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Jacques Rancière: nossos governos estão se tornando oligárquicos
Para o
filósofo francês, nossos governos, com seus políticos profissionais,
estão se tornando oligárquicos, cada vez mais controlados pelas
finanças.
O lançamento de La Haine de la démocratie (O Ódio da Democracia),
em 2005, foi um acontecimento. De início, porque o filósofo Jacques
Rancière lança um ataque eloquente contra a oligarquia e contra as
elites do poder. Em seguida, em função da tomada do partido delas pelas
pulsões antidemocráticas dos intelectuais, seu desgosto pela plebe. Quer
se trate de Alain Finkielkraut fustigando o caráter inculto dos
consumidores contemporâneos, ou de Philipe Muray, debochando do homo festivus,
de Jean-Claude Milner, condenando os pecados mortais da Europa
democrática, do italiano Giorgio Agamben, comparando nossas democracias a
regimes totalitários, os representantes da elite intelectual, lembrava
Rancière, não estão dispostos a confiar no povo, nas massas que julgam
ignorantes e perigosas.
Em 2007, quando em campanha
presidencial, Ségolène Royal propôs a criação de juris populares e
defendeu o conceito de “democracia participativa”. Para explicar a
escolha ao Partido Socialista, reivindicava a influência do trabalho de
Jacques Rancière (La Haine de la démocratie). Mas o principal
interessado rapidamente cortou essa tentativa de apropriação. Sua
posição com efeito estava muito distante do programa de Ségolène Royal,
pois, para ele, a democracia não pode ser uma oferta eleitoral:
trata-se, ao contrário, de um escândalo.
Em entrevista à revista Philosophie Magazine, Rancière fala sobre a democracia e os adversários que ela encontra para sua efetivação no mundo contemporâneo.
Temos
a tendência de pensar que há democracia quando o governo é eleito por
maioria dos votos. Você fornece uma definição completamente diferente da
democracia, a qual é representada como um excesso. O que isso
significa?
Os conceitos da política não nascem da
classificação das diversas formas de governo. Eles nascem da própria
política. Lembremos que, na origem, a palavra “democracia” é uma
injúria. Na Grécia, tratava-se como “democrata” aquele que queria o
poder do povo, quer dizer, da canalha. Não há uma definição, mas uma
constelação de significações em torno da palavra democracia, que tem
todas este ponto comum: o escândalo. O sorteio, e não o voto
majoritário, tornou-se o símbolo dela. A ordem natural queria que o
poder estivesse ao alcance dos indivíduos mais fortes, mais ricos, mais
sábios ou mais capazes...Mas a democracia ou o “poder do povo” impõe
esta verdade paradoxal: para que haja política, e não somente dominação,
é preciso pressupor um poder que não se identifique a qualquer
competência exercida sobre os outros, sejam quem for. Não se está numa
democracia simplesmente porque o povo está representado por deputados,
ou governado pelos presidentes eleitos, mas quando existe formas de
afirmação desse poder das pessoas que são autônomas em relação às
instituições do Estado.
Para você, o regime no qual vivemos hoje na França é um “Estado de direito oligárquico”. Qual o sentido dessa expressão?
Nosso
sistema repousa sobre uma dupla legitimidade. De um lado, há um Estado
de direito, com um certo número de constrangimentos jurídicos que
limitam as prerrogativas do poder e protegem os cidadãos. Mas nossos
governos são oligárquicos: abrigam os políticos profissionais, cada vez
mais ligados ao mundo da finança. Eles se apoiam na visão dos experts
que navegam pelo mundo dos negócios, dos governos e da universidade,
cujo papel na desregulamentação liberal e na especulação financeira nos
EUA o demonstrou, exemplarmente. O poder de todos é monopolizado por uma
pequena minoria que se auto-reproduz. Esse sistema reduz a ação
democrática ao processo eleitoral, quer dizer, às escolhas entre os
políticos que são desde o início designados por essa minoria, em seu
interior. A eleição é duas coisas em uma: ela é a forma de reprodução da
oligarquia governante. E ela é a visibilidade do poder de todos, ainda
presente, mas num sistema como o nosso, onde tudo repousa na eleição,
todos os cinco anos de um chefe supremo. E sem dúvida é preferível ter
soberanos eleitos pela minoria mais forte do que ter gente que está lá
pela força armada ou sob o comando de um partido único. Além disso, o
sufrágio universal às vezes burla os cálculos dos experts e dos
estrategistas.
Como na época da rejeição, pelo referendo de 2005, do projeto da Constituição Europeia... Em O Ódio da Democracia,
você diz que era edificante escutar as elites de então recriando o
escândalo que representava, aos seus olhos, o “não” da população. Mas se
se organizasse um referendo que resultasse na interdição da construção
de mineradoras, ou da burca, ou no retorno da pena de morte, não estaria
você, como representante da elite intelectual, entre os primeiros a se
indignar?
