Por Edmilson Marques*
O Brasil está
sendo tomado no atual momento por um conjunto de manifestações espontâneas. O
que será que vem provocando esse fenômeno que a cada dia está tomando
proporções cada vez maiores (se manifestando em vários países e com quantidade
crescente de pessoas) e mais radicais (do enfrentamento direto e declarado com
o estado)?
Para tratar
deste tema é preciso primeiramente discutir o que é espontaneidade. Esta é
parte da natureza humana. Ela se expressa de diversas maneiras no cotidiano de
nossas vidas. É a expressão do desejo humano em transformar o seu cotidiano
para que este possibilite o atendimento de suas necessidades básicas, como
comer, beber, se vestir, morar, se locomover sem dificuldades, criando, assim,
uma realidade onde possa desenvolver naturalmente suas diversas
potencialidades.
A atividade
espontânea é atividade livre do eu e implica, psicologicamente, o que significa
literalmente o radical latino do termo sponte: por sua própria vontade.
Por atividade não temos em vista “fazer alguma coisa”, e sim a qualidade de
atividade criadora que pode agir igualmente nas experiências emocionais,
intelectuais e sensoriais da pessoa (FROMM, 1983, p. 205).
A liberdade,
no entanto, é parte fundamental desse processo, pois, só pode haver
espontaneidade se houver liberdade para se expressar e, desta forma, torna-se
também, expressão de sua natureza. Assim, ser espontâneo é demonstrar através
de ações práticas a potencialidade e capacidade criativa, atuando na transformação
da realidade, criando e gerando o novo, porém, em liberdade.
A
espontaneidade, no entanto, pode ser limitada em consequência de ações
controladoras. Isso ocorre quando as relações sociais estabelecidas entre os
seres humanos inibem e limitam ações individuais e coletivas, impedindo o
desenvolvimento natural de suas diversas potencialidades, a exemplo do que
ocorre nas escolas, em que uma criança não cria, mas reproduz o conhecimento
criado por outro, através da imposição realizada pela burocracia escolar.
Quando isso ocorre um novo sentimento é gerado, o descontentamento. O
descontentamento é a demonstração de que alguma coisa existente na sociedade
está limitando ou dificultando o atendimento das necessidades básicas dos seres
humanos, incluindo aí a liberdade. O descontentamento, portanto, expressa o
desejo de romper com estes limites e dificuldades, e agir com o objetivo de
suprimi-los. Ao agir com este objetivo o indivíduo consegue novamente retomar a
potencialidade criativa em suas mãos, perdida outrora, indispensável para
superar esses limites que lhes são impostos.
No capitalismo, no entanto, a ação espontânea é parte do
cotidiano de apenas alguns poucos indivíduos, dos capitalistas e de uma parcela
de seus auxiliares, uma minoria, que têm em suas mãos a possibilidade de
determinar como a sociedade deve ser organizada, e é nesse sentido que a
burguesia conseguiu criar um mundo à sua imagem e semelhança. Um mundo
inferior, um mundo vil, que gira em torno da produção, compra e venda de mercadorias,
um mundo coisificado, onde o ser humano é transformado em uma coisa para
atender aos interesses daqueles.
No entanto, mesmo sendo controlada e privilégio de uns
poucos, a espontaneidade, por ser parte da natureza humana, tende a se
expressar na ação daqueles que são explorados e oprimidos. Apesar de a
espontaneidade ser um fenômeno relativamente raro em nossa cultura, não somos
de todo destituídos dela (FROMM, 1983, p. 205). E é nesse sentido que
atualmente o mundo, não só o Brasil, vem sendo tomado por manifestações
espontâneas que aglomeram milhares de pessoas com o mesmo propósito, ou seja, o
de suprimir determinadas questões sociais que lhes provocam o descontentamento.
No Brasil, os meios de comunicação estão divulgando que essas manifestações se
resumem à reivindicações relacionadas à passagem de ônibus, ao descaso do
estado com a educação, saúde, segurança etc. O estopim em várias destas
manifestações de fato tem uma relação com estas questões, porém, há algo mais
profundo que é preciso ser revelado.
Ao analisar a história do capitalismo, vamos perceber que toda a
sua história é marcada por manifestações espontâneas, hora com maior, hora com
menor intensidade. Os motivos aparentes que fazem emergir a maioria destas
manifestações que ocorreram e vem ocorrendo atualmente, no entanto, diferem em
relação ao que reivindicam. Atualmente vemos estourar no Brasil, por exemplo,
manifestações que reclamam da cobrança, e outros do preço, de passagens de
ônibus, mas há também manifestações de trabalhadores rurais e outros setores da
sociedade que clamam por melhores salários etc. A razão de ser destas diversas
manifestações, no entanto, não se resume à reclamação de necessidades
imediatas, embora seja essa a sua expressão aparente, mas, há algo mais profundo.
