terça-feira, 29 de julho de 2014

“Os eleitos não representam os eleitores”


O que desestimula a participação cívica, a crença no parlamento e na democracia é a prática da corrupção e é justamente por ela estar tão presente nas nossas eleições o Congresso Nacional é uma das instituições de menor credibilidade no país segundo as pesquisas





Juiz de Direito, Márlon Jacinto Reis é titular da 58º zona eleitoral do Maranhão e autor do livro O Nobre Deputado, em que revela, através de um personagem fictício – o deputado federal Cândido Peçanha –, como se define uma eleição para a Câmara Federal e Assembleias Legislativas no Brasil. O irônico personagem foi criado a partir de entrevistas com pessoas que participam dos bastidores da política nacional e descreveram os métodos da corrupção para a tese de doutorado do autor, em Sociologia Jurídica e Instituições Políticas na Universidade de Saragoça, na Espanha.

Márlon Reis, que foi um dos articuladores para a aprovação da Lei da Ficha Limpa e é um defensor do financiamento público de campanhas, conversou com a Gazeta do Povo sobre o processo de criação do personagem, as entrevistas que revelaram as práticas de corrupção e sobre as críticas dos deputados, que afirmam que seu livro é um desserviço para a política brasileira e um desestímulo a prática cidadã. Ofendidos por uma entrevista concedida pelo juiz no programa Fantástico, da Rede Globo, os deputados entraram com uma representação contra o magistrado no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). 

Confira alguns trechos da entrevista. 

Como foi o processo de construção do deputado Cândido Peçanha?

Em 2007, comecei a coletar depoimentos para a minha tese de doutorado de pessoas que se dispuseram a falar sobre ilegalidades praticadas nas eleições para assegurar a vitória. Quando percebi que havia um conteúdo bastante relevante, decidi levar isso para a sociedade. Não seria correto deixar esse conteúdo apenas no meio acadêmico, que é muito restrito. Decidi construir o personagem para levar ao grande público essa informação. Foram feitas dez entrevistas com pessoas que concordaram falar sobre o assunto em profundidade, desde que fossem mantidas em anonimato. Além disso, pesquisei diversas outras fontes, como depoimentos em processos judiciais. 

O presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), afirmou que o senhor acusou todos os 513 deputados de forma generalizada e que entrará com uma representação contra o senhor no CNJ. Como o senhor avalia a reação? 

Não há generalização. O livro foi feito para mostrar que existe corrupção eleitoral e como ela é praticada. Ponto. Esse é o objetivo do livro. Na reportagem veiculada no Fantástico eu expressamente falo que não são todos – mas que se trata de uma grande parte. Na verdade o que houve foi uma reação corporativista em que, a pretexto de defender o parlamento, o presidente da casa generalizou a defesa para afirmar a correção de posicionamento dos deputados de que todos os parlamentares são eleitos de maneira legal, o que não é verdade. Muitos são eleitos com a estratégia descrita no livro. Quantos são? Eu não sei; a minha pesquisa não foi capaz de revelar. Essa afirmação de que eu generalizei é leviana e incompatível com meu histórico pessoal. Sempre fui um defensor das eleições, da democracia e do parlamento. 

O presidente da Câmara também acusou o senhor de desestimular o exercício da cidadania e reforçar a ideia de que a política não serve à população. Em um país onde já há um conhecido desinteresse pela política, as afirmações de que as eleições são uma farsa não colaboram para essa situação? 

Não, pelo contrário. O que desestimula a participação cívica, a crença no parlamento e na democracia é a prática da corrupção e é justamente por ela estar tão presente nas nossas eleições o Congresso Nacional é uma das instituições de menor credibilidade no país segundo as pesquisas. O que tem diminuído a credibilidade na política é a corrupção política e principalmente a corrupção eleitoral – é o financiamento das campanhas por grandes empreiteiras, grandes corporações.

No livro, o senhor denuncia crimes graves, como desvio de dinheiro público, compra de votos, agiotagem, fraude em licitações, etc. Não seria o seu papel enquanto membro do Poder Judiciário denunciar os autores dessas condutas? Manter o anonimato dessas pessoas não consiste em um crime de prevaricação? 

Eu não tive acesso a práticas ilícitas concretas. Nas minhas entrevistas eu perguntava sobre os métodos e eles me explicavam como as licitações eram fraudadas, mas eu não tive acesso a nenhuma licitação fraudada. Além disso, eu não estava ali como magistrado e sim como estudante de doutorado. Não era um juiz - até porque não é papel de um juiz investigar nada e sim julgar os processos que chegam, fruto de investigações feitas pela polícia ou pelo Ministério Público. O meu objetivo não é denunciar casos concretos e sim as fragilidades do sistema no que diz respeito à obtenção de dinheiro para a campanha e como é feita a conversão desse dinheiro em votos através de atos criminosos. 

O que há de fato errado no sistema eleitoral do Brasil? Quais são as falhas no sistema eleitoral que permitem que “Cândidos Peçanhas” continuem sendo eleitos? 

O principal pecado das campanhas eleitorais no Brasil é o modelo de financiamento. As eleições brasileiras são caríssimas – só em 2014 a estimativa é de um gasto de R$ 9,7 bilhões. Isso acontece porque as eleições são financiadas por grupos empresariais que atuam muito próximo ao governo. Existe uma competição entre esses grupos para eleger o maior número de políticos e com isso influenciar o funcionamento da máquina pública. Isso gera um grande prejuízo para a sociedade, já que, depois de eleitos, eles não são representantes dos eleitores e sim dos financiadores de campanha. 

Com tantos métodos para a corrupção das eleições, o que o cidadão pode de fato fazer para mudar essa realidade? 

O que o eleitor pode fazer é buscar mais informação e votar de forma cada vez mais consciente. Hoje se dá mais importância à contusão de um jogador da Seleção Brasileira do que para os vícios que nós temos no nosso sistema eleitoral. O cidadão tem que se tornar mais exigente e também deve se incorporar à luta social pela reforma política porque o modelo eleitoral e o modelo de financiamento precisam ser superados e compete ao cidadão fortalecer essa demanda.



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