O que me intriga é por que
ainda chamar de "democracia" a uma situação assim.
Fui um dos primeiros (vide aqui) a protestar quando o Itamaraty comunicou a INFAME decisão do governo brasileiro de negar asilo a Edward Snowden, sem haver tido sequer a honestidade de assumi-la: preferiu adotar uma saída pela tangente típica de republiquetas. Então, faço questão de cá postar um artigo em que o filósofo Vladimir Safatle diz tudo que faltava dizer sobre este assunto, fazendo minhas as suas palavras.
SERVIDÃO VOLUNTÁRIA
Safatle: exceção permanente
"Eu não tenho nada para esconder. Por
isso, pouco me importa que os EUA vejam meus e-mails, desde que isso nos
permita vivermos em um mundo mais seguro."
Eu encontrei tal afirmação em um "post" no qual seu autor comentava uma
notícia sobre o caso Edward Snowden. A primeira coisa que me veio à
mente foi a lembrança de ter ouvido essa frase antes, mas em um contexto
relativamente diferente.
Décadas atrás, um conhecido que estudava na antiga Alemanha Oriental,
dissera: "Pouco me importa saber que a Stasi [polícia secreta da antiga
Alemanha Oriental] me espione. Esse é o preço para defender o
socialismo".
Ele só esquecera de perguntar quanto valia um socialismo construído por
meio da completa destruição da noção de espaço privado. Regime no qual
os cidadãos alimentam a confiança infantil de que estão sendo escutados
por alguém que perceberá quão bons e ordeiros eles são e que, por isso,
merecem a proteção que os reis dedicavam aos bons súditos.
De fato, eu me perguntava se não havia algo de "amor ao agressor" e de
necessidade neurótica de amparo nessa estranha tendência psicológica à
servidão voluntária.
Hoje, quase 25 anos depois [da queda
do Muro de Berlim], impressiona perceber quão parecidos são, em sua
cegueira ideológica, essas duas pessoas que julgam defender mundos
diferentes. É engraçado perceber como, no fundo, eles querem a mesma
coisa: sacrificar, de uma vez por todas, a liberdade no altar de seus
medos e obsessões.
Mesmo o filósofo Thomas Hobbes costumava dizer, à sua maneira: a soleira da minha porta é o limite do poder do Estado. O que pode significar que o Estado não entra, não legisla e nada diz sobre o que faço em meu espaço privado. Alguns dirão: "Salvo em situações excepcionais". O que explica por que governar, hoje, significa, em larga medida, perpetuar as ditas situações excepcionais a fim de o Estado poder legislar fora da lei.
Em um mundo onde até mesmo um louco assassinando alguém a machadinha
transformou-se em um atentado terrorista, não é difícil imaginar como
viveremos em um Estado de exceção permanente. O que me intriga é por que
ainda chamar de "democracia" a uma situação assim.
Nesse sentido, devemos exigir do governo brasileiro, depois de descobrir
que a privacidade de seus cidadãos foi violada sistematicamente por uma
empresa que prestou serviços ao próprio governo brasileiro no período
FHC, que forneça asilo a Snowden. Seu gesto foi eminentemente político.
Talvez o gesto político por excelência em um momento como o nosso. Que
pessoas como ele possam continuar a fazer gestos como o seu.
Fonte Náufrago da Utopia
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