Desta forma, a explicação para as manifestações espontâneas deve ser buscada na
forma como a sociedade atual está organizada.
O capitalismo é uma sociedade dividida em classes sociais,
e como tal, é organizada para atender aos interesses de uns poucos em
detrimento da maioria. Alguns são privilegiados enquanto outros pagam pelo
privilégio daqueles. É por isso que há indivíduos que podem ser portadores de
meios de transportes individuais, havendo inclusive aqueles que nunca, se quer,
entraram em um ônibus “coletivo”; é por isso também que há aqueles que pela
exploração que exercem sobre os trabalhadores conseguem viver desfrutando das
riquezas produzidas; outros recebem salários exorbitantes enquanto a maioria
esmagadora recebe o mínimo para se manter vivo. Em síntese, o capitalismo foi
organizado de acordo e para atender aos interesses da burguesia, e esta cede
parte de seus privilégios à burocracia estatal para atuar na manutenção desta
sociedade.
Podemos observar essa forma de ser do capitalismo nos
locais de trabalho. O trabalho é o meio essencial que utilizamos para nos
manter vivos. No entanto, foi convertido pela burguesia no meio para aumentar e
reproduzir os seus privilégios. É por isso que a maior parte dos trabalhadores
dedica sua vida ao trabalho, mas quem vive em melhores condições e vai se
enriquecendo cada vez mais são os patrões, acompanhados de perto por aqueles
que os auxiliam controlando e oprimindo os trabalhadores, a burocracia. Devido
a isso é que os patrões não saem pelas ruas se manifestando, utilizando-se de coquetel
molotov, em confronto direto com a polícia, nem reivindicando tarifas
menores das passagens de ônibus ou reclamando por melhores salários e melhores
condições de trabalho. Isto não ocorre pelo fato destas questões e esta
sociedade não ser preocupação para eles e por ser eles a razão de ser desta
situação.
Desta forma, o modo como se produz as riquezas existentes e a
maneira como esta é distribuída, é a razão de ser das manifestações
espontâneas. Uma vez que as riquezas produzidas são apropriadas por poucas
pessoas, pelos capitalistas, isso cria uma sociedade em que a maioria é
destituída destas riquezas e sofrem pelo não acesso a elas. Estando a maior
parte da sociedade (as classes oprimidas e exploradas) destituída destas
riquezas, logo, suas necessidades básicas se tornam um fardo, a liberdade
inexistente, e a consequência é a instalação de um descontentamento
generalizado. Assim se institui uma sociedade em que este descontentamento
generalizado faz emergir as diversas manifestações espontâneas, que hora ou
outra explodem como o fogo no cerrado, que busca queimar o velho e preparar o
terreno para uma nova vida, onde a liberdade seja parte da vida cotidiana e a
riqueza produzida, a realização humana.
As manifestações espontâneas expressam, desta maneira, o
interesse da população oprimida e explorada de superar esta sociedade. Se o
descontentamento inexistisse, não haveriam pessoas se mobilizando e gritando
raivosamente por uma vida diferente desta. Assim, uma das questões que emerge
com essas manifestações atuais é que representam em si a crítica à burocracia,
já que não são organizadas nem mesmo guiadas por integrantes de partidos
políticos. É por isso que vemos os representantes do estado assustados com esse
tipo de movimento, por não saberem com quem negociar, já que no limite de suas
consciências, próprio dos integrantes de partidos políticos, só conseguem
pensar uma determinada organização tendo à sua frente uma vanguarda, os
representantes.
Quando a espontaneidade é expressa por manifestantes que
buscam representarem a si mesmos, sem delegarem a outro a sua própria
representatividade, isso gera uma confusão na cabeça dos burocratas, até mesmo
dos intelectuais mais esclarecidos, o que leva o estado a justificar a
repressão que exercem, expressando que os manifestantes são baderneiros,
vândalos e um conjunto de outros adjetivos que utilizam para desqualificar a
sua espontaneidade e fortalecer a falsa ideia da necessidade de representantes.
As manifestações espontâneas, no entanto, não são frutos
de articulações de partidos políticos e se organizam no processo de
desenvolvimento da luta empreendida. Nestas não há alguém determinando o que
fazer nem para onde seguir. As manifestações espontâneas são integradas por
pessoas que tomaram enfim, em suas mãos, o destino de sua própria vida; é a
crítica prática a diversas questões consequentes da forma como esta sociedade
está organizada.
