passado.
Carta Maior orgulha-se de ser parceira do jornalismo criterioso e corajoso de ‘Página 12’ no Brasil.
Fonte Carta Maior
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