Vamos distinguir as coisas. O problema da burca foi
introduzido no debate pela elite; não se viu as pessoas na rua
molestando as mulheres de burca. Muitos dos temas ditos populistas – a
islamofobia, o racismo, a segurança – não vêm de baixo, mas do alto. A
gestão da insegurança é uma forma de autolegitimação do poder
oligárquico, e a islamofobia foi alimentada pelos intelectuais. No que
concerne ao referendo sobre a Constituição europeia, nossos dirigentes
cometeram um erro em relação à lógica governamental: eles deram aos
eleitores o texto a ser lido. As pessoas votaram depois de terem
discutido um texto que todos tiveram tempo de ler e de julgar; não se
tratava de enunciar uma opinião, como os cidadãos suíços o fizeram, em
relação às mineradoras... Em todo caso, a democracia é a ação comum em
nome de um poder de pensamento que pertence a todos. Não se pode
reduzi-la à escolha entre opiniões contrárias. O referendo não é, para
mim, um modelo. Ele ganha sentido em situações em que há uma decisão a
ser tomada sobre orientações coletivas claramente enunciadas. Em toda
parte, onde se gera fantasma, pode-se chegar ao pior.
Quando o
resultado de um referendo lhe agrada, é uma escolha esclarecida. Quando
o desaponta, é o resultado de uma manipulação. Isso não é um pouco
cômodo? O excesso democrático não pode, ele também, levar a uma exclusão
das minorias, ao desencadeamento das pulsões?
A diferença
não é apenas de resultados. Ela está no tipo de povo a que a questão se
destina: trata-se do povo étnico, definido por uma identidade a
preservar, ou de um povo político, que não existe senão sob a supressão
de suas identidades? A democracia não afirma a bondade original do povo,
mas diferença ela mesma entre duas ideias de povo. O excesso
democrático não é portanto o contágio dos movimentos da massa. Ao longo
do tempo, esses movimentos estão em regressão em nossas sociedades
ocidentais. Não houve caça aos muçulmanos após o 11 de setembro. Nossos
partidos da extrema direita dirigem opiniões de eleitores, não paixões
populares de massa. E a História nos mostra que, mais do que grandes
horrores, os piores massacres sempre foram planejados pelas oligarquias
no poder, das dragonadas aos campos [de concentração] e aos genocídios. O
partido-Estado Nazi, com a solução final, mostrou uma eficácia no crime
que as manifestações populares e os pogroms espontâneos ao longo dos
séculos precedentes jamais alcançaram.
Hoje, vários filósofos
(Finkielkraut, Milner, Agamben…) criticam vivamente a democracia. Não é
estranho ver se espalhar um forte sentimento antidemocrático dentre os
filósofos ?
Eu não vejo paradoxo. Não existe um grupo de
pessoas que seriam “os filósofos” e que teriam por missão defender a
democracia. Atribui-se erradamente aos intelectuais uma vocação de
resistência à opinião dominante. O desenvolvimento do antidemocratismo
entre eles acompanha naturalmente o fortalecimento do poder das
oligarquias e o crescimento das desigualdades. Desde que o sistema
soviético afundou, aqueles que criticavam o totalitarismo em novem da
democracia e os que criticavam a democracia como ilusão, que escondia a
exploração capitalista, tendem a se pôr de acordo sobre uma visão
sociológica da democracia. Esta chegou ao poder dos indivíduos
consumidores da sociedade de massa, e opôs a essas massas ávidas e
ignorantes a razão esclarecida das elites.
Sob o efeito da globalização econômica e da hegemonia crescente da China, a democracia poderia desaparecer?
A
democracia como ideia do poder de todos pode desaparecer sob uma forma
suave, dissolver-se nas oligarquias temperadas que conhecemos no
ocidente. Muitos dos elementos estão reunidos para tanto: a pressão
crescente do governo econômico mundial, a redução da cena política à
disputa pela escolha do dirigente supremo, a tendência a criminalizar os
movimentos sociais, a reduzir as greves e manifestações a rituais
estritamente regulamentados, e a rejeitar a contestação das formas
dominantes, como sabotagem ou terrorismo, o consenso antidemocrático
crescente. Ao mesmo tempo, nossas oligarquias não precisam de um partido
único, sob o modelo chinês, para fazer o sistema funcionar. Os meios de
supressão suave podem chegar a resultados globalmente comparáveis aos
que o comunismo da China “liberalizada”, por sua parte, obterá. O que
pode se opor a isso é somente uma força de pensamento e de ação
autônomas, em relação às agendas estatais.
Tradução: Louisa Antônia Leó
Fonte Carta Maior
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