É neste contexto que emerge a ideia de “pacificidade” que
vem sendo aclamada e dirigida à população pelos meios oligopolistas de
comunicação. Podemos perguntar: qual o motivo e interesse pela “pacificidade”
das manifestações? Pacífico, segundo um dicionário famoso, significa: amigo da
paz; tranquilo, pacato; aceito sem discussão ou oposição. Já ser espontâneo,
significa: voluntário, que se desenvolve sem a intervenção de outro. A
espontaneidade exige atuação, no sentido de deixar a inércia de lado para criar
com suas próprias mãos o destino de sua própria vida sem a intervenção de outro;
é participação, porém, perpassa pela oposição quando há limitações para seu
desenvolvimento.
A emergência
de uma manifestação espontânea é sinal que os indivíduos não estão mais
suportando a situação em que estão vivendo. E nesse estado é impossível tratar
com pacificidade aqueles que estabelecem a repressão e a opressão como pressuposto
das relações sociais. Desta forma, essa concepção que defende a pacificidade
caminha em sentido contrário à de espontaneidade. Assim, o que os meios oligopolistas
de comunicação estão defendendo é o recuo e limitação das manifestações
espontâneas, o seu controle.
A defesa da pacificidade não possibilita a criação do
avanço da luta e se limita a reproduzir a mesma sociedade pautada na opressão e
exploração de uma minoria sobre a maioria. Com isso os meios oligopolistas de
comunicação, ao invés de contribuir com o avanço das lutas espontâneas, no
sentido de motivá-las a atingir a radicalidade ao ponto de colocar a ordem
capitalista em xeque, o que fazem é se colocarem como limitadores da ação
coletiva, o que demonstra estarem do lado da burguesia e também ao lado do
estado.
A radicalização crescente das manifestações, no entanto, é
uma resposta à intensificação da exploração capitalista. Com a intensificação
da exploração, consequentemente, houve a necessidade de intensificar a
repressão e o controle por parte do estado. Desta forma, de um lado o estado
vem se utilizando da repressão cada vez mais brutal para manter a ordem
estabelecida pelo capitalismo. Mas de outro, em resposta a essa repressão vem
ocorrendo a emergência das manifestações espontâneas, que, sem as poderosas
armas empunhadas pelo estado, respondem com uma força equivalente através da
união coletiva. O sentimento comunitário é, desde sempre, a força principal,
necessária para o progresso da revolução (PANNEKOEK, 2007, p. 159).
É claro que esse processo de luta contra o capitalismo não
vai ocorrer de forma pacífica. O estado utilizará de todas as suas forças
(armadas até os dentes) para defender esta sociedade, e as manifestações
espontâneas têm mostrado que a transformação social só será possível através de
uma atuação conjunta radicalizada. Assim, a exploração realizada nos locais de
trabalho e o tratamento repressor que o estado oferece à população são os
motores, agora, com uma intensidade ainda maior, em todos os cantos do mundo,
de todas as manifestações espontâneas que vem estourando em todas as partes do
globo terrestre.
A possibilidade da transformação social começará a se colocar, no
entanto, quando as diversas manifestações espontâneas que emergem fora dos
locais de trabalho eclodirem simultaneamente à luta espontânea do proletariado,
momento em que se abre a possibilidade de ultrapassarem o campo das
reivindicações imediatas e efetivar uma greve geral e de ocupação ativa. Os
operários
Sabem que para conseguir sua própria emancipação, e com
ela essa forma superior de vida para a qual tende irresistivelmente a sociedade
atual, por seu próprio desenvolvimento econômico, terá que enfrentar longas
lutas, toda uma série de processos históricos que transformarão as
circunstâncias e os homens. Eles não têm que realizar nenhum ideal, mas
simplesmente liberar os elementos da nova sociedade, que a velha sociedade
burguesa agonizante traz em seu seio (MARX, 1986, p. 77).
Um dos limitadores daquelas manifestações é que se
restringem, por exemplo, a reivindicar melhores salários, tarifas menores das
passagens de ônibus, melhores condições de trabalho, etc. Pautar a luta pela
reivindicação só adia o processo que levará à transformação social. Tanto é que
quando essas passam e os manifestantes conseguem dos capitalistas o
consentimento de suas reivindicações, voltamos a receber salários e ser
controlados e explorados nos locais de trabalho, continuamos pagando passagens
de ônibus e continuamos trabalhando para o patrão sob a supervisão do
burocrata. Ou seja, o capitalismo continua existindo, assim como as relações de
opressão e exploração.
As manifestações espontâneas que ocorrem fora dos locais
de trabalho, no entanto, estão se tornando cada vez mais radicais e podem abrir
brechas no capitalismo para dar início a um processo revolucionário. Isso pode
ocorrer quando a luta espontânea dos operários se instalar simultaneamente a
aquelas. Karl Jensen já havia esboçado os três estágios da luta operária quando
abordou a luta operária e os limites do “autonomismo”, onde demonstra que o
terceiro estágio é o da luta verdadeiramente revolucionária. Para ele as lutas
operárias espontâneas têm o significado de recusar praticamente o capital. Essa
luta, no entanto, não assume ainda uma ação coletiva e consciente, ou seja, uma
consciência revolucionária. O segundo estágio da luta operária
É o das lutas autônomas. Aqui o discurso nasce, ainda
fragmentado, ainda incompleto, ainda incipiente, tal como as lutas travadas.
Aqui a ação torna-se coletiva: as reuniões, os panfletos, a greve, o piquete,
entre outras formas. Aqui se recusa o capital mas não só ele, como um produto
derivado dele: a burocracia (JENSEN, 2001, p. 25).
Jensen observa que quando atinge o estágio das lutas
autônomas é o momento em que a luta operária atinge um caráter radical,
marcando o nascimento de uma ação revolucionária, porém, sem consciência
revolucionária. É no terceiro estágio da luta que a classe operária desenvolve,
enfim, a consciência revolucionária.
Aqui se revela
uma luta que garante a recusa do capital e da burocracia e a afirmação da
autogestão. O proletariado não só recusa o domínio do capital e da burocracia,
mas também assume a direção revolucionária da fábrica e da sociedade. Aqui não
só se realiza uma ação revolucionária como também se manifesta uma consciência
revolucionária (Idem).
Jensen contribui para evidenciar a necessidade de
desenvolver as lutas espontâneas ao ponto de atingir o terceiro estágio. E
aqui, o espontaneísmo das manifestações se apresenta como um potencial
transformador, porém, pode ficar nos limites da sociedade capitalista se não
avançar para um estágio posterior, por isso é preciso desenvolvê-la no sentido
de constituir lutas autogestionárias. Há, portanto, de um lado, a
espontaneidade das manifestações que expressa uma crítica a determinado setor
do capitalismo e paralelo a essa a espontaneidade da luta operária que já
ocorre no cotidiano da sociedade capitalista e que representa de fato a recusa
do capital. A transformação social começará a se figurar como uma possibilidade
efetiva, no entanto, quando ambas atingirem um terceiro estágio da luta.
Desta forma a sociedade será tomada pela luta declarada e
aberta das classes exploradas e oprimidas, momento em que juntam suas forças
contra seus opressores e exploradores. É neste momento que se coloca a
possibilidade da passagem das lutas autônomas dos operários para as lutas
autogestionárias.
Quando as lutas autônomas são substituídas pelas lutas
autogestionárias, o conflito se torna mais grave, a guerra civil oculta se
transforma visivelmente em guerra civil aberta e ambos os lados radicalizam
suas ações e a vitória da classe capitalista ou da burocracia significa a
contra-revolução, enquanto que a vitória da classe operária significa a
instauração da autogestão social (VIANA, 2008, p. 29).
As diversas manifestações espontâneas que vem surgindo em todo
mundo, portanto, é o sinal de que uma nova era, o começo de uma nova história a
ser escrita pelas mãos das classes oprimidas e exploradas, que erguerão uma
sociedade que será gerida por eles próprios, está prestes a começar. Isso só se
tornará realidade quando as lutas espontâneas atingirem o estágio de uma
consciência revolucionária, momento em que cria suas próprias organizações,
determinada por seus próprios interesses, que lhe possibilite que a luta contra
o capital aponte para sua abolição. Nesse estágio tem clareza de que a extinção
da miséria, da fome, da pobreza, das classes oprimidas e exploradas, em
síntese, do descontentamento histórico que perdura até a atualidade, só pode se
tornar uma realidade com o fim daquele que o produz, ou seja, com o fim do
capitalismo e seu representante direto, o estado. Esse fim, no entanto, só
poderá ser obra, daqueles que são oprimidos e explorados nesta sociedade. As
manifestações espontâneas estão, tão somente, anunciando que este fim se
aproxima.
Referências
FROMM, Erich. O Medo à Liberdade. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 1983.
JENSEN, Karl. A Luta Operária e os Limites do
“Autonomismo”. In: Revista Ruptura. Publicação do Movimento
Autogestionário. Ano 8, Número 7, agosto de 2001.
MARX, Karl. A Guerra Civil na França. São Paulo:
Global, 1986.
PANNEKOEK, Anton. A Revolução dos Trabalhadores.
Porto Alegre: Barba Ruiva, 2007.
VIANA, Nildo. Manifesto Autogestionário. Rio de Janeiro:
Achiamé, 2008.
Número Especial sobre as Manifestações no Brasil Atual: http://enfrentamento.net/
https://www.facebook.com/antoniocavalcantefilho.cavalcante
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