A luta contra a corrupção – muitos têm dito – não pode ser uma bandeira dos conservadores. A oportunidade para frear esta captura está dada agora. Não se trata, como alguns chegaram a propor, de aderir às manifestações reacionárias. Trata-se de propor agenda às maiorias que percebem, tanto quanto nós, o esvaziamento da política. Trata-se de construir, com o impulso do fato inesperado, uma narrativa mais rica sobre o sequestro da democracia pelo poder econômico. Trata-se de tomar a frente, de propor saídas concretas diante de um acontecimento que comove o país. Estamos dispostos?
Por Antonio Martins
Não é preciso transformar o ministro Teori Zavascki, morto num
acidente suspeitíssimo, em herói. Encarregado do processo da Lava Jato
no STF, ele foi, como quase todos
os seus colegas, incapaz de defender a Constituição e a imparcialidade
da justiça. Mas é facílimo identificar os que se beneficiam com seu
desaparecimento. Em primeiro lugar o presidente Temer; seu “governo de
réus” (para usar a feliz expressão
de Paulo Sérgio Pinheiro); as cúpulas do PSDB e PMDB; e centenas de
deputados e senadores destes e outros partidos governistas. Todo este
grupo estaria ameaçado e desmoralizado já a partir de fevereiro, quando Teori homologaria
as delações premiadas dos executivos da Odebrecht, expondo a corrupção e
hipocrisia dos que derrubaram o governo eleito e tomaram o poder em
maio.
O “acidente” favorece, em segundo lugar, o prolongamento do golpe de
Estado e a adoção de sua agenda de retrocessos selvagens. A quebra do
sigilo sobre as delações (outra decisão que Teori mostrava-se disposto a tomar)
demonstraria que o recebimento de propina e o favorecimento ao poder
econômico são práticas corriqueiras e quase universais no mundo da
política institucional. Esta revelação destrói o núcleo central da
narrativa dos golpistas – a ideia de que o impeachment foi adotado para
afastar um grupo corrupto e sanear a vida nacional. De quebra, frustrar
ou adiar a publicação oficial das delações permite a um Congresso onde
há centenas de prováveis corruptos
tocar impunemente a agenda de horrores em curso. Nela se incluem, entre
tantos outros pontos, o desmonte da Previdência Social Pública, a
anulação na prática da maior parte da legislação que protege o trabalho,
o bloqueio da demarcação de terras indígenas e o prosseguimento da
entrega do pré-sal.
A análise inicial do regimento do STF sugere que todos processos
sobre a Lava Jato, até agora centralizados em Teori Zavascki, serão
entregues ao novo ministro do Supremo – a ser proposto pelo presidente
da República e confirmado pelo Senado. Nas condições atuais, trata-se de
uma afronta à ética. As poucas delações vazadas até agora indicam que
Michel Temer foi apontado como receptor de propina ou praticante de
favorecimento ilícito 43 vezes pelos executivos da Odebrecht. Em que
julgamento legítimo pode o réu escolher o juiz que decidirá sua pena –
ou sua absolvição? A necessária confirmação da escolha pelo Senado torna
o escárnio ainda mais completo. Porque serão padrinhos do novo
ministro, além de Temer, dezenas de senadores igualmente citados como
corruptos.
Ninguém duvide: tanto Michel Temer quanto os senadores
executarão, se lhes for permitido, o roteiro bizarro exposto acima. Eles
tomaram o poder sem pudor, conscientes de sua hipocrisia, nas sessões
grotescas da Câmara e do Senado em 19 de Março e 31 de agosto. Eles, sem
vergonha, obrigam o país a engolir uma agenda impopular
e nunca submetida a consulta alguma. Se foram capazes de tanto, o que
não farão para salvar a própria pele e para preservar o sistema espúrio
que lhes dá cada vez mais riqueza e poder?
Na vida e na política, as omissões são muitas vezes mais trágicas que
os erros. As manifestações contra o golpe, que mobilizaram multidões e
cresceram até abril, arrefeceram em seguida. Um pensamento acomodado tem
soprado a alguns setores, mesmo entre a esquerda, que os males do
presente poderão ser reparados em 2018, quando um novo presidente for
eleito. Outros, que se julgam mais radicais, deixaram as ruas porque,
enojados com razão de toda a política institucional, avançaram um
limite. Amorteceram-se e se tornaram incapazes de lutar contra a
brutalidade específica de um golpe capaz de instalar o Estado de Exceção em sua versão mais crua.
A morte de Teori Zavascki abre espaço para uma recuperação. Ninguém
será capaz de convencer a sociedade de que foi de fato um acidente (é
sugestivo que a velha mídia, discreta sobre a vida íntima de quase todos
os poderosos, alardeie agora, como cortina de fumaça, a possível
presença de uma amante no voo fatal). Os que queremos uma reforma
política profunda devemos assumir nossa responsabilidade.
É preciso impedir que a casta política se safe e que o golpe se
amplie. Há instrumentos para bloquear esta fuga. O futuro ministro do
STF que assumirá o processo precisa ser questionado. Deve se
comprometer, como indicava claramente Teori, a aceitar os acordos de
delação premiada da Odebrecht. Poderá alegar que precisa de tempo para
analisar milhares de horas de gravação, dezenas de milhares de páginas
de processo. Mas isso não poderá servir de pretexto para manter o
processo engavetado. O sigilo precisa ser rompido. Estamos na era do
digital. Nada mais tacanho que impedir os brasileiros de conhecer as
práticas políticas dos que querem governar.
A luta contra a corrupção – muitos têm dito – não pode ser uma
bandeira dos conservadores. A oportunidade para frear esta captura está
dada agora. Não se trata, como alguns chegaram a propor, de aderir às
manifestações reacionárias. Trata-se de propor agenda às maiorias que
percebem, tanto quanto nós, o esvaziamento da política. Trata-se de
construir, com o impulso do fato inesperado, uma narrativa mais rica
sobre o sequestro da democracia pelo poder econômico. Trata-se de tomar a
frente, de propor saídas concretas diante de um acontecimento que
comove o país. Estamos dispostos?
Fonte Outras Palavras
Visite a pagina do MCCE